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Ricardo Paes Mamede
Lia-se há dias num editorial do Financial Times: "Será necessário pôr em cima da mesa reformas radicais - invertendo a orientação política prevalecente nas últimas quatro décadas. Os Estados terão de ter um papel mais activo na economia. Devem encarar os serviços públicos como investimentos e não como um peso, e procurar formas de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição estará novamente na ordem do dia; os privilégios dos ricos serão postos em causa." O jornal que tantas vezes defendeu a liberalização, as privatizações e a desregulamentação dos mercados antecipa agora a necessidade de pôr tudo isto em causa, num regresso anunciado a uma espécie de social-democracia radical.
Há quem vá mais longe, sugerindo que agora somos todos comunistas. No espaço de poucas semanas passámos a assumir como normal e desejável que o Estado pague os salários da generalidade dos trabalhadores, que assegure a protecção social para todos e que organize vastas áreas da vida em sociedade, dando até instruções às empresas sobre o que produzir. Economistas insuspeitos defendem agora que as decisões de produção devem basear-se no valor de uso dos bens (isto é, na sua capacidade para satisfazer as necessidades humanas) e não no seu valor de troca (ou seja, no seu preço de mercado). Marx ficaria radiante.
O mundo parece virado de pernas para o ar e muitos antecipam mudanças sistémicas ao virar da esquina. São tempos interessantes, de facto, como é frequente em períodos de catástrofe. Mas não tomemos o desejo por realidade.
É um facto que a situação actual põe a nu os limites de sociedades guiadas pela lógica de mercado. Como noutras crises, assiste-se a um regresso a Keynespara nos lembrar que a eficiência de mercado é impossível quando a incerteza é radical. Que a soma das racionalidades individuais se torna facilmente em irracionalidade colectiva. Que nestas ocasiões só o Estado pode desafiar a incerteza, promover a eficiência agregada e trazer de volta a confiança.
A natureza peculiar da actual crise leva-nos mais longe. Ajuda-nos a perceber que o investimento em serviços públicos e a valorização dos quadros técnicos do Estado são uma riqueza que é de todos - e não uma carga a suportar por alguns. Leva-nos a entender melhor as implicações sociais e económicas das relações de trabalho precárias. Deixam claro o custo das desigualdades, que aceleram a propagação de doenças, ao mesmo tempo que se aprofundam com a pandemia.
A emergência do covid-19 leva-nos ainda mais longe no questionamento de sociedades onde todas as relações sociais são guiadas pela lógica da oferta e da procura, onde cada indivíduo decide conforme o seu interesse próprio. De repente percebemos que a coesão social e a noção de destino partilhado são fundamentais para combater o vírus. Se cada um trabalhasse apenas de acordo com o que lhe pagam, se cada um seguisse apenas o seu interesse próprio, enfim, se cada indivíduo se comportasse como os manuais básicos de Economia descrevem (e que muitos prescrevem) as sociedades colapsavam.
Nesse sentido, sim, a crise actual legitima muitas das críticas ao regime económico e social em que vivemos no último meio século. De resto, o mesmo sucedeu há pouco mais de uma década, quando a crise financeira global pôs a nu a disfuncionalidade de um sistema económico assente no predomínio da finança e na perpetuação das desigualdades às várias escalas.
Também em 2008 houve quem tivesse visto a crise como o início do fim do neoliberalismo. Também na altura se lia no Financial Times que a combinação de um colapso financeiro com uma enorme recessão iria mudar o mundo. Mas o mundo não mudou assim tanto. Não para melhor.
Os Estados foram chamados a intervir em força, é certo. Os grandes bancos foram assim salvos da falência e os seus lucros protegidos nos anos seguintes, em nome da estabilidade financeira. A política monetária dos bancos centrais evitou a falência dos Estados e estimulou as bolsas de valores. Mas nem por isso as populações foram poupadas aos custos da austeridade. Nem por isso as desigualdades diminuíram nem o poder financeiro e dos grandes monopólios mundiais foi posto em causa. Entre as mudanças assinaláveis estão derivas autoritárias em vários países, eliminando direitos em troco de promessas de segurança por cumprir.
Também agora a crise do covid-19 põe muitas pessoas a defender coisas inesperadas. Mas apesar do volume inaudito de socialização dos riscos e do papel activo dos Estados no combate ao vírus, há pouco de socialismo na situação actual. Uma parte da população trabalha a partir de casa pagando agora do seu bolso vários dos custos de produção, em troca de um salário igual ou menor do que tinham. Outra parte da população perdeu todas as suas fontes de rendimento e tem dificuldade em responder às necessidades do dia-a-dia. Outros ainda continuam a trabalhar, juntando aos salários miseráveis que já recebiam os riscos acrescidos para a sua saúde e a dos seus. Não há socialismo onde os direitos recuam. Não há socialismo numa sociedade onde a participação democrática e a representação dos trabalhadores estão suspensas.
Se depender de quem manda no mundo, a probabilidade de a actual emergência de saúde pública dar origem a sociedades mais justas e equilibradas é menor do que o risco de aprofundamento das dinâmicas que vêm de trás: mais pressão sobre salários e direitos, mais restrições à participação democrática, mais poder dos que já o têm.
O editorial do Financial Times revela que, nestes momentos, as ideias progressistas têm mais espaço do que em tempos normais. Mas só a participação activa de cidadãos conscientes e combativos poderá transformar essas ideias em soluções mais justas e sustentáveis. A solidariedade que se gerou no combate ao vírus e a percepção da importância de serviços públicos universais e de qualidade dão-nos uma boa base de trabalho. Quanto ao resto, está quase tudo por fazer.
Economista e professor do ISCTE
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