Linha de separação


13 de abril de 2011

O PEQUENO DICIONÁRIO CRÍTICO - 10 – FLEXIBILIDADE - I

O princípio racional para discutir qualquer tema é precisar com exactidão o significado das palavras e conceitos usados. Concretamente, a grande proposta que o neoliberalismo tem para além do que já obteve, resume-se a isto: flexibilidade laboral – o resto são visões à Pinóquio e boas intenções em oximoros.
Então de que falamos quando falamos em flexibilidade. Flexibilidade consiste na qualidade de ser flexível, maleável; facilidade de se dobrar ou curvar; facilidade de se adaptar a diferentes situações; facilidade de ser utilizado ou manejado; complacência, docilidade, capacidade de se adaptar aos interesses de alguém.
É este o significado da palavra que constitui a trave mestra do pensamento social neoliberal. Porventura se descobre aqui algo que tenha que ver com progresso humano?
É isto que a filosofia “personalista” e da “sociedade aberta” tem para oferecer? Sim, exalta-se o “indivíduo”, solitário, isolado, para melhor se adaptar aos interesses de alguém certamente dos mais poderosos, protegidos pelo amaldiçoado Estado e pelos abençoados interesses das transnacionais.
É certo que qualquer ser vivo para sobreviver tem de procurar adaptar-se ao meio ambiente, mas pelo mesmo princípio tem de reagir aos agentes externos que possam limitar a sua afirmação vital. Adaptar-se, mas em função de que valores? E sem reagir?
Escreve Arno Gruen em “A traição do Eu”: “a obediência ao poder e à autoridade conduz em geral à negação dos sentimentos humanos”, “o omnipresente processo de adaptação pode levar-nos a recalcar a nossa humanidade”.
Que autonomia tem um trabalhador “flexibilizado”, precário, se não recalcar a sua humanidade, desumanizar-se em nome de contestáveis e arbitrariamente impostas eficiências e produtividades?
Nestas convicções paira sempre a ideia que o somatório de todos os egoísmos individuais resulta no maior bem colectivo, o maior bem social. Talvez, por mera hipótese, isto fosse possível em abstracto, com a condição de nenhum dos intervenientes dispor de maior poder económico, social ou qualquer outro que os demais. Além de se tratar de um absurdo, seria humanamente indesejável e um detestável igualitarismo.  Convém, além disto, reparar que aos trabalhadores, enquanto tal, não é permitido o tão “benfazejo” egoísmo.
Tudo isto tem a sua lógica: uma das medidas consensuais do liberalismo do fim do século XVIII, princípios do século XIX, foi a famosa lei Chapelier que proibia as associações de trabalhadores na defesa dos seus interesses. Essas associações que posteriormente se designariam sindicatos seriam uma diminuição da livre concorrência e da liberdade….Só na década de 60 do século XIX a lei depois de muitas lutas – duramente reprimidas – foi revogada. As intenções persistem e os argumentos também.
Em nome da flexibilidade pretende-se acabar com a “subsídio dependência” – termo para apoios sociais – para “desenvolver a iniciativa”. Estranha contradição, quando a crise levou à falência neste país dezenas de MPME por dia! Será que não se entende que sem estimular a procura não há investimento nem “iniciativa” que valha.
Estranha contradição, sim, numa economia dominada por monopólios rentistas e pela especulação financeira sob a protecção do Estado, enquanto que tanto por cá como nos países da “economia de sucesso” milhares de milhões de euros ou dólares foram utilizados para salvar banqueiros falidos ou fraudulentos e para a reestruturação de grandes empresas cuja principal medida imediata foi proceder a despedimentos maciços. Estranha contradição esta da “subsídio dependência” para os desempregados quando as únicas medidas toleradas pelo neoliberalismo são os subsídios directos ou indirectos – por redução de impostos e por bonificações – às grandes empresas com o argumento de criar emprego. Os factos mostram que com estes apoios/subsídios o desemprego aumentou sempre.
Claro que os mitos sobrepõem-se á realidade quando fortes interesses estão em causa. Diz-se então que nenhum empresário despede um trabalhador se ele for produtivo. “Seria um contra-senso”. Terna ingenuidade – ou nem tanto – esta do “homo economicus”, perfeitamente racional e motivado exclusivamente por puras considerações de eficiência. Como se não houvesse motivações políticas, antisindicais, pessoais ou mesmo sexuais. Porém, mesmo em termos de pura racionalidade económica é muito mais conveniente despedir um trabalhador com contrato e um salário que tenha que ver com direitos adquiridos e admitir outro, ou o mesmo, como também ocorre, mas na situação de precariedade e com o salário mínimo. A flexibilidade aí está para criar o tal “exército de reserva” da força de trabalho…
Nesta visão, os seres humanos dividem-se assim em duas espécies distintas: os puros,  detentores do capital e dos meios de produção, perfeitamente racionais e imprescindíveis patriotas, e a corja que apenas dispõe das suas capacidades físicas e intelectuais para sobreviver. A corja tem de se submeter à arbitrariedade e ao julgamento discricionário dos primeiros, que seriam juízes isentos em causa própria e acima de toda a suspeita. Uma questão surge: o que é que isto que ver com a “herren volk”, a “raça dos senhores” do nazi-fascismo? Ou com o “homem superior” do sr. Nietzche?
Flexibilizar o emprego é no fundo, flexibilizar o desemprego. É esta a cobertura – não lhe chamemos ideologia – da demagogia neoliberal. É isso que se pretende, de forma expedita e barata ao critério da arbitrariedade que o próprio sistema impõe independentemente das pessoas. Dizia Marx que o capitalista pode ser um cidadão exemplar, talvez membro de uma associação para a abolição dos maus tratos aos animais e, ainda por cima, ter fama de santidade, mas enquanto capitalista ele é apenas capital personificado e neste sentido, obedece e procede segundo a lógica do sistema.
Vale a pena lembrar o que o pessimista Schopenhauer perante a sociedade do seu tempo, que se pretende aceleradamente ressuscitar, escreveu: “Faz pouca diferença essencialmente ser dono do camponês ou da terra que ele trabalha, da ave ou do seu alimento, do fruto ou da árvore; como diz Shylock: “tirais-me a vida quando tomais os meios que me permitem viver” (Shakespeare - O Mercador de Veneza, Acto IV). “A pobreza e a escravatura são, pois, apenas duas formas – talvez pudesse dizer duas palavras - da mesma coisa, cuja essência é que as energias de um homem se gastam na sua maior parte, não em seu favor mas em favor dos outros; o resultado é em grande parte ele ficar sobrecarregado de trabalho e, em parte, as suas necessidades serem inadequadamente satisfeitas”.

 A seguir: 11 – Flexibilidade - II

Sem comentários: