Linha de separação


13 de outubro de 2025

 ACADEMIA 'NOBELIZA' CORINA SEM CORAR


A atribuição do Nobel da Paz a María Corina Machado é algo mais do que um acto político de contestação ao governo venezuelano de Nicolás Maduro. Junta-se ao “cerco” militar naval contra o país detentor das provavelmente maiores reservas petrolíferas conhecidas em todo o mundo, montado pelos EUA com oito vasos de guerra, aviões, dois mil mísseis e um submarino nuclear estacionados no limite das águas territoriais da Venezuela desde o passado mês de setembro.
O pretexto invocado por Donald Trump é o absurdo segundo o qual o “ditador absoluto” de um dos países mais ricos em recursos de todo o planeta, em vez de usar essa sua condição para enriquecer, seria suficientemente estúpido para tentar fazê-lo traficando droga. O "nobel" para Corina junta-se a tudo isto (ver https://www.telesurtv.net/historial-fascista-maria.../).

1.

E junta-se-lhe enquanto uma das mais notórias demonstrações de duas das mais perigosas tendências do estado de guerra mundial latente que tem vindo a adensar-se nas últimas duas décadas. O uso dos dispositivos legislativos, judiciários e judiciais contra personalidades, nações e organizações desafetas (conhecido por Lawfare), à escala interna dos países, como no domínio das relações internacionais, degradando aqueles que se opõem à unipolaridade “ocidental”, por um lado.
E, por outro lado, a intensificada operação que de manipulação dos organismos supranacionais criados em nome de algum tipo objetivo e imparcial de regulação das relações internacionais, as chamadas instituições de Bretton Woods (FMI, Banco Mundial e outras), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a União Europeia ou o Mercosul, o Tribunal de Haia (ou Corte Internacional de Justiça, dependente da ONU), o Tribunal Penal Internacional (TPI) ou a própria ONU, claro, para além de um longo etecetera.
Está bem estabelecido que se trata de ferramentas geopolíticas que, na sua maioria, visaram estabelecer a ordem da dominação da potência emergente da II Guerra, os EUA e seus “estados vassalos” (na linguagem do antigo secretário de Estado norte-americano, Zbignew Brzezinski).
Mas a evocação da isenção era um argumento para que se exigisse alguma cautela nas tentativas da sua manipulação que, nas últimas décadas, se tem processado num plano a tal ponto escandaloso, que o seu descrédito é hoje uma trivialidade.

2.
O Comité de Oslo, transformando o Nobel da Paz em arma de guerra não é exceção. Uma breve viagem por muitos dos mais recentes nobelizados demonstra como a geopolítica do Nobel convergiu quase invariavelmente com a enfatização dos inimigos dos nossos inimigos, ao serviço dos amigos “ocidentais”. Walesa venceu em 1983, quando se tratava de desgastar a URSS, através da Polónia e da Igreja Católica local e do Vaticano. Vinte anos mais tarde, em 2003, ganhou a iraniana Shirin Ebadi, quando o Irão passou a estar na mira preferencial do “Ocidente de onde não voltaria a sair até hoje. Em 2009, foi a vez de Al Gore, pelo seu “ativismo” contra as alterações climáticas, vocação que descobriu depois de deixar a vice-presidência dos EUA, sem que a causa o tivesse perturbado quando podia ter feito alguma coisa por ela. Obama foi galardoado em 2009, depois do desmantelamento dos regimes que do norte de África ao Afeganistão abriram a caixa de Pandora dos refugiados contra a Europa, em particular depois da “intervenção democrática” na Síria e do envio de mais um contingente de 130 mil soldados para Cabul nos dias da atribuição do prémio. Liu Xiabobo destacou-se em 2010, quando a política norte-americana apontou a sua manobra hostil contra a “ameaça chinesa” enquanto “inimigo estratégico”. Em 2011, foi a vez do Iémen, com Tawakel Karman, quando a nação do Mar Vermelho passou a estar na agenda das baterias ocidentais, através da guerra promovida pelos sauditas. A União Europeia, em 2012, como não, pela sua contribuição “para o avanço da paz e reconciliação, democracia e direitos humanos na Europa” (sic do Comité Nobel). Da ex-Jugoslávia às intervenções no espaço pós-soviético, passando pela gesta armada francesa no Sahel, tínhamos, antes mesmo da Ucrânia, paz para dar e vender por onde quer que conseguíssemos passar, como bem sabemos. O Iraque esteve na ordem do ano, em 2018, com Nadia Murad, quando o país das Armas de Destruição Maciça, se encontrava maciçamente destruído pelas armas ocidentais e começava a orbitar no xiismo, saindo do “controlo ocidental".
Já nos anos 20, do século, os canhões da paz de Oslo começaram a disparar para o leste da Europa. Dmitry Muratóv, Rússia em 2021, Ales Bialiatski, oposicionista bielorrusso em 2022, a par da ONG “humanitária” russa “Memorial” assim como o “Centro de Liberdades Civis” da Ucrânia, O Irão voltou a ser carregado com um Nobel da Paz em 2023, e em 2025, chegou a vez da Venezuela.

3.

Corina Machado já tinha sido galardoada com o Prémio Sakhárov, do Parlamento Europeu, juntando-se a uma longa lista de individualidades patrocinadas pelo governo norte-americano através da USAID e demais “fundações” consabidamente de cobertura para operações de influência conduzidas pela CIA, por vezes sem o conhecimento e consciência dos próprios à data das suas distinções.
Não é bem o caso de María Corina Machado, à qual dedico umas linhas num pequeno ensaio que escrevi sobre a Venezuela e que sai a público na próxima semana. A Corina bem se pode, de facto, aplicar o velho ditado de “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és” (ver imagem abaixo e, com ela, ver as reações dos "democratas" europeus ao prémio, aqui: https://www.dn.pt/.../uma-mensagem-poderosa-reaes-ao...).
Reagindo já à atribuição do Nobel, para além da choraminguice emocionada do porta-voz do Comité e da própria laureada no momento, convenientemente filmado, da comunicação à interessada, María Corina explicou rapidamente o significado da atribuição, dirigindo-se a Donald Trump (ver aqui https://zonacero.com/.../contamos-con-el-presidente-trump...).
Não é coisa nova, em todo o caso. Já em 2024 num programa de corte humorístico, via Internet, Corina respondia ao apoio de Elon Musk, formalmente em tom ligeiro, mas com o conteúdo mais revelador que se usa quando se brinca a sério: “sabe o que é que vai poder investir na Venezuela? Não vai haver outro país onde possa fazer mais negócios do que na Venezuela, os tais foguetões vamos lançá-los de Cabruta, vamos pôr Internet em toda a Venezuela, a Internet da Venezuela vai ser rapidíssima. Energia! Quer energia limpa? Aí tem... A capacidade hidroelétrica da Venezuela não é igualada por nenhum outro país do hemisfério. Temos a nona reserva de água doce do planeta, está tudo por fazer, vai pôr os nossos miúdos a serem trilíngues, não há jovem que não fale espanhol, inglês e não use a linguagem digital. Todas essas empresas de processamento de dados, de servidores, para cá, para cá, para cá! Vamos instalá-las aqui, vamos colocá-las lá no estado Bolívar com energia limpa. Consegue imaginar como vai ser? Olhem, este país vai voar”
Percebemos para onde, não percebemos? O Comité Nobel também. 

Rui Pereira -  Prof Catedrático na  Universidade Lusófona do Porto


Sem comentários: