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4 de abril de 2018

Riscos de investimento

Sem “Ghouta” de vergonha
jorge Cordeiro

Uma agência de aconselhamento sobre riscos de investimento a multinacionais – um género de bússola financeira para safras mais generosas – inventariou como cidades mais inseguras Bagdade, Damasco ou Sana. Não desprezando a aprofundada investigação e o meritório labor científico despendido que conduziu ao apuramento do facto, fica no ar um certo sabor à falta de um qualquer outro e adicional registo. Não tanto o do questionamento da conclusão extraída, ainda que sempre se pudesse alegar, com alguma dose de atrevimento, que em matéria de insegurança uma daquelas escolas norte-americanas onde com cadência regular se sucedem massacres pudesse pedir meças de inclusão no ranking divulgado. Adiantemos-nos, porém, para outras paragens onde a interpelação ganha a óbvia forma de pertinência: a de não se ver contada porque razão capitais de países, ou o que resta deles, que décadas atrás se contavam entre as cidades desenvolvidas e seguras foram conduzidas à situação descrita. Já se ouvem as vozes, ainda a meio da leitura do parágrafo anterior, contestando que seja míster do labor agencial dar-se a explicações desse tipo. Concedendo que não se pode pedir ao vendedor comprometedoras revelações do produto a comercializar, deve suscitar-se a razão da menor perspicácia. Fazê-lo levaria à denúncia dos EUA e dos seus aliados que, sobre os escombros de países, erguem os alicerces do domínio geo-estratégico. Reconhecê-lo, no mês em que passam quinze anos sobre a agressão ao Iraque e sete anos sobre o ataque à Líbia, seria pôr a caminho do “Tribunal Penal Internacional” – essa auto-criação de uma justiça de pratos invertidos em que no assento dos juízes estão os procuradores dos verdadeiros criminosos – notáveis defensores dos “direitos humanos” como Bush, Blair, Aznar ou Durão.

Olhando para a Síria e Damasco se perceberá - para lá de tabelas estatísticas ou de revisitados manuais de ciência política – o que essa estratégia de destruição de Estados soberanos transporta. Ghouta nos subúrbios de Damasco constitui um libelo acusatório: da acção do imperialismo; do cinismo da “comunidade internacional”; da cumplicidade da comunicação dominante. Face a perdas de memória aqui se lembra o “caso Ghouta” que em 2013, inserido na operação para violar a integridade territorial da Síria, atribuía a Assad o uso de armas químicas que, como se veio a provar (por via da Comissão das Nações Unidas e de Carla del Ponte, insuspeita de qualquer simpatia por Assad) foram usadas não pelo governo mas sim pelos “opositores sírios” associados à Al-Qaeda.
Persistem hoje as mesmas mentiras com os mesmos objectivos. Perante a realidade que entra pelos olhos adentro – uma região nos subúrbios de Damasco, ocupada por terroristas elevados à condição de “opositores ao regime”, que mantém sequestrada a população –, multiplicam-se as acusações às autoridades sírias O próprio secretário-geral da ONU, António Guterres, juntou-se à encomenda classificando os acontecimentos de Ghouta como «inferno na terra». Ninguém dúvida, nem sequer pode imaginar, o drama vivido pelos que ali sobrevivem. Mas registe-se a selectiva omissão, em matéria de locais de convívio com o diabo – como o que em Gaza se assiste de genocídio do povo palestiniano –, e sobretudo o lapso essencial: a denúncia da raíz da situação e dos responsáveis. Estão documentadas as acções de ingerência externa na Síria: o enquadramento e apoio militar de agentes secretos ingleses e franceses aos grupos terroristas, a colaboração prestada a esses grupos pela panóplia de “ONG” (seja os “Capacetes Brancos”, a “Sociedade Médica Sírio-Americana” ou o “Observatório Sírio dos Direitos Humanos”) que a coberto de “acção humanitária” agem como antenas das “forças de oposição”. Não se soubesse ao que andam, quer os que agridem quer os que justificam as agressões, e com os exemplos das falsas acusações de genocídio que conduziram à destruição da Jugoslávia ou a demonstrada inexistência de armas químicas no Iraque, se concluiria que o campo para ver medrar estas operações seria escasso. Mas a mentira continua a fazer caminho. Compensada por contrapartidas que levam a que andem com pouco tropeço. Fazendo da mentira, verdades peremptórias. Não perturbando o seu caminho com questionamentos incómodos que desnudariam o que se quer tapar. Reproduzindo a cada notícia com crescente convicção o que não quiseram indagar ou decidiram reproduzir como falso. Ontem com as “revoluções árabes” (em comovente conversão ao conceito de revolução) dirigidas do exterior para atingir fins que se conhecem ou com as “revoluções coloridas” como as que na Ucrânia puseram no poder um regime fascizante. Hoje, como ontem, com aquela aparente inocência, a veste sempre à mão para disfarce da hipocrisia, que levou recentemente alguém a anotar horrorizado que na Polónia, o «Solidanorsc», esse prodigioso poço de virtude democrática, se «tornou um aliado das forças retrógradas» e do partido fascizante “Lei e Justiça” que assumiu o poder. Como se vê, neste mar de cumplicidades, não se vislumbra pingo de vergonha.

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