Jair Bolsonaro: Um Monstro criado pela nossa imprensa
Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais do Brasil , os fatalistas das elites ocidentais estão de novo em cena. O seu sucesso, como o de Donald Trump, confirmou um preconceito de longa data: que não se pode confiar nas pessoas; que, quando têm poder, estas comportam-se como uma multidão impulsionada por desejos primitivos; que as massas encardidas ameaçam agora derrubar os pilares da civilização que foram cuidadosamente levantados.
Os guardiões do status quo recusaram aprender a lição com a eleição de Trump, e assim acontecerá com Bolsonaro. Em vez de empregarem as faculdades intelectuais que eles reivindicam como sendo exclusivamente suas, os “analistas” e “especialistas” ocidentais, estão novamente a desviar o olhar daquilo que pudesse ajudá-los a entender o que levou as nossas supostas democracias aos lugares sombrios habitados pelos novos demagogos. Em vez disso, como sempre, a culpa está a ser diretamente enfocada nas redes sociais.
As redes sociais e as notícias falsas são aparentemente as razões pelas quais Bolsonaro ganhou nas urnas. Sem os guardiões no local para limitar o acesso à “imprensa livre” – em si o brinquedo de bilionários e corporações globais, com marcas e resultados para proteger – a plebe supostamente foi liberada para dar expressão ao seu fanatismo inato.
Aqui está Simon Jenkins, um veterano guardião britânico – ex-editor do The Times de Londres que agora escreve uma coluna no The Guardian – pontificando a Bolsonaro:
“A lição para os defensores da democracia aberta é manifesta. Os seus valores não podem ser tomados como garantidos. Quando o debate não é mais realizado através da mídia regulada, tribunais e instituições, a política reverterá aos padrões da populaça. As redes sociais – outrora aclamada como agente de concórdia global – tornou-se num fornecedor de falsidades, raiva e ódio. Os seus algoritmos polarizam a opinião. Sua pseudo-informação leva os argumentos aos extremos “.
Este é agora o consenso paradigmático da mídia corporativa, seja nas suas encarnações de direita ou no lado liberal-esquerdo do espectro, como no The Guardian. As pessoas são estúpidas e precisamos ser protegidos dos seus instintos básicos. As redes sociais, afirmam, desencadearam o id da humanidade.
Vendendo a plutocracia
Há um elemento de verdade no argumento de Jenkins, mesmo que não seja o pretendido. As redes sociais libertaram de facto as pessoas comuns. Pela primeira vez na história moderna, estas não eram simplesmente os recipientes de informação oficial sancionada. Não eram apenas os ouvintes dos seus superiores, poderiam responder de volta – e nem sempre com tanta deferência quanto a classe da mídia esperaria.
Agarrando-se aos seus antigos privilégios, Jenkins e os seus, estão nervosos e com motivo. Eles têm muito a perder.
Mas isso significa também que eles estão longe de ser observadores desapaixonados da cena política atual. Eles investiram profundamente no status quo, nas estruturas de poder existentes que os mantiveram como cortesãos bem pagos das corporações que dominam o planeta.
Bolsonaro, como Trump, não é uma ruptura da atual ordem neoliberal; ele é uma intensificação ou escalada dos seus piores impulsos. Ele é a sua conclusão lógica.
Os plutocratas que comandam as nossas sociedades precisam de figuras de proa, atrás das quais podem ocultar seu poder incompreensível. Até agora, eles preferiam os vendedores mais astutos, aqueles que podiam vender guerras como uma intervenção humanitária, em vez de exercícios baseados no lucro, na morte e na destruição; o saque insustentável dos recursos naturais como crescimento económico; a enorme acumulação de riqueza, escondida em paraísos fiscais, como o resultado justo de um mercado livre; os resgates financiados pelos contribuintes comuns para conter as crises económicas que eles haviam arquitetado, como austeridade necessária; e assim por diante.
Falinhas mansas como Barack Obama ou Hillary Clinton, eram os vendedores favoritos, especialmente numa época em que as elites haviam nos convencido com recurso a um argumento interesseiro: que identidades baseadas no tom de pele ou género importavam muito mais do que classe. Era o dividir para governar mascarado de empoderamento. A polarização agora lamentada por Jenkins foi, na verdade, alimentada e racionalizada pela própria mídia corporativa a qual ele serve tão fielmente.
Medo do efeito dominó
Está na hora de despertar: a ordem neoliberal está a morrer.
Apesar da sua professada preocupação, os plutocratas e seus porta-vozes da mídia preferem muito mais um populista de extrema direita como Trump ou Bolsonaro a um líder populista da genuína esquerda. Preferem as divisões sociais alimentadas por neo-fascistas como Bolsonaro, divisões que protegem a sua riqueza e privilégio, do que a mensagem unificadora de um socialista que queira restringir o privilégio de classe, a base real do poder da elite.
A verdadeira esquerda – seja no Brasil, na Venezuela, na Grã-Bretanha ou nos EUA – não controla a polícia ou os militares, o setor financeiro, as indústrias de petróleo, os fabricantes de armas ou a mídia corporativa. Foram essas mesmas indústrias e instituições que abriram caminho para o poder de Bolsonaro no Brasil, Viktor Orban na Hungria e Trump nos EUA.
Lula
Ex-líderes socialistas como o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva ou Hugo Chavez na Venezuela estavam condenados ao fracasso não tanto por causa das suas falhas como indivíduos, mas porque poderosos interesses rejeitavam o seu direito de governar. Esses socialistas nunca tiveram controle sobre as principais alavancas do poder, os recursos-chave. Os seus esforços foram sabotados – de dentro e de fora – desde o primeiro momento em que foram eleitos.
As elites locais da América Latina estão amarradas umbilicalmente às elites americanas, que por sua vez estão determinadas em garantir que qualquer experimento socialista no seu “quintal” fracasse – como uma forma de evitar um temido efeito dominó, que poderia plantar a semente do socialismo perto de casa.
A mídia, as elites financeiras, as forças armadas nunca estiveram ao serviço dos governos socialistas que lutam por reformar a América Latina. O mundo corporativo não tem interesse em construir moradias adequadas no lugar de favelas ou em tirar as massas do tipo de pobreza que alimenta os gangues do narcotráfico que Bolsonaro diz que vai esmagar com mais violência.
Bolsonaro não enfrentará nenhum dos obstáculos institucionais que Lula da Silva ou Chávez precisaram superar. Ninguém no poder ficará no seu caminho quando estabelecer as suas “reformas”. Ninguém vai impedi-lo de sacar a riqueza do Brasil para os seus amigos corporativos. Como no Chile de Pinochet, Bolsonaro pode ter a certeza de que o seu tipo de neofascismo viverá em harmonia com o neoliberalismo.
Sistema Imunológico
Se se quiser entender a profundidade do auto-engano de Jenkins e outros guardiões da mídia, basta contrastar a ascensão política de Bolsonaro à de Jeremy Corbyn, o modesto líder social-democrata do Partido Trabalhista britânico.
Aqueles que tal como Jenkins lamentam o papel das redes sociais – para eles significa que você, o público – ao promover líderes como Bolsonaro representa também o coro da mídia que feriu Corbyn dia após dia, golpe a golpe, por três anos – desde que acidentalmente este conseguiu passar pelas protecções levantadas por burocratas do partido para manter alguém como ele afastado do poder.
O suposto jornal liberal The Guardian tem liderado esse ataque. Tal como a mídia de direita, demonstrou a sua absoluta determinação em deter Corbyn a todo custo, usando qualquer pretexto.
Dias depois da eleição de Corbyn para a liderança do partido trabalhista, o jornal The Times – a voz do establishment britânico – publicou um artigo citando um general, o qual recusou mencionar o nome, alertando para o facto de que os comandantes do exército britânico haviam concordado em sabotar o governo de Corbyn. O general insinuou fortemente que poderia haver de antemão, um golpe militar .
Não é suposto chegarmos ao ponto em que tais ameaças – romper a fachada da democracia ocidental – precisem ser implementadas. As nossas democracias do faz de conta foram criadas com sistemas imunológicos cujas defesas são agrupadas muito antes para eliminar uma ameaça como Corbyn.
Uma vez que Corbyn se aproximou do poder, a mídia corporativa de direita foi forçada a implantar a tropologia padrão usada contra um líder de esquerda: que era incompetente, antipatriótico, até traidor.
Mas, assim como o corpo humano tem células imunes diferentes para aumentar as suas hipóteses de sucesso, a mídia corporativa tem agentes de esquerda faux-liberal como o _The Guardian_ para complementar as defesas da direita. O The Guardian procurou ferir Corbyn através da política de identidade, o Calcanhar de Aquiles da esquerda moderna.
Um fluxo interminável de crises fabricadas sobre o anti-semitismo pretendia corroer a reputação que Corbyn acumulara ao longo de décadas pelo seu trabalho anti-racista.
Política de corte e queima
Por que o Corbyn é tão perigoso? Porque ele apoia o direito dos trabalhadores a uma vida digna, porque se recusa a aceitar o poder das corporações, porque sugere que uma maneira diferente de organizar as nossas sociedades é possível. É um programa modesto, até mesmo tímido, o que articula, mas mesmo assim é radical demais, seja para a classe plutocrática que nos domina, seja para a mídia corporativa que a serve como braço da propaganda.
A verdade ignorada por Jenkins e esses estenógrafos corporativos é que, se se continuar a sabotar os programas de um Chávez, um Lula da Silva, um Corbyn ou um Bernie Sanders, então ganha-se um Bolsonaro, um Trump, um Orban.
Não é que as massas sejam uma ameaça à democracia. É, antes, que uma proporção crescente dos eleitores entende que uma elite corporativa global manipulou o sistema para acumular riquezas cada vez maiores.
Não são as redes sociais que polarizam as nossas sociedades. É, antes, a determinação das elites em saquear o planeta até que este não tenha mais recursos para extrair, que alimentou o ressentimento e destruiu a esperança.
Não são as notícias falsas que estão a soltar os instintos básicos das classes mais baixas. Pelo contrário, é a frustração daqueles que acham que a mudança é impossível, que ninguém no poder está a ouvir ou se importa.
As redes sociais deram poder às pessoas comuns. Mostrou-lhes que não podem confiar nos seus líderes, que o poder supera a justiça, que o enriquecimento da elite precisa da sua pobreza. As pessoas concluíram que, se os ricos podem empreender políticas de corte e queima contra o planeta, nosso único refúgio, as pessoas podem empreender políticas de corte e queima contra a elite global.
Estarão escolhendo sabiamente ao eleger um Trump ou um Bolsonaro? Não. Mas os guardiões liberais do status quo não estão em posição de julgá-las.
Durante décadas, todas as partes da mídia corporativa ajudaram a minar uma esquerda genuína que poderia oferecer soluções reais, que poderia ter assumido e derrotado a direita, que poderia ter oferecido uma bússola moral a um público confuso, desesperado e desiludido.
Jenkins quer dar um sermão às massas sobre suas escolhas depravadas enquanto ele e o seu jornal, as afastam de qualquer político que se preocupa com o seu bem-estar, que luta por uma sociedade mais justa, que prioriza reparar o que se encontra danificado.
As elites ocidentais irão condenar Bolsonaro na esperança desesperada e cínica de reforçar as suas credenciais como guardiões da ordem moral supostamente existente. Mas foram eles que o criaram. Bolsonaro é o monstro deles.
Jonathan Cook
Artigo publicado originalmente em Global Research em 1 de Novembro, 2018
Tradução: Plutocracia.com
Jonathan Cook ganhou o Prémio Especial Martha Gellhorn de Jornalismo. Seus livros incluem “Israel e o choque de civilizações: Iraque, Irão e o plano para refazer o Oriente Médio” (Pluto Press) e “Palestina Desaparecendo: as experiências de Israel em desespero humano” (Zed Books). Seu site é www.jonathan-cook.net. Ele é um colaborador frequente da Global Research.
Sem comentários:
Enviar um comentário