O Euro, os objectivos de classe e o seu enquadramento na resposta à crise
estrutural do capitalismo a nível regional. O exemplo de Portugal (*)
Pedro Carvalho
Economista
Vivemos um período de crise sistémica. Um período de declínio da posição hegemónica
da potência central do sistema capitalista mundial, os Estados Unidos, mas não só, dos
restantes pólos da tríade que o sustenta – União Europeia e Japão.
Entre episódios de crise de índole regional e mundial, a última das quais que se arrasta
por mais de uma década, evidenciada pela sobre-acumulação de capital sobre todas as
formas e da sobreprodução de importantes segmentos industriais do sistema capitalista
mundial.
Uma crise de rentabilidade que teima em permanecer, apesar da cartilha do consenso de
Washington, já com alguma idade e remendos, mas cujos pressupostos continuam a
dominar a praxis das principais organizações internacionais do sistema capitalista, e
inscrito, nomeadamente, no pós-Maastricht, nos tratados da União Europeia que dão
corpo à integração capitalista europeia, cujo Euro é um elemento central.
Agudiza-se a luta de classes e de aprofundamento das contradições do capitalismo, em
particular da contradição fundamental entre o grau de socialização da produção atingido e
a apropriação privada das condições de produção.
Num contexto em que o nível interdependência e de financeirização acentuam os riscos
de contágio dos choques económicos a nível regional e mundial, com os conflitos daí
decorrentes. Onde o crédito se torna e é o «balão» de oxigénio do sistema, não só como
um elemento de antecipação do consumo, mas de sustentação da própria financeirização.
Em paralelo com a permanência de baixas taxas de juro, que para além de contribuírem
para melhorar as condições de rentabilidade do capital e reduzir os seus custos de
refinanciamento, promovem a «inflação» dos activos financeiros, a explosão do capital
fictício, num contexto acelerado de concentração e centralização do capital a nível
mundial.
Num contexto de estagnação das taxas de acumulação, sobretudo ao nível dos países do
centro do sistema capitalista mundial, como aponta a desaceleração das taxas de
crescimento do produto de década para década.
Num contexto de delapidação acelerada de recursos naturais (matérias-primas e energia)
para «alimentar» a acumulação capitalista, de sobre-extensão do sistema a nível mundial
e de mercantilização de todas as esferas da vida social, o que acentua as rivalidades
interimperialistas, bem como as derivas destrutivas do sistema, nomeadamente o flagelo
guerra.
O sistema capitalista responde e adapta-se com uma ofensiva de classe global,
intensificando a exploração do trabalho, de forma a retomar o processo de valorização do
capital.
Do «consenso» à «austeridade», sinónimos enraizados naquilo que tem sido a resposta
do sistema capitalista à crise, desde o seu retorno visível nos anos 70 do século passado,
que visa ajustar contas com as conquistas dos trabalhadores do pós-Guerra.
Uma resposta que tem no seu epicentro a redução dos custos unitários de trabalho,
garantir a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital, na
tentativa de aumentar as taxas de exploração, com vista a restaurar as condições de
rentabilidade do capital.
Uma ofensiva que expropria triplamente o trabalho: a apropriação da mais-valia gerada no
processo produtivo, os juros pagos ao capital financeiro por via do endividamento, para
garantir no curto prazo a manutenção dos níveis de consumo num contexto de contenção
salarial e os impostos, quando convertidos em fontes de refinanciamento do capital,
transformando dívida privada em dívida pública. Veja-se o exemplo nacional, com as
denominadas parcerias públicas-privadas e os enormes recursos financeiros que
continuam a ser injectados no sistema bancário.
Esta resposta assenta em quatro princípios: a estabilidade de preços, melhor dito a
moderação salarial; a consolidação orçamental; a desregulamentação dos mercados de
bens, serviços e trabalho e a liberalização do comércio internacional. O que posto em
formato europeu: o Euro, o Tratado Orçamental (Pacto de Estabilidade), a Agenda de
Lisboa (nas diversas actualizações) e os acordos de cooperação, leia-se livre comércio
bilateral ou no seio da Organização Mundial de Comércio.
Por isso, o Euro e o Tratado Orçamental que o suporta não são instrumentos neutros, têm
um cunho de classe claro e um papel a desempenhar na resposta do sistema capitalista à
crise, no contexto regional da União Europeia. O Euro e a União Económica e Monetária
são um instrumento de classe ao serviço do grande capital transnacional que opera no
mercado interno europeu.
Desde logo, o objectivo único da política monetária do Banco Central Europeu é a
estabilidade de preços, o que de fato significa garantir as condições para que o
crescimento dos salários reais fique abaixo do crescimento da produtividade do trabalho,
com vista a garantir as transferências dos ganhos de produtividade do trabalho para o
capital.
A pressão para a redução dos custos unitários do trabalho é acentuada pelos
pressupostos da própria União Económica e Monetária. Um país que deixa de ter a
possibilidade de usar a sua política monetária e cambial, ao serviço das suas
necessidades endógenas de desenvolvimento e na resposta a choques económicos
externos, sobretudo de natureza assimétrica. Um país que se encontra com
constrangimentos absolutos sobre a sua política orçamental e fiscal, decorrentes do
Tratado Orçamental e do Pacto de Estabilidade, bem como de outros instrumentos
económicos de intervenção do mercado, por via do controlo do Semestre Europeu. Então
as únicas variáveis de ajustamento que lhe restam são os salários e o emprego. Melhor
dito, a desvalorização dos salários e o aumento do desemprego, o que por sua vez
também exerce um efeito «disciplinador» sobre os salários, concorrendo mais uma vez
para o objectivo central de redução dos custos unitários de trabalho.
Mas a resposta de classe do Euro é mais ampla. Contribui para a redução dos custos de
internalização e internacionalização das empresas multinacionais que operam no
mercado europeu, como para a redução dos custos de refinanciamento do capital, por via
da manutenção de taxas de juro baixas, tornando rentáveis investimentos com menores
taxas de lucro; bem como para a promoção da capitalização bolsista e a manutenção dos
valores reais da dívida existente, em defesa dos credores. Em paralelo, acentua a
concorrência intercapitalista, enquanto pretende afirmar uma moeda de reserva
internacional. Um Euro forte, à semelhança do antigo marco alemão.
Mas o Euro gera também assimetrias de desenvolvimento, contribuindo para desigual
distribuição de perdas e ganhos no interior da União Económica e Monetária, realizada
entre Estados com níveis de desenvolvimento económico diferenciados e desequilíbrios
significativos na sua balança de pagamentos, nomeadamente intracomunitária, cujas
necessidades ao nível da política monetária e cambial seriam também diferentes e, por
isso, incompatíveis com uma política monetária única.
Convém sublinhar que o Euro foi e é uma decisão política. Não decorreu de qualquer
inevitabilidade da evolução das forças produtivas. O Euro não era, nem é, uma zona
monetária óptima, apesar das prerrogativas políticas de reforço dos mecanismos federais
e de convergência das políticas económicas. O orçamento comunitário continua a
representar cerca de 1% do RNB comunitário, o que é manifestamente insuficiente para
ter qualquer cariz redistributivo ou dar resposta a choques assimétricos, se tivermos em
conta a experiência existente em Estados federados, para mais num contexto de
permanência de importantes disparidades dos níveis de desenvolvimento económico e
social e, por isso, mesmo com necessidades de políticas diferenciadas ao nível monetário
e cambial, com objectivos diferenciados ao nível do binómio taxas de juro e inflação.
A política monetária única dará sempre resposta aos interesses das grandes potências,
exacerbando os ajustamentos ao nível dos países da periferia da zona Euro e acentuando
os seus desequilíbrios externos.
Desde o processo que conduziu à sua criação e desde a sua entrada em circulação, com
os sucessivos alargamentos, o Euro teve alguns momentos críticos, em linha com o
desenvolvimento da crise sistémica, o último dos quais com a crise de 2007/2008 e a
subsequente crise das «dívidas soberanas» na Europa.
Houve promessas feitas a 2 de Maio de 1998, quando foi aprovada a lista dos 11 países
fundadores da zona Euro, que não vieram a concretizar-se, nomeadamente no que
concerne ao crescimento económico.
Na Agenda da Lisboa apontava-se para taxas de crescimento do produto de 3% ao ano,
mas na verdade o crescimento médio anual da zona Euro a 12 foi inferior a 1% (0,8%),
entre 2001 e 2020, quase três vezes inferior ao registado nas duas décadas anteriores.
Afirmava-se que o Euro traria um forte crescimento do emprego, contribuindo para a
redução dos elevados níveis de desemprego verificados na zona Euro, mas o que se
verificou foi um crescimento anémico, em termos médios de 0,6% ao ano, com uma taxa
de desemprego média de 9,3%, ou seja, quase 14 milhões de desempregados (mais de
16 milhões no caso da União Europeia a 15).
Em relação a Portugal, o pós-euro significou na prática estagnação económica e
divergência. O crescimento económico registado foi de 0,3% ao ano entre 2001 e 2020, o
que significa que crescemos a um ritmo 11 vezes inferior ao registado nas duas décadas
anteriores, tendo mesmo as taxas de crescimento médio anual sido negativas na última
década, ou seja, uma década perdida. Por outro lado, passamos de uma situação de
convergência antes do Euro, para uma situação de divergência com a zona Euro e a
União Europeia, situação que se agravou na última década.
Ao nível da evolução do emprego, passamos de um crescimento anémico antes do Euro
(0,5%), para um crescimento médio anual negativo (-0,2%) nas últimas duas décadas.
Registamos depois do Euro, em termos médios, mais 150 mil desempregados e a média
da taxa de desemprego anual passou dos 7,9% para os 10,2%.
Em relação a Portugal importa ainda salientar que em termos cumulativos o produto
cresceu mais de 72% desde 1981, enquanto o emprego apenas cresceu quase 7%, com
a emprego registado em 2013 a ficar ao nível de 1981.
Por outro lado, os desequilíbrios macroeconómicos agravaram-se, o que pode também
ser constatado nas disparidades crescentes dos saldos das balanças comerciais entre os
países que compõem a Zona Euro, com a existência de países «importadores líquidos» e,
por isso, devedores, com um nível de dívida crescente, como Portugal, Grécia e Espanha,
e de países «exportadores líquidos» e, por isso, credores, como a Alemanha.
Ao nível do saldo da balança de bens, em termos médios, o excedente alemão quase
quadruplicou depois do euro, enquanto o défice português, grego e espanhol mais que
duplicou, aumentando o peso do comércio intracomunitário.
No caso português, o défice de bens acompanha a redução da produção industrial, sinal
da progressiva desindustrialização nacional. Duas décadas que precederam o Euro, a
produção industrial crescia em média 3,1% ao ano, depois do Euro cresceu em média -
1%, acompanhado a uma tendência mais gravosa que a do crescimento do produto.
Desta breve análise parece evidenciar que o Euro deixou promessas por cumprir e criou
no seu seio perdedores, onde Portugal se pode incluir. Mas o Euro foi e é um grande
instrumento ao serviço da exploração e neste plano tem cumprido os seus objectivos. A
política monetária única serviu, não só para conter o crescimento dos salários, como para
garantir que os lucros crescessem a um ritmo superiores ao dos salários, contribuindo
para restaurar as condições de rentabilidade do capital.
Em Portugal e na zona Euro a taxa de crescimento dos salários reais tem vindo a
desacelerar de década para década, tornando-se, no caso de Portugal, mesmo negativa
na última década.
Depois do Euro os salários «cresceram», em termos médios, 0,1% ao ano em Portugal
(2,2% nas duas décadas que antecederam o Euro e 0,3% na zona Euro (cerca de
metade).
Em paralelo, depois do Euro, os lucros líquidos cresceram a um ritmo 23 vezes superior
ao dos salários reais em Portugal e mais de cinco vezes na zona Euro. Significativo é que
Portugal neste período registou uma redução dos custos unitários do trabalho, resultando
do efeito que depois do Euro, ter-se registado um crescimento da produtividade do
trabalho superior ao crescimento dos salários reais, evidenciando uma transferência dos
ganhos de produtividade do trabalho para o capital.
Depois do Euro, Portugal só registou aumentos dos custos unitários do trabalho em
períodos de recessão económica, tendo em conta o desfasamento do efeito de
ajustamentos dos salários à quebra do produto, com excepção do período 2017-2019.
A natureza de classe do Euro não pode ser dissociada da própria União Europeia. Como
processo histórico de resposta do capitalismo europeu às crises cíclicas que atravessa e
um elemento da concertação do capital ao nível europeu, o Euro é cada vez mais uma
peça fundamental do capital na ofensiva contra o trabalho e um elemento de afirmação
regional, na concorrência intercapitalista a nível mundial.
Um mecanismo, em paralelo com outros na União Europeia, de ingerência política,
económica e social, que põe em causa a soberania e a independência nacionais,
limitando de forma efectiva e não democrática alternativas endógenas de
desenvolvimento económico e social.
Temos que ter consciência que não existem saídas no actual quadro que não passem por
uma ruptura com o processo de integração capitalista europeia, com as políticas vigentes,
de fazer retornar aos Estados os instrumentos de política económica, monetária,
orçamental e cambial, assim como pôr no domínio público os sectores estratégicos que
permitam alavancar o desenvolvimento económico dos países, ao serviço dos
trabalhadores e dos povos, criando as condições para a transformação da sociedade.
O combate ao Euro, às orientações que lhe dão suporte e às políticas que viabiliza, é
parte indissociável desta luta mais geral por uma Europa de paz, progresso e cooperação.
(*) Intervenção no Debate «20 anos de Circulação do Euro: Passado, Presente e Futuro», promovido pelo
PCP no quadro do GUE/EVN no Parlamento Europeu, em 24 de Maio de 2022
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