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17 de outubro de 2024

António Guterres tinha razão mas não disse tudo

Israel nunca teve intenções de reconhecer um Estado palestiniano e a “comunidade internacional” nunca pressionou Telavive a fazê-lo. Mas ninguém se atreveu a criticá-lo com receio de represálias ou de ser mal visto por Washington.


 Numa reunião especial do Conselho de Segurança sobre a crise no Médio Oriente, o Secretário-geral da ONU António Guterres afirmou o óbvio: o evento de 7 de outubro de 2023 não aconteceu no vácuo. A declaração motivou uma reação descabida do embaixador de Israel nas Nações Unidas clamando pela sua resignação. A circunstância do cargo que ocupa impediu-o de ir muito mais longe no comentário.

No entanto, Guterres disse ainda que “o povo palestino foi submetido a 56 anos de ocupação sufocante”, e que “as queixas do povo palestino não podem justificar os terríveis ataques do Hamas. E, esses ataques terríveis, não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano”. Apesar destas importantes observações, não explicou as causas profundas do ataque do Hamas.

Há duas causas do 7 de outubro: uma afastada e outra próxima. A afastada relaciona-se com as atrocidades e o sofrimento causado pelos sionistas ao povo palestino durante décadas, nas quais se inclui o êxodo de mais de 700 mil árabes palestinos (Nakba) das terras de Israel, em 1948; e a próxima prende-se com o incumprimento dos Acordos de Oslo.

Sem elaborar extensivamente sobre a primeira – em que muitos acontecimentos tiveram impacto direto no presente – e sem a pretensão de fazer um varrimento histórico profundo, não se pode esquecer o massacre de Sabra e Chatila, perpetrado sob a supervisão de Ariel Sharon, mais tarde primeiro-ministro de Israel, e de todos os que o procederam. A marcha da morte de Lídia e os massacres de Deir Yassim, Kafr Kassem, Quiba, Jan Yunis, etc., para mencionar apenas alguns.

Quando se fala de terrorismo na região, não se pode deixar de fazer um regresso ao passado e à génese terrorista do Estado de Israel, começando em 1920 pelas organizações terroristas paramilitares como a Irgun, a Lehi, a Haganah e a Palmach, que em 1948 se fundiram para criar as IDF – Israel Defense Forces.

Menachem Begin, primeiro-ministro de Israel em mais do que um mandato, foi o chefe do Irgun e responsável pelo ataque terrorista ao Hotel King David, onde morreram mais de 92 pessoas, britânicos na sua maioria. Begin foi denunciado por um grupo de intelectuais judeus, entre eles nomes como Albert Einstein e Hannah Arendt, numa carta aberta publicada pelo “New York Times“, no dia 4 de dezembro de 1948, quando visitou os EUA, em que condenavam abertamente o partido político por si fundado – o “Partido da Liberdade” (Tnuat Haherut) – de ser “um partido político muito semelhante, na sua organização, métodos, filosofia política e apelo social, aos partidos nazi e fascista.”

Por seu lado, Yitzhak Shamir, também primeiro-ministro de Israel, foi dirigente da Lehi e responsável pelo assassínio do diplomata sueco Folke Bernardotte, enviado das Nações Unidas para a implementação da partição territorial da Palestina, tendo sido o Estado de Israel condenado internacionalmente. Ficaremos por aqui, sem deixar de sublinhar a relevância destes factos para melhor se entender o presente.

Passando à causa próxima. Em 1993, em Oslo, a OLP renunciou à luta armada e reconheceu a existência do Estado de Israel. Nas negociações em 2000, para concretizar o Acordo de Oslo, o então primeiro-ministro Ehud Barak apenas reconheceu a Autoridade Palestiniana (AP), mas não reconheceu a existência de um Estado palestino. Telavive fez tudo o que lhe estava ao alcance para inviabilizar a sua existência.

Com as suas ações, Israel foi corroendo e deslegitimando com sucesso a AP ao ponto de esta deixar de ser um ator credível aos olhos dos próprios palestinos, gerando a sua ineficácia espaço para a emergência e afirmação de outros grupos e grupelhos radicais, que ao não reconhecerem a existência do Estado judaico se tornaram de grande utilidade para Israel.

Quando lhe foi conveniente, Netanyahu apoiou o Hamas e serviu-se da sua aparente cegueira política. Dava-lhe jeito um Hamas forte e sectário para isolar internacionalmente a causa palestina. Por isso, durante muitos anos, as viaturas das IDF escoltaram malas carregadas de dólares, que chegavam ao aeroporto de Ben Gurion provenientes do Catar, até à Faixa de Gaza, onde eram transferidas para o Hamas (embora a transferência não fosse feita direta e automaticamente).

Também por isso, não se pode deixar de estranhar que a organização conhecedora da localização de toda a estrutura superior do Hezbollah, quando e onde se reuniam, não soubesse o que se estava a passar na Faixa de Gaza, em particular, a preparação do Hamas para um ataque a Israel, para o qual se treinavam às claras. Telavive terá sido informada e nada fez para o contrariar. A ser verdade, o Hamas poderá ter aparentemente caído numa cilada.

Em vez de fazer acontecer Oslo, a “comunidade internacional” assobiou para o ar, fingindo estar tudo bem em Gaza e na Cisjordânia. Independentemente do que Israel estivesse a fazer, o importante era que os palestinos não reivindicassem. A conjugação de uma AP mansa, ineficaz, corrupta e geriátrica, sem dar resposta aos problemas do povo – muito conveniente para Israel -, com a expansão sistemática dos colonatos e as humilhações diárias e permanentes gerou a revolta e o aparecimento de grupos como o Hamas, que vieram ocupar o espaço de contestação deixado vazio pela AP.

Afinal, a opção estratégica da OLP se transformar num movimento político e abandonar a luta armada não se traduziu em benefícios para a causa palestina, nos trinta anos que nos separam dos acordos de Oslo (1993) e nos 24 anos da Cimeira de Camp David (2000). A sua colaboração e o seu bom comportamento não foram recompensados. Pelo contrário, durante a vigência da domesticada AP, o movimento palestino só averbou derrotas, e os progressos na direção do estabelecimento de um Estado foram pírricos. Paulatinamente, Israel ia consolidando o seu projeto de uma Grande Israel, em particular na Cisjordânia, apesar de ter tido de devolver o deserto do Sinai ao Egipto, conquistado na guerra do Yom Kippur.

Foi o sentimento de impotência e injustiça sentidos pelas massas palestinas, que não se sentiam politicamente representadas pela AP, que deu força a quem pensasse ser o regresso à luta armada o único método de alterar o rumo dos acontecimentos. Tinha-se tornado evidente ser inviável construir um Estado palestino apenas através da diplomacia e da luta política.

Oslo não só não falhou em criar um Estado palestino como criou as condições para Israel se expandir e prosperar como nunca na Cisjordânia. Netanyahu mostrava nas Nações Unidas, a quem quisesse ver, sem qualquer pudor e reparo, um mapa de Israel em que a Cisjordânia e Gaza não apareciam. Ninguém parecia importar-se com o problema palestino, que caminhava a passos largos para a irrelevância histórica. No dia 6 de outubro, a causa palestina estava moribunda, quase morta. A normalização das relações com os países do Golfo estava em curso. Teria sido a derrota definitiva se a Arábia Saudita tivesse aderido a esse processo. Israel esteve à beira da vitória.

Mas a resposta selvagem de Telavive em Gaza, onde já pereceram mais de 42 mil almas, na data em que este texto foi escrito, veio reverter desajeitadamente décadas de energias e de esforço para convencer os Estados do Golfo de que a criação de um Estado palestino não podia mais vetar as relações entre Israel e o mundo árabe e islâmico. Veio ressuscitar das catacumbas a causa palestina tornando-a no assunto número um da luta pelos Direitos Humanos a nível mundial. Não só se encontra agora no topo da agenda da justiça internacional, como ganhou uma dinâmica imparável. Os casos em curso no Tribunal Penal Internacional e no Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, tornaram-se num movimento sem precedentes no passado recente.

Israel encontra-se agora mais isolado internacionalmente do que nunca na sua história. Como disse David Hearst, “esta guerra despojou Israel da sua imagem de um sionismo liberal”, mostrando a sua verdadeira face de um sionista fascista. “A imagem de Israel de um jovem duro tentando defender-se da sua vizinhança deu lugar à de um ogre regional sem qualquer bússola moral.”

É inegável e sobejamente conhecido o projeto messiânico de uma Grande Israel com o sul do Líbano, Gaza e Cisjordânia incluídas, que Netanyahu ambiciona construir. Israel nunca teve intenções de reconhecer um Estado palestiniano e a “comunidade internacional” nunca pressionou Telavive a fazê-lo. Mas ninguém se atreveu a criticá-lo com receio de represálias ou de ser mal visto por Washington. Se tivesse sido criado um Estado palestino, cinco anos após a assinatura dos Acordos de Oslo, seguramente que não existiriam hoje movimentos como o Hamas. Como também não teria sido criado o Hezbollah, se as forças de Israel não tivessem cometido as chacinas e a matança de libaneses, aquando da ocupação do Líbano, em 1982.

As grandes potências, umas mais de que outras, transformaram a AP numa entidade rentista, mantida em estado vegetativo, em troca do seu silêncio, até à extinção da sua razão de ser. Mas Yahya Sinwar e o 7 de outubro vieram estragar o plano.

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