AINDA AS NARRATIVAS DO 25 DE NOVEMBRO (II)
Agostinho Lopes
Estranho (ou talvez não) foi que a chuva das “narrativas” de revisão e reescrita da história do 25 de Novembro (em muito casos arrastando tudo o que aconteceu desde o 25 de Abril e o próprio 25 de Abril) tivesse também atingido a esquerda. Entre outros (1) vale a pena salientar o caso de Fernando Rosas, historiador e destacado fundador, dirigente e ex-deputado do BE. Não é propriamente uma novidade pois muitas das teses agora vindas a lume já estavam presentes, se bem que em linguagem académica, mais cuidada, ou cuidadosa, nos seus anteriores livros e particularmente em Ensaios de Abril (2023), em que, aliás, junta uma série de textos conhecidos sobre o 25 de Abril. Fernando Rosas ilustra na RTP1 (Telejornal, 28ABR24), quase poderíamos dizer legenda, com pequenas respostas a perguntas/afirmações de João Adelino Faria, uma peça televisiva com imagens que percorrem o processo revolucionário desde o 25 de Abril ao 25 de Novembro. Um filme com uma selecção e encadeamento de imagens que desde logo mistifica, manipula e desvirtua a Revolução de Abril, procurando confirmar e consolidar as ideias e teses centrais da direita e sectores do Partido Socialista, inclusive de historiadores e académicos dessas áreas políticas e ideológicas, particularmente marcadas pelo anti-comunismo e contra o PCP, sobre a Revolução de Abril. E Fernando Rosas vai alegremente atrás (ou à frente?) afirmando coisas verdadeiramente extraordinárias. Três amostras:
– Imagens das eleições para a Constituinte (25ABR25). Comenta F. Rosas: “O que se coloca a partir das eleições para a Constituinte é o que deve prevalecer: a legitimidade revolucionária ou a legitimidade das urnas. E a legitimidade das urnas era uma coisa fortíssima (…)”. Depois imagens e voz de Mário Soares na Fonte Luminosa, a que se segue F. Rosas: “O PS ganhou as ruas”. “Os erros, o dogmatismo, o sectarismo, a violência que o Partido Comunista cometeu no processo revolucionário fez com que haja uma parte da população (que) passa para o outro lado (…) e isso dá massa, dá gente (…) e o PS passa a ser um partido de grande mobilização na rua (…)”.
– Imagem de Vasco Gonçalves com o discurso “revolução ou reacção”, imagem do Grupo dos 9 – militares moderados, novamente F. Rosas: “Período de grande agitação social e política”. Imagens dos assaltos aos Centros de Trabalho do PCP de V. N. de Famalicão e Braga. Comenta F. Rosa: “A direita incendeia no Norte e Centro as sedes do PCP e outras organizações de esquerda, na sequência de homilias dos bispos (…)”.
– Imagens da Manifestação no Terreiro do Paço de apoio ao VI Governo Provisório com o Pinheiro de Azevedo. Diz F. Rosa: “O campo mais radical achou que era possível que o poder popular assaltasse o poder político (…)” “ambiente de pré-guerra civil”, “o que desse o 1.º passo estava lixado (…)”. Imagens e som do Juramento de Bandeira no Ralis e de Otelo a defender a organização do Poder Popular. Imagens do 25 de Novembro. Comentários de F. Rosas: “Momento de grande confronto”, “(…) os movimentos das forças foram rapidamente vencidos só pelas forças dos comandos (…)”, “País à beira da guerra civil”. “Houve o bom senso de negociar uma contenção do processo (…). Partido Comunista de um lado, fundamentalmente, e o Melo Antunes e ala dos 9, ala dos moderados do MFA (…)”. Imagens e som da intervenção de Melo Antunes. Comenta F. Rosas: “Não considero o 25 de Novembro uma contra-revolução (…) foi uma contenção negociada, pactuada, do processo revolucionário, da qual saiu a institucionalização da democracia, com a Constituição (…)”.
Isto é, para F. Rosas a Revolução perdeu-se por responsabilidade do PCP . «Os erros, o dogmatismo, o sectarismo, a violência» do PCP. Não foi a intervenção das forças de direita, do capital e do latifúndio, do PS e de outros partidos (PSD, CDS,…), que debaixo da sua asa se abrigaram, de importantes sectores da hierarquia católica e de revanchistas fascistas do regime deposto, das tropelias do “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”, inclusive do seu MRPP (inclusive no assalto aos Centros de Trabalho do PCP), do imperialismo norte-americano (lembrar sempre Carlucci) e da social democracia europeia. Não. Foi o PCP!
Para F. Rosas o 25 de Novembro não foi “uma contra-revolução” foi “uma convenção negociada, pactuada, do processo revolucionário”! Nesta entrevista perdeu a oportunidade de dar o padrinho e nome com que classificou a acção do PCP no PREC nos Ensaios de Abril como a concretização da “Estratégia Ponomariev”! Poderia ter aproveitado para classificar a contra-revolução com o nome que internacionalmente assumiu noutros países “Método Jacarta”. Mas simplesmente estranho, porque é difícil aceitar que seja incoerência, é que o mesmo F. Rosas publicou no “Destacável do Expresso” de 25 de Abril um artigo sob o título “CONTRAREVOLUÇÃO” (assim tudo em maiúsculas) onde se pode ler: “O ambiente que se vive por estes dias no país convida-me a escrever sobre a face oculta da Revolução de 1974/75 de que geralmente pouco se fala: a contrarevolução que fluiu permanente e antagonicamente com aquela”. Vá lá a gente compreender: a mesma contra-revolução que F. Rosas tinha eliminado no Telejornal de 24 de Abril e nos Ensaios de Abril de 2023! A “contrarevolução” que no texto/descrição de F. Rosas percorre os principais golpes, organizações e operações – o 28 de Setembro, o 11 de Março, a rede bombista/MDLP, as bombas mortíferas na Embaixada de Cuba e contra o Padre Max e recorda figuras e figurões como Spínola e Pacheco de Amorim, não chega contudo ao seu “Happy End”, o golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro. Porquê? Por que não é finalizado o artigo com a “contrarevolução” em Novembro? Será porque o seu autor à data tinha como Partido o MRPP que, por acaso, estava do lado da contra-revolução e dos contra-revolucionários? Mais um “mistério” para os historiadores desvendarem, se puderem...
Mas há outra interpretação do 25 de Novembro assente nos factos e acontecimentos que muitos ainda viveram.
“Marcante será a acção do PS após as eleições de Abril para a Assembleia Constituinte, que passa a assumir claramente a liderança de oposição à evolução do processo de transformações e de liquidação do capital monopolista, este há muito empenhado na desestabilização e sabotagem da situação económica e social do País. A saída do PS do governo provisório em Julho de 1975, arrastando consigo o PSD, foi uma acção deliberada, com o objectivo de dividir o movimento popular, as forças progressistas, o MFA e criar uma profunda crise político-militar, como a que acabou por se instalar, pondo termo aos governos de coligação e forçar a saída dos comunistas do governo. O desencadear, acto contínuo, das acções terroristas e bombistas, visando as forças políticas progressistas, particularmente o PCP, inseriram-se nesse propósito, com o objectivo de inverter o processo democrático aberto pela Revolução. Não é rasurável o papel desenvolvido pelo PCP na procura de uma solução política para a crise político-militar que se agudizava a cada dia que passava, num esforço continuado, onde estão presentes propostas de encontros bilaterais e multilaterais das principais forças e sectores que podiam encontrar uma solução. Assistiu-se, contudo, à continuação do agudizar do conflito e ao encontrar de pretextos para acentuar divisões. Uma crise que exigia também um esforço de reaproximação e entendimento entre os vários sectores do MFA.
O 25 de Novembro de 1975 culminou este período com um golpe militar da direita aliada aos denominados «moderados» de que resultou a derrota da esquerda militar, a dissolução efectiva do MFA e, por esta forma, a perda da componente militar da revolução. Este golpe significou um grave retrocesso que só não foi fatal para o próprio regime democrático, como afirmou Álvaro Cunhal, graças à justa posição do PCP na procura de uma solução política para a crise e, igualmente, aos esforços de importantes figuras militares que, a tempo, tomaram consciência desse perigo.” (2)
Muito mais haverá a fazer na batalha pela desmistificação, pelo combate à reescrita e revisão da história, pelo levantar de véus e visões fabricados pelos ideólogos da reacção e do fascismo… que não gostaram nada do 25 de Abril. E nesse esclarecimento permanece como uma obra incontornável, pese a existência hoje de novas e valiosas contribuições, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se) de Álvaro Cunhal.
(1) Caso também de Raquel Varela, de quem nunca devemos desesperar de obter novidades: “O fim da Revolução dá-se por uma fórmula inovadora que será depois aplicada na América Latina nos anos 80. Mário Soares lidera esta “contrarevolução democrática” a 25 de Novembro de 1975, quase sem mortos e com amplas cedências; o PCP, por sua vez, aceitou não resistir, assumindo, pela mão de Álvaro Cunhal, que a esquerda militar se tinha tornado um fardo para o PCP”. “Faz sentido Comissão para o 25 de Novembro?”, Expresso, 03MAI24. Parece claro que a historiadora não foi informada da experiência de Carlucci em matéria de contra-revoluções...
(2) Da intervenção de Rui Fernandes “A Contra-Revolução – uma visão global”, na Conferência 25 de Abril uma Revolução libertadora e emancipadora. Abril é mais futuro, promovida pelo PCP e realizada em Almada a 07ABR24.
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