Agostinho Lopes
A pandemia tem sido um admirável e eficaz «revelador». Para lá dos inspirados
discursos sobre as «produções estratégicas nacionais» de Macron e Costa, entre
muitos outros, da recuperação (melhor dizendo, ressuscitação) do verbo
«planear» em todos os tempos, modos e conjugações verbais, de insuspeitas
declarações sobre a «reforma do capitalismo», a pandemia precipitou todo um
debate sobre o papel da empresa privada versus Estado na produção e
distribuição das vacinas.
Depois de um momento inicial – com o aparecimento da vacina da Pfizer –, em
que as vacinas foram proclamadas como a suprema demonstração da eficácia e
superioridade da «iniciativa privada», do «mercado» e dos mecanismos
capitalistas (1), as coisas embrulharam-se e as dúvidas, mesmo em quem não as
tinha, são muitas. E, dir-se-à, justificadas.
Os mercados não parecem ser aquelas «instituições de coordenação social
descentralizadas» (2) justas e eficazes. E o «ensaio contra o “grande capital”»,
em que «as maiores empresas são perseguidas e desencorajadas da sua função
social» (2), ganhou um notável fôlego na contemplação das manobras e
negociatas das multinacionais farmacêuticas de casa e pucarinho com os seus
conselhos de administração da UE e dos EUA.
O «livre mercado» é totalmente subvertido, desvirtuado e «a sua função social»
reduzida ao balanço dos euros e dólares. Aos olhos de todos estão as dádivas
dos custos públicos da investigação fundamental; os adiantamentos de dezenas
de milhares de milhões de cifrões por encomendas garantidas; as cláusulas de
seguros públicos sobre possíveis pedidos futuros de indemnizações dos
vacinados; as garantias absolutas da propriedade inviolavelmente privada das
patentes, mesmo que construídas à custa dos dinheiros públicos (só a UE terá
investido 21,7 mM€ no desenvolvimento das vacinas); o segredo do negócio no
preto e branco dos contratos e a monopolização dos mercados pelas “nossas
empresas”, com a ocultação mediática e exclusão política das vacinas russas,
chinesas e cubanas (para os media portugueses estas ainda não existem!)
É por isso que Durão Barroso, que alguns dizem ter sido 1.o Ministro de Portugal),
mas foi de certeza absoluta Presidente da CE e é actual Vice-Presidente (não
executivo) da Goldman Sachs, à frente da COVAX, ainda não nos conseguiu
explicar quando e como vão as vacinas chegar aos pobres deste mundo. Mas
estarão a chegar com abundância aos paraísos fiscais... Segundo o Director-
Geral da OMS «mais de 94% dos países que já estão a vacinar a sua população
são ricos, e 75% das doses foram distribuídas a apenas dez países.» (Público,
09FEV21). Parece que faltam 1,6 mM€ (como?) segundo a GAVI/COVAX...
É por isso que se arrepelam os cabelos porque «O acesso à vacina está a
acentuar a diferença entre o Norte e Sul, entre ricos e pobres e principalmente
entre quem já foi vacinado e quem não foi» (3). Parece que afinal o mercado, o
capital privado e as suas instituições não estão preocupados com os temas
«morais e éticos» (3). Os mercados são lixados!...
É por isso que outros e outras acham que não está certo o negócio da UE com as
multinacionais. E depois dos elogios iniciais ao negócio, feito em nome do «ideal
europeu» e à Sra Presidente Von der Leyen, dizem agora cobras e lagartos (4)...
Mas «há que acreditar» porque com os nossos «governantes», os nossos
«especialistas» nem íamos «comprar a vacina a tempo e horas, planear (cá está
o verbo!) decentemente, pagar, nem em 2025 tínhamos a primeira pica. Planear
(outra vez) não faz parte do nosso «ethos e pagar ainda menos. Uma borla é,
como a raspadinha, o sonho de todos os portugueses. Desprezar uma borla,
mesmo arriscando vidas, é insuportável. Acreditemos, é melhor assim, e sempre
se salva o ideal europeu que acaba de decidir que não compra vacinas aos
russos porque eles humilharam um europeu de Bruxelas chamado Borrell (...)»
(5) Valha-nos deus...
Choram os crocodilos e as mandíbulas abertas não deixam sossegar as almas
piedosas... É por isso que o inefável Barreto quer que regressem «as lutas de
classe» (6), e um outro inefável, mas economista (7), quer um Draghi em S.
Bento. Já agora um em cada capital europeia... Barcelos pode ganhar uma
fortuna a fazê-los de barro. Ou pelo menos, canecas com a cara do nunca assaz
louvado Presidente do BCE e etc...
(1) Por outros, Henrique Raposo, depois de outras pérolas: «(...) as vacinas
mostram a vitalidade insuperável do mercado enquanto mecanismo de resolução
de problemas.», Expresso, 25NOV20.
(2) Álvaro Nascimento, Jornal de Negócios, 19JAN21.
(3) J. Vieira Pereira, Expresso, 19FEV21.
(4) T. de Sousa, C. F. Alves, H. Monteiro e etc.
(5) C. Ferreira Alves, Revista Expresso, 26FEV21.
(6) António Barreto, Público, 20FEV21.
(7) J. Veiga Sarmento, Público, 20FEV21.
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