Nem gato escondido ... (1) Jorge Cordeiro
As recentes “declarações conjuntas” subscritas pelo PS e PSD assumem iniludível significado
político. A ostensiva carga cerimonial que se lhe quis atribuir e a relevância estruturante das matérias em
causa não autorizam ilação diversa.
Na verdade a denominada “descentralização” e o “quadro financeiro plurianual”
não são meros domínios a que um pretextado “interesse nacional” convocaria.
Não são matérias políticas neutras mas sim opções estruturantes: a primeira,
porque inserida na estratégia mais ampla de reconfiguração do Estado sob a
falsa invocação valorativa do Poder Local; a outra porque, a exemplo de
instrumentos congéneres que o precederam, moldará para a próxima década um
relacionamento não só financeiro mas de nexo político com as orientações da
União Europeia contrárias aos interesses do País.
Concentremos-nos, por razões de espaço mas também de proximidade, no
primeiro lote, o da “descentralização”, arrematado como seria expectável sem
grande regateio.
Não nos perdendo em incursões filosóficas, seria legítimo convocar ao serviço de um primeiro
comentário a aristotélica afirmação de que «o começo é metade de tudo». Não se percorrerá esse
trilho argumentativo para lá do que é devido.
Até porque a asserção invocada se funda numa reflexiva
observação que parte de premissa que aqui não encontra lugar, a de que «o erro acontece, com
efeito, no começo». Ora, só por manifesta imprudência e indesculpável precipitação se poderia
admitir que se está perante o começo de algo ou na presença de imponderado erro.
Os manejos enrodilhados, quase sempre sobre o floreamento valorativo do Poder
Local, que ao longo de quatro décadas têm unido estes dois partidos, para
bloquear a efectiva descentralização e condicionar a autonomia local são
conhecidos. Um manejar acompanhado em permanência pela subversiva
adulteração de conceitos, arremetidas legislativas ou mais densas manobras
políticas. Porque a afirmação é controversa e não encontrará aclaramento
suficiente no edifício da mera opinião, capaz de acomodar previsíveis
contestações, passemos para o plano da necessária fundamentação.
Aqui ficam, com o desenvolvimento que o texto consente, as anotações mínimas
que a circunstância requer para suportar o juízo crítico. A saber: o ginasticado
exercício para confundir descentralização com desconcentração e transformar em
sinónimos transferência de competências e descentralização; o infindável labor
legislativo que tem ferido a autonomia local e sonegado recursos financeiros que
lhe são devidos; ou os passos já situados num patamar de ousadia política como
o que, em 1997, António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa deram para,
também em celebrado acordo, se consumar um golpe constitucional contra a
regionalização para impedir, com a obrigação referendária, a criação das Regiões
administrativas então iminente.
O que está em causa não é qualquer propósito descentralizador. O que foi subscrito por
Rio e Costa é um processo de desresponsabilização do Estado, de transferência de
encargos para o poder local, de comprometimento de funções sociais (na saúde, na educação, na
habitação ou na cultura) que só o Estado pode assegurar e um convite antecipado, que alguns usarão
como pretexto, à sua privatização. Com prejuízos para a população e para o seu direito
de acesso a serviços públicos. O que agora se desenha é, tão só, uma apresentação mais colorida da
negritude do que em 2014 o governo de Passos Coelho e Portas desenharam no Guião para a Reforma do
Estado como «processo ambicioso» determinado pelo objectivo agora renovado de «um envelope
financeiro sem aumento da despesa pública». O que desinvestido e subfinanciado está,
assim continuará! Ao mesmo tempo que prossegue a acção para expropriar os municípios de
competências próprias no domínio da água na mira da sua futura privatização na qual vislumbram um
negócio de mais de dois mil milhões de euros.
O que se quer é impedir a descentralização. Reinvocando estudos académicos e enredando-a em
infindáveis avaliações “independentes”. São conhecidos os inúmeros expedientes que têm perpetuado o
seu adiamento. Desde os «livros brancos» da regionalização dos governos da AD, às consultas
promovidas pela Assembleia da República às assembleias municipais na década de 80. Poupe-se em
estudos. Será suficiente investir-se na leitura e cumprimento do texto constitucional. Instituam-se as
regiões administrativas, reponham-se as freguesias extintas, aplique-se a Lei de Finanças Locais e assim
poupa-se tempo e não se desperdiçam neurónios. E, já agora, sem desprimor do labor de geógrafos
ou cartógrafos, dispensando recurso a instrumentos de geo-localização ou a ensaios de semeio
(ou leilão) de ministérios pelo País talvez se deva começar por repor o conjunto de direcções regionais
que extinguiram e reactivar as centenas de serviços que encerraram. Não se
invocará, a propósito, a figura do gato que escondido deixara o rabo de fora, tão só porque o
tamanho do felino dispensa o esforço. Como se verá.
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