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24 de março de 2021

Marta Temido a justificar o injustificável

Marta Temido nem sempre acerta

 A ministra da Saúde reiterou ontem na Assembleia da República uma vez mais a intenção do Governo de cumprir o objetivo de ter 80% da população acima dos 80 anos vacinada ,até ao fim deste mês . Mas isto é um feito? Dito de outra maneira , até ao fim deste mês ainda haverá 20% da população com mais de 80 anos que não está vacinada e praticamente a totalidade da população dos 70 aos 80 , população também de alto risco sem vacinação . Aliás é absurdamente o grupo etário com menor vacinação depois de se ter introduzido a subjectivação da morbilidade nos critérios...Mas a questão central é , como se sabe, a falta de vacinas e sobre isto a Presidência Portuguesa na UE limita- se a não fazer ondas .

Marta Temido  disse também que levantar patentes não resolve problemas de abastecimento das vacinas ,pois o problema está na falta de capacidade de fabrico , o que é completamente falso. Repetiu a desculpa da Comissão Europeia que não quer enfrentar a big Pharma. Se não resolvesse o problema porque razão a OMS insiste nessa proposta ? As empresas produtoras de vacinas no Ocidente não querem subcontratar outros laboratórios para a sua produção , querem o máximo lucro . A UE nem sequer tem a coragem de fazer , o que fez Biden , declarando o estado de guerra na produção das vacinas,

Marta Temido e António Costa fariam bem em ler a entrevista de José  Aranda da Silva primeiro presidente do Infarmed ao SOL:

 "Tem defendido que é urgente haver medidas para aumentar a produção. Como se explica a resistência que tem havido dos países mais ricos e da UE em discutir o levantamento de patentes ou licenças compulsórias, como já defendeu até o diretor da OMS?

"Tenho dificuldades em perceber. E de facto não vemos a Comissão Europeia e mesmo a presidência portuguesa tomar uma atitude firme como a que tomou o Presidente Biden nos EUA. Biden chamou as grandes empresas, as que tinham vacinas da covid-19 e as que não tinham mas produzem outro tipo de vacinas como a Merck, e foi muito claro: ‘Ou os senhores produzem noutros laboratórios ou eu intervenho usando mecanismos legais e resolvo o problema’. E nos EUA a produção de vacinas já não está a ser feita só nas fábricas da Pfizer e Moderna mas nas fábricas da Merck por exemplo. Na Europa nada.

Escreveu há dias que é preocupante a passividade da Comissão Europeia e da Presidência da União Europeia em confrontar os grandes interesses. Os Governos europeus estão reféns das farmacêuticas?

O que vejo é que não têm tido capacidade de exigir mais e isso é incompreensível. E não venham com histórias: a capacidade de produção de vacinas na Europa, ao contrário do que se tem pretendido dizer, é excedentária e não está a ser toda utilizada. É insuficiente com certeza nas fábricas da Pfizer e da AstraZeneca, mas há outros laboratórios, a Merck, a Recipharm, a Novartis... Há vários laboratórios com fábricas na Europa que podiam estar a produzir as vacinas. E mesmo sem pôr em causa as patentes, que é uma situação mais complicada, os países podem obrigar as empresas a conceder licenças de fabrico a outros laboratórios.

A discussão está em cima da mesa na Organização Mundial do Comércio deste outubro, por proposta da Africa do Sul e Índia, mas tem sido sucessivamente bloqueada. Pode virar-se contra nós?

Possivelmente. O que nos interessa a nós, europeus e americanos, vacinar as pessoas se mantivermos o resto do mundo sem cobertura vacinal? Que variantes podem surgir nesses países? O combate à covid-19 não pode ficar pelos países ricos se não o comércio, o turismo, ficará sempre condicionado. No meio disto não podemos ficar na mão dos interesses do mercado e não fazer tudo o que é possível para aumentar rapidamente a produção de vacinas.

Quando diz que há capacidade que não está a ser aproveitada, cá também?

Em Portugal não há fábricas capazes de produzir vacinas, mas há fábricas com capacidade para fazer o enchimento, que é outro dos estrangulamentos que está a haver a nível mundial.

Colocar o líquido nos frasquinhos?

Sim, naqueles frascos depois de onde são tiradas as doses. Em Portugal conheço várias fábricas com capacidade de enchimento.

O laboratório militar também poderia fazê-lo?

Não, o laboratório militar que agora se chama Laboratório Nacional do Medicamento, neste momento não tem condições mas está no seu estatuto poder produzir vacinas. O primeiro-ministro esta semana referiu isso no Parlamento mas espero que não seja uma afirmação palavrosa, porque é preciso investir. Quando fui diretor do laboratório militar há 20 anos fizemos estudos sobre isso, devem estar num qualquer arquivo. É perfeitamente possível o laboratório militar ter uma fábrica de vacinas, é só uma questão de vontade política.

E de investimento.

Sim, mas o que vamos gastar em vacinas da covid-19 só este ano, 100 milhões de euros, é mais do que custa construir uma fábrica de vacinas. Mas isto tem de ser pensado com antecedência. Vai haver agora uma fábrica de vacinas no Norte, em colaboração com uma empresa espanhola, e Portugal tem perfeitamente condições para desenvolver esta área. Temos uma capacidade produtiva de medicamentos bastante grande e a maior parte dos medicamentos em Portugal são para exportação. Exportação para a Europa, para países como Alemanha, Reino Unido, França, países exigentes na qualidade dos medicamentos que recebem. Mas isto não é uma solução para o problema das vacinas da covid-19 a curto prazo. No imediato, o que devia estar a ser utilizado e não está a ser são fábricas que existem em França, Itália, de outros laboratórios e que já fabricam vacinas. O fabrico de medicamentos hoje em dia já não é o core business das grandes companhias. O core business é investigar e colocar no mercado novos medicamentos. Muitas das grandes companhias trabalham com fábricas na Índia, na China, noutros países. Em Portugal, a maioria das fábricas fecharam nos últimos 20 anos e produzem fora da Europa, onde sai mais barato. Numa situação destas, não é aceitável não se estar a usar toda a capacidade.

Seria possível antecipar em quantos meses a vacinação?

Era preciso fazer um levantamento da capacidade. E isto pode envolver infraestruturas de vários países. Há uns tempos dei um exemplo de um medicamento, que no caso não era uma vacina mas um medicamento biológico, o que tem algumas semelhanças com vacinas. É sintetizado em Birmingham, o enchimento é feito na Holanda porque é mais barato e o embalamento é feito em Portugal.

Vai do Reino Unido para a Holanda num contentor.

Sim, isto é normal hoje no processo de fabrico de medicamentos. Porque é que nas vacinas da covid-19 não se procuram soluções deste tipo? Naturalmente que temos quatro tipo de vacinas diferentes e isso exigirá diferentes condições, mas nada é impossível.

Mas supondo-se que os países sabem isso, está a dizer que são as pressões das farmacêuticas que o têm impedido?

São. As grandes companhias podem ter receio que a vulgarização as obrigue a baixar os preços, mas não é aceitável estarmos no meio de uma pandemia a sujeitar-nos a isto. É inclusive contra as proprias regulações internacionais do comércio mundial, que admitem que em situações excecionais podem ser feitas licenças compulsórias. Está tudo previsto.

Conhecendo o meio, são pressões de que forma? Explícitas? 

Ameaçam que não produzem, que não fazem. Tem de ser contrariado. Como dizia o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde há 15 dias, se não é agora que se se utilizam esses mecanismos dos tratados internacionais que estão à disposição dos Governos, se não é no meio de uma pandemia com este impacto, quando é? Pior que isto nos próximos anos não deve haver.

Não pode haver alguma hesitação dos países por não terem a certeza de que conseguirão fazê-lo depois de acionarem esses mecanismos? Se a qualidade será a mesma? Se as pessoas vão confiar?

Produzir medicamentos em terceiros é o normal na indústria farmacêutica há mais de 20 anos. Na maioria das grandes companhias internacionais a produção não é feita em fábricas próprias. Têm lá os seus auditores e inspetores para assegurar a qualidade, mas descentralizaram a produção. É um procedimento que já existe e dizer o contrário é bluff, é uma falácia. E os países têm estado a aceitá-lo, quando estamos numa pandemia e cada dia que atrasa na cobertura vacinal corresponde a milhares de mortes e a uma crise económica com milhares de pessoas no desemprego, com muitas pessoas a passar fome. E isso é o que temos de atalhar. E isto é um problema que já vinha de trás na Europa. Os EUA não brincam em serviço. Nos últimos 20 anos não só nos medicamentos mas nos telemóveis como na indústria da defesa, usaram licenças compulsórias. Nos medicamentos com antirretrovirais, com medicamentos para o glaucoma. Estavam com dificuldades de abastecimento e obrigaram os detentores de patentes a produzir noutros laboratórios. Aconteceu em 2001, em 2005, em 2007. Quando foi do Tamiflu na pandemia de 2009, obrigaram a Roche a ceder a licença. Na altura felizmente não houve uma maior disseminação, mas ao início estávamos assustados.

Comportará sempre mais investimento. 

Estamos numa catástrofe mundial e o que nos deve preocupar são as mortes, o desemprego, a crise económica. Não é admissível que esta ou aquela empresa esteja a jogar a sua capitalização bolsista em plena crise. É um crime contra a humanidade. Uma empresa, qualquer que ela seja, pôr os seus interesses ou dos seus acionistas em primeiro lugar e privilegiar a capitalização bolsista das suas ações e estar-se marimbando para a morte e crise económica é um crime.

Coloca o ónus nas empresas?

Nas empresas e no poder político que não intervém.

Geralmente as pessoas que trabalham no setor do medicamento têm uma visão um pouco mais compreensiva do que são os custos da inovação...

Nada disso está em causa, mas neste momento, e falo com muitas pessoas, há muitas companhias farmacêuticas que estão preocupadas. O que está a acontecer põe em causa a imagem da indústria farmacêutica mundial. Sabemos que já não tem uma grande imagem, fala-se da big pharma, mas a imagem vai piorar pelo comportamento de algumas companhias. O mais difícil foi de facto investigar e chegar às vacinas, mas não nos podemos esquecer que chegámos lá também com dinheiros públicos. A rapidez com que chegámos a estas vacinas deveu-se à capacidade da Comissão Europeia e do Governo norte-americano de financiar com quantias muito elevadas as atividades que estavam a ser desenvolvidas por estas empresas. Agora produzir um medicamento não é a parte mais complicada.

Mas está a ser.

Está a ser porque não lhes convém. E esse é o jogo de tentar controlar a oferta e procura e isso não podemos aceitar. Isto acontece em todos os lados, nas pessoas, nas empresas, nas instituições. O dinheiro compra tudo. Mas temos de ter mecanismos que defendam o bem-estar das populações.

Quando fala de passividade da presidência portuguesa, o que gostava de ouvir de António Costa?

O primeiro-ministro disse esta semana no Parlamento que estava a fazer o máximo possível e descartou um bocado a questão das patentes. Isto não é um problema de patentes, é um problema de produção. Gostava de saber que levantamento foi feito sobre a capacidade produtiva na União Europeia. Em Portugal sei que foi extremamente incompleto. Sei que não foi feito um levantamento rigoroso da capacidade de Portugal de enchimento de vacinas. Se foi assim cá, sei lá que levantamento foi feito a nível europeu. A Novartis em dezembro ou janeiro anunciou que tinha uma fábrica em Itália disponível, nunca mais se falou nisso. Vamos continuar a precisar de vacinas, vacinas adaptadas às variantes, estamos à espera de quê?

A vacina russa e chinesa vão ser aprovadas a nível europeu?

A russa penso que é uma questão de semanas para ser aprovada pela Agência Europeia do Medicamento. E os chineses também já estão em contactos. E repare, a AstraZeneca também vai ter fábricas na China e os chineses querem vir para cá.

E sendo países com regulação diferente, pode confiar-se nos ensaios?

Hoje os ensaios são globais. Desde que cumpram os requisitos de agências reguladoras credíveis e sejam aprovadas, com certeza. São países com capacidade produtiva de medicamentos há muitos anos. Não podemos confundir ideologia com ciência.

Mas podemos questionar-nos sobre os ensaios, não é tão fácil ter acesso a informação em russo e em chinês.

É verdade, mas o que levou a desbloquear a credibilidade da vacina russa foi um artigo na Lancet. As regras da ciência são as mesmas. Os chineses também publicam muito em revistas científicas e têm-no feito desde o início da pandemia.




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