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11 de fevereiro de 2018

A Auto Europa e o neoliberalismo

Autoeuropa, uma questão de toda a sociedade 
O que se passa na empresa é o forçar dum modelo neoliberal de competividade e de desregulação das relações de trabalho e emprego.
9 de Fevereiro de 2018, 6:17 Guilherme Pereira.  Sociologo
O braço de ferro que se vem travando na Autoeuropa (AE) entre trabalhadores e administração não é uma mera questão laboral circunscrita àquela empresa, mas diz respeito a toda a sociedade portuguesa. É um exemplo em como a flexibilização das condições de emprego introduzidas pelo Código do Trabalho vêm alterar o modo de vida das pessoas e da sociedade. Certo que a AE é emblemática como investimento transeuropeu, grande exportador, tecnologia de ponta, polo agregador duma rede de outras empresas, gerador de emprego qualificado. Mas reflete também o conflito entre pessoa, família, empresa e trabalho, introduzido pelo neoliberalismo que rompe com regras de vida e de respeito pelo trabalho e o trabalhador, em nome da competitividade.

As razões para impor horários de laboração contínuos, 7 dias por semana, dia e noite, visam uma amortização mais rápida do investimento e/ou uma intensificação da produção. Esta é limitada pela “disponibilidade” da mão-de-obra para alargar a laboração até aos limites máximos dos equipamentos e maquinaria instalados. Mais tarde, quando necessário, descontinuar o modelo automóvel, substituindo-o por outro, mas depois de ter extraído o máximo possível, ou de ter respondido a uma temporária forte procura.
Trata-se pois de intensificar ao máximo a produtividade possível – do factor trabalho e do factor capital – muitas vezes sem com isso remunerar melhor a mão-de-obra, nem pagando horas extra ou prémios de turno e de fins-de-semana. Nada de novo na AE, em linha com estes últimos 30, 40 anos, em todos os países industrializados, incluindo Portugal, em que se assiste a um incremento de produtividade geral, sem um correspondente e devido aumento da remuneração do trabalho, quer em termos absolutos quer relativos.
Esclarecido este aspeto económico do braço de ferro em jogo na AE, que é o cerne da pretensão da administração, passemos em revista os restantes aspectos, esses que dizem respeito a toda a sociedade lusa e europeia. A justificação de curto prazo e empresarial, não deve ser o argumento único ou determinante, para impor tal sistema de horários e de remuneração, pois estaríamos a cair num economicismo – só as razões “económicas” contam, imediatas, da empresa ou do seu capital accionista – nada mais conta. Ora o resto – a envolvente da empresa, social, laboral, de costumes pessoais e coletivos e direitos adquiridos, contam e bem mais. E este caso da AE é só um sinal, o mais visível, do que se está a passar no mercado de trabalho em Portugal e no mundo. Vejamos alguns aspetos.


Ao abolir-se o descanso diário ao fim do dia e o folgar ao sábado e ao domingo, está-se a retirar um intervalo regular e já interiorizado pelo trabalhador, há gerações, de repouso físico e mental e de recuperação de energia. Está-se também a interferir na sua vida pessoal e familiar ao retirar-lhe a possibilidade de estar com a familia, amigos, impedido de saber de antemão que pode dispor desse tempo, combinar, marcar com antecedência a sua vida. Ao quebrar esta liberdade do trabalhador – da AE, dos call-centers, das farmácias, dos hospitais, dos shoppings, das empresas de consultoria, dos promotores de vendas, etc. etc - em dispor do seu tempo – quer aos fins-de-semana, quer durante a semana, mesmo se com um plano semanal ou mensal estabelecido pelo empregador com a aceitação do empregado – está-se a quebrar um modo de vida generalizado, coletivamente praticado há muito, dentro dos usos e costumes sociais em que se está fora do trabalho depois das 18h, 19h ou 20h, bem como aos sábados e aos domingos! Quem aceita de animo leve só dispor de 15 sábados livres por ano, mesmo se pagos extra, devendo nos restantes ter de trabalhar?
Ora este quebrar de laços pessoais, familiares, de liberdade pessoal e de integração social, tem e vai ter consequências sócio-culturais, demográficas e de saúde mental e física a médio e a longo prazo, nas gerações presentes e futuras, no estilo de vida e na forma de criar e educar os filhos.
Ao não ter turnos fixos de trabalho, o trabalhador não tem o seu bioritmo “acertado” para dormir a horas certas, folgar e socializar noutras. Nos séculos. XIX e XX o trabalho por turnos existiu em larga escala e em muitos sectores: p.ex., aqueles que trabalhavam de noite, anos e anos seguidos, regulavam o seu modo de vida e de sono para, p.ex., dormir de manhã e ter vida pessoal à tarde. Com isso tinham uma vida razoavelmente estabilizada, compensada por uma remuneração acrescida correspondente. Ora ao abolir-se, quer o pagamento de prémios ou bónus por trabalho em turnos ou de horas extra, quer os turnos fixos, está-se a atentar contra a vida pessoal e familiar desses trabalhadores, está-se a comprometer a saúde mental, física e psicológica dessas pessoas. O ritmo de sono, os ritmos cardíacos, ficam alterados, e a homeostasia da pessoa vai-se afectando, irremediavelmente. E indiretamente afecta a vida familiar desses trabalhadores.


Para alem de se estarem a perturbar, alterar, os laços sociais, familiares, de convívio e de vida coletiva, está-se ainda a perturbar a criação, a reprodução das famílias: como pode um(a) jovem namorar, casar, constituir família, ter filhos, com um horário de trabalho, flexível, variável ao gosto do empregador, de semana para semana, fixado com um mês de antecedência!? Esta intromissão do empregador na vida pessoal do empregado, atinge aqui o seu abuso máximo, o que conjugado com a precariedade de emprego, contratos de curta duração ou sem garantias de continuidade, com baixos salários, inviabiliza por completo o compromisso de vida conjugal ou de ter filhos. Como pode uma mulher ter filhos se não sabe a que horas pode ir buscar o filho à escola, ou deixá-lo na ama ou na avó?
Mais globalmente: quanto do decréscimo de natalidade em Portugal se deve à precariedade de emprego, à flexibilidade de horários, aos contratos com termo certo? Isto para não falar da pressão, explicita e implícita, sobre as mulheres empregadas para não terem filhos, despedi-las ou não lhes renovar o contrato em caso de gravidez ou após maternidade.
Está-se a romper com um pacto social secular do descanso semanal ao domingo – o “dia santo” - religioso para religar com todos, família, comunidade, o transcendente. Está-se a abolir um ganho de bem-estar de décadas pós-guerra: o fim-de-semana inglês (descanso ao sábado à tarde e domingo) e o fim-de-semana americano (descanso ao sábado e domingo). Está-se a romper com o adquirido – equitativo e harmónico em todos os pontos de vista -, das lutas operárias do sec. XIX: 8h de trabalho - 8h de descanso, de vida pessoal ou de não-trabalho - 8h de sono.
O que se passa na AE não é único daquela empresa mas é o combate singular que, simboliza, uma relação de forças que se vem passando em muitas empresas, pequenas, médias e grandes deste país e deste mercado comum europeu. É o forçar dum modelo neoliberal de competividade e de desregulação das relações de trabalho e emprego. A propósito cabe aqui perguntar com que extensão, em que países e em que setores desta Europa se praticam estes horários que se querem agora impor à AE: na congénere alemã não se praticam estes horários.. Quem visita muitos landers e cidades alemãs, não vê shoppings e comércios abertos sábados à tarde e domingos como em Portugal! Claro que para o capital e o investidor, que se tenha “esquecido” da sua responsabilidade patronal - de justa remuneração salarial, de distribuir riqueza, de gerar bem-estar, de motivação, de criar um emprego minimamente satisfatório - isto é irrelevante ou não conta, tanto mais que tem muita mão-de-obra disponível, a qualquer preço. Mas para a sociedade no seu todo esta é uma verdadeira questão social e civilizacional – um marco de valores e modos culturais e éticos, um paradigma de vida que não deve ser quebrado por razões imediatas, em nome da competitividade ou do interesse de poucos perante o bem comum.

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