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6 de março de 2021

Vacinas e mercado

 


Agostinho Lopes

A pandemia tem sido um admirável e eficaz «revelador». Para lá dos inspirados

discursos sobre as «produções estratégicas nacionais» de Macron e Costa, entre

muitos outros, da recuperação (melhor dizendo, ressuscitação) do verbo

«planear» em todos os tempos, modos e conjugações verbais, de insuspeitas

declarações sobre a «reforma do capitalismo», a pandemia precipitou todo um

debate sobre o papel da empresa privada versus Estado na produção e

distribuição das vacinas.

Depois de um momento inicial – com o aparecimento da vacina da Pfizer –, em

que as vacinas foram proclamadas como a suprema demonstração da eficácia e

superioridade da «iniciativa privada», do «mercado» e dos mecanismos

capitalistas (1), as coisas embrulharam-se e as dúvidas, mesmo em quem não as

tinha, são muitas. E, dir-se-à, justificadas.

Os mercados não parecem ser aquelas «instituições de coordenação social

descentralizadas» (2) justas e eficazes. E o «ensaio contra o “grande capital”»,

em que «as maiores empresas são perseguidas e desencorajadas da sua função

social» (2), ganhou um notável fôlego na contemplação das manobras e

negociatas das multinacionais farmacêuticas de casa e pucarinho com os seus

conselhos de administração da UE e dos EUA.

O «livre mercado» é totalmente subvertido, desvirtuado e «a sua função social»

reduzida ao balanço dos euros e dólares. Aos olhos de todos estão as dádivas

dos custos públicos da investigação fundamental; os adiantamentos de dezenas

de milhares de milhões de cifrões por encomendas garantidas; as cláusulas de

seguros públicos sobre possíveis pedidos futuros de indemnizações dos

vacinados; as garantias absolutas da propriedade inviolavelmente privada das

patentes, mesmo que construídas à custa dos dinheiros públicos (só a UE terá

investido 21,7 mM€ no desenvolvimento das vacinas); o segredo do negócio no

preto e branco dos contratos e a monopolização dos mercados pelas “nossas

empresas”, com a ocultação mediática e exclusão política das vacinas russas,

chinesas e cubanas (para os media portugueses estas ainda não existem!)

É por isso que Durão Barroso, que alguns dizem ter sido 1.o Ministro de Portugal),

mas foi de certeza absoluta Presidente da CE e é actual Vice-Presidente (não

executivo) da Goldman Sachs, à frente da COVAX, ainda não nos conseguiu

explicar quando e como vão as vacinas chegar aos pobres deste mundo. Mas


estarão a chegar com abundância aos paraísos fiscais... Segundo o Director-

Geral da OMS «mais de 94% dos países que já estão a vacinar a sua população


são ricos, e 75% das doses foram distribuídas a apenas dez países.» (Público,

09FEV21). Parece que faltam 1,6 mM€ (como?) segundo a GAVI/COVAX...

É por isso que se arrepelam os cabelos porque «O acesso à vacina está a

acentuar a diferença entre o Norte e Sul, entre ricos e pobres e principalmente

entre quem já foi vacinado e quem não foi» (3). Parece que afinal o mercado, o

capital privado e as suas instituições não estão preocupados com os temas

«morais e éticos» (3). Os mercados são lixados!...

É por isso que outros e outras acham que não está certo o negócio da UE com as

multinacionais. E depois dos elogios iniciais ao negócio, feito em nome do «ideal

europeu» e à Sra Presidente Von der Leyen, dizem agora cobras e lagartos (4)...

Mas «há que acreditar» porque com os nossos «governantes», os nossos

«especialistas» nem íamos «comprar a vacina a tempo e horas, planear (cá está

o verbo!) decentemente, pagar, nem em 2025 tínhamos a primeira pica. Planear

(outra vez) não faz parte do nosso «ethos e pagar ainda menos. Uma borla é,

como a raspadinha, o sonho de todos os portugueses. Desprezar uma borla,

mesmo arriscando vidas, é insuportável. Acreditemos, é melhor assim, e sempre

se salva o ideal europeu que acaba de decidir que não compra vacinas aos

russos porque eles humilharam um europeu de Bruxelas chamado Borrell (...)»

(5) Valha-nos deus...

Choram os crocodilos e as mandíbulas abertas não deixam sossegar as almas

piedosas... É por isso que o inefável Barreto quer que regressem «as lutas de

classe» (6), e um outro inefável, mas economista (7), quer um Draghi em S.

Bento. Já agora um em cada capital europeia... Barcelos pode ganhar uma

fortuna a fazê-los de barro. Ou pelo menos, canecas com a cara do nunca assaz

louvado Presidente do BCE e etc...

(1) Por outros, Henrique Raposo, depois de outras pérolas: «(...) as vacinas

mostram a vitalidade insuperável do mercado enquanto mecanismo de resolução

de problemas.», Expresso, 25NOV20.

(2) Álvaro Nascimento, Jornal de Negócios, 19JAN21.

(3) J. Vieira Pereira, Expresso, 19FEV21.

(4) T. de Sousa, C. F. Alves, H. Monteiro e etc.

(5) C. Ferreira Alves, Revista Expresso, 26FEV21.

(6) António Barreto, Público, 20FEV21.

(7) J. Veiga Sarmento, Público, 20FEV21.

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