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26 de maio de 2018

Desporto e multinacionais




Desporto e multinacionais, “paixão” desastrosa
Jorge Cordeiro

A torrente de notícias, com rara informação e uma imensidade especulativa, que submergiu o País a propósito de casos diversos que envolvem clubes e dirigentes, e que atingem algumas modalidades onde sobressai o futebol, anatematizam todo o desporto. O volume é tanto que só com elevado grau de resistência crítica e distanciamento de leitura se lhe resiste. 

Frustrando expectativas que já adivinham uma incursão pelos terrenos do “sangue e exacerbação” nos parágrafos que se seguem, a opção não é essa. Desculpe-se a falta de ousadia, este desprendimento face à captação de audiências mas para ir por aí já basta o que encharca o País. Invocando palavras de Montesquieu, ausentes na superficialidade do comentário jornalístico dominante, «não se trata de ler mas de fazer pensar». Haveria tudo a ganhar seguindo-as. Também aqui não encontrará o leitor, contrariando pré-concebidos prognósticos, a verberação do desporto de Alta Competição, incluindo o futebol, o olímpico, federado ou profissional. O desporto é um factor do processo de desenvolvimento que compete ao Estado promover, quer quanto à democratização da sua prática quer quanto aos valores que o devem rodear. Uma actividade que, se praticada de forma justa e não discriminatória, integra o processo de responsabilização e integração na sociedade. A observação do que tem rodeado o ambiente desportivo exige reflexão mais profunda, rejeição da espuma mediática, busca aprofundada noutras paragens do que aquelas em que a aparência do óbvio tolda a razão. 

Comecemos pela mercantilização do desporto, tornado “desporto-espectáculo”. Olhar para o que se passa, iludindo-a, só dá tropeço na análise. A súbita “paixão” das multinacionais pelo desporto, que se confunde com a paixão por tudo que lhes assegure lucros fabulosos, induziu alterações ao nível dos conceitos, do impacto na “indústria” e na publicidade, das formas como os Estados e o capital privado intervêm e suportam a actividade económica em torno do desporto e em particular do futebol. 

Não se confinem os problemas a desvios comportamentais ou actos de gestão danosa. O domínio não é apenas o de juízos morais, mas sim o que, no plano político, ideológico e legislativo e de auto-regulação das diversas modalidades, animou práticas condenáveis. A criação das Sociedades Anónimas Desportivas, com o que transporta de espaço de voragem financeira, de investimentos duvidosos e especulação bolsista em torno de clubes e modalidades abriu caminho a situações de que, em geral só emerge a ponta do icebergue. Clubes desportivos transformados em placas giratórias da especulação de direitos de jogadores, janelas de oportunidade para lavagem de dinheiro, promíscuas movimentações entre capital financeiro, imobiliário e clubes, disputas nebulosas  do negócio de direitos televisivos, articulados com “patrocinadores” e o Marketing, fomentam a côrte de ambiciosos “empresários”  que se fundem com corpos directivos, tudo sob os holofotes de uma comunicação social sedenta  de audiências. A que se adiciona os problemas induzidos pelo mercado de apostas desportivas e as práticas a ele associadas. Conter e limitar a “indústria e mercados” do desporto não significa o fim do profissionalismo desportivo. Mas há todo um campo para intervir limitando investidores institucionais, regulando patrocínios publicitários, ou questionando a propriedade ou co-propriedade dos clubes sobre”media”, como canais televisivos. 

Transportemos para outro plano que, se não convocado, faltará ao que se impõe aduzir em benefício da compreensão. A instrumentalização ideológica do espectáculo desportivo, assim como sua utilização para promoção pessoal, social e política não é de hoje. O que se tem assistido, da patenteada violência ao infindável rol de suspeitas de corrupção, com as dinâmicas específicas que os envolvem, não são também separáveis das expressões anti-democráticas disseminadas na sociedade. A exacerbação clubista tem-se assumido como factor de diversão e desvio dos reais problemas nacionais. A promoção da conflitualidade gratuita entre clubes, não raras vezes baseada no enfunar do populismo ou no incentivo ao ódio, são parte de um caldo onde se alimentam projectos que corporizam concepções fascizantes e que estão muito para lá de protagonismos individuais. 

A paixão pelo espectáculo desportivo não é necessariamente factor de alienação assim como o desporto de alta competição não é necessariamente contraditório com a prática generalizada do desporto pela população. O desporto é, ou deveria ser, essencialmente uma actividade cultural. No universo das suas expressões. Sem ostracização de modalidades. O futebol profissional não é todo o futebol e ainda bem menos todo o desporto. Do muito que há a fazer, comece-se pela responsabilidade do Estado, desde logo no que lhe caberia promover no plano do desporto escolar e da Escola Pública na formação de valores e comportamentos éticos, e no fomento do associativismo democrático, a que os órgãos de comunicação social sob tutela pública por maioria de razão se deveriam associar. 


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