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3 de abril de 2020

Repugnante

Agostinho Lopes.

REPUGNANTE


Inocentes, ingénuos, crédulos, cândidos, iludidos ...é que não são os muitos que partilharam da tonitruante afirmação de António Costa, inclusive ele próprio, declarando repugnante o discurso do Ministro das Finanças Holandês repelindo as “eurobonds” : “a Comissão Europeia devia investigar países como Espanha, que afirmam não ter margem orçamental para lidar com os efeitos da crise provocada pelo novo coronavírus, apesar de a zona euro estar a  decrescer há sete anos consecutivos”. Não, não são. Nem, certamente, apenas agora descobriram essa «repugnância» por comportamentos e posições da União Europeia. Mesmo quando os cobriram com um espesso manto de silêncio e nevoeiro, quando não de amorosa e respeitável e visível cumplicidade.
Porque as coisas não começaram agora, nem agora são apenas como quer António Costa e outros, a repetição das escabrosas declarações de anterior Ministro das Finanças holandês. Porque o problema não é de ministros nem de ministros holandeses. É da própria União Europeia.
Porque repugnante foi o comportamento da UE perante a agressão e destruição da Jugoslávia, com a guerra no coração da Europa, sob o comando do imperialismo norte-americano, a participação de um Estado membro, o Reino Unido, e a activa cumplicidade de outros como a Alemanha e a França.
Porque repugnante foi todo o comportamento da UE durante a crise das ditas «dívidas soberanas» - de facto crise da libertinagem financeira que tinham promovido - particularmente para com a Grécia, mas também para com Portugal, concretizando um Pacto de Agressão com o FMI e o BCE contra os legítimos e soberanos direitos e interesses dos seus povos. 
Porque repugnante foi e é o seu comportamento para com milhares e milhares de refugiados às portas da Europa, fugindo da guerra e da fome nos seus países decorrentes de conflitos militares animados e incentivados por alguns dos principais Estados membros. E o que dizer nesta matéria do sórdido negócio com a Turquia?!
Escrevia por estes dias alguém (1)«Eu nunca fui capaz de pensar que a UE é intrinsecamente má, embora ache que ela foi o mais poderoso mecanismo de transferência de poder para o capitalismo iníquo da finança e dos mercados, protegendo-os e desprotegendo quem a podia legitimar. Não deixarei de pensar assim». Para lá da contradição na conclusão, o que é possível esperar de tal «mecanismo»? Solidariedade? Só com muita boa-fé…
Escrevia outro (2), «António Costa tem de se bater por muito mais do que simples obrigações europeias. As eurobonds são dívida, dívida que terá de ser paga e paga de forma brutal se as regras europeias sobre o ritmo de redução da dívida pública não forem alteradas. Se já era difícil respeitá-las antes do covid-19, imagine-se como será com um PIB bem menor e muita mais dívida aos ombros. Neste contexto, estas regras do Tratado Orçamental são bem mais repugnantes do que as lamentáveis declarações do ministro das Finanças holandês. Repugnantes porque significam que a vida de um alemão vale mais que a de um português. Essas regras impedirão países como Portugal, Espanha ou Itália de salvar todas as vidas que possam ser salvas e imporá um calvário de anos de austeridade a todo país.» É caso para dizer “Com a verdade me enganas”. Mas não vale a pena adjectivar.  As «regras» da integração capitalista europeia não são boas nem más, repugnantes ou atraentes, são as regras do capital.  
      


Disse também António Costa «Se algum país da UE acha que resolve o problema deixando o vírus à solta nos outros países, não percebeu bem o que é a UE». Engano, o holandês percebeu bem de mais. Há muito tempo. O que a UE não é, é o que o António Costa e outros costas nos andam a vender há tempo demais. A nós e a outros povos da Europa. Uma UE para a solidariedade e entreajuda e convergência económica e social entre os estados Membros e um Euro que era um pote de ouro lá onde o arco-íris toca a terra. Uma UE para a paz e a cooperação na Europa e no mundo. Nem agora nem no tempo dos celebrados pais fundadores. Nem em tempo algum.
Construção do grande capital europeu, sob o comando de algumas grandes potências, inspiração e bênção dos EUA, para o confronto com o mundo socialista que nascia e se desenvolvia no pós-guerra, a UE desnuda-se, desmascara-se sempre que as crises a atingem. A pandemia põe a nu e sublinha mais uma vez todas as imposturas de uma UE neoliberal, militarista e federalista. Sem disfarces, a UE assume a natureza da sua construção.    


Não peçam aos chacais e às hienas que não chorem, nem aos lacraus que não piquem. É da sua natureza.


(1) José Reis, «Vulnerabilidades: Pensar um país frágil», Público, 30MAR20;
(2) Manuel Esteves, «As regras repugnantes», Jornal de Negócios, 30MAR20.

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