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16 de fevereiro de 2018

No Fórum social mundial

A. Avelãs Nunes na abertura do Fórum Social Mundial (28.1.2018)

 Vivemos em tempo de globalização. E não falta quem queira
convencer-nos de que os males do mundo, sendo males da globalização,
são males inevitáveis, tão inevitáveis como a própria globalização,
consequência necessária da revolução científica  e tecnológica do
nosso tempo. Não faria sentido, por isso, ser contra a globalização,
porque, tal como o sol nasce todos os dias, o progresso científico e
tecnológico é algo inerente às sociedades humanas, e a globalização é
filha dele.
É, em última análise, o pseudo-argumento de que não há alternativa ao
capitalismo e ao neoliberalismo, que está por detrás das políticas de
globalização neoliberal. Argumento utilizado mesmo por alguns que,
dizendo-se de esquerda, se comportam como uma espécie de “esquerda
choramingas”, uma ‘esquerda’ que lamenta, com uma lágrima ao canto do
olho, o desemprego, a precariedade, as desigualdades e a exclusão
social, mas que se recusa a identificar as suas causas estruturais,
para não ter de
as combater, levando tudo à conta da globalização incontornável, para
a qual diz que não há alternativa.
Esta é uma ‘leitura’ amiga do grande capital financeiro, que é o
grande impulsionador (e o único aproveitador) da política de
globalização neoliberal e o autor e difusor desta visão ideológica
(distorcida) sobre a natureza e o significado da globalização.
Carregando nas tintas para sublinhar bem a minha ideia, direi que
‘acreditar’ na autenticidade deste retrato da globalização é o mesmo
que acreditar que o lançamento das bombas atómicas sobre Hiroshima e
Nagasaqui foi uma consequência inevitável do desenvolvimento
científico na área da Física Nuclear e que a utilização maciça de
armas químicas contra o povo vietnamita durante a Guerra do Vietnam
foi uma consequência incontornável do desenvolvimento científico na
área da química.
Estes crimes de guerra (verdadeiros crimes contra a humanidade) foram decisões
políticas tomadas no quadro da política imperialista dos EUA. Pois
bem. A política de globalização neoliberal é isto mesmo: uma ‘guerra’
contra os trabalhadores, que não tem dispensado o recurso a “armas de
destruição maciça” (Warren Buffet), à especulação
criminosa (sobre ‘produtos financeiros derivados’, sobre
matérias-primas, sobre combustíveis, sobre alimentos, enfim, à
especulação sobre a vida de milhões de pessoas) e não dispensa o
recurso a toda a espécie de práticas criminosas que caraterizam o
capitalismo do crime sistémico do nosso tempo.
As políticas de globalização neoliberal são políticas ao serviço do
objetivo do grande capital financeiro de dominar o mundo, políticas
inspiradas nos princípios da contra-revolução monetarista (Hayek,
Milton Friedman...) e nos dogmas da ideologia neoliberal, políticas
impostas pelo grande capital financeiro, que vêm condenando povos
inteiros ao empobrecimento acelerado, cortando os direitos e os
rendimentos dos trabalhadores, condenando ao desemprego e à
precariedade quase metade dos jovens, aumentando o número dos pobres
que trabalham, agravando a exclusão social, traduzindo-se numa
autêntica guerra civil (uma guerra de classes à escala mundial) que,
neste mundo antropofágico, produz todos os anos (num tempo em que os
ganhos da produtividade permitem a criação de riqueza a níveis até há
pouco insuspeitados) tantas vítimas da fome ou de doenças causadas
pela fome quantos os mortos da 2ª Guerra Mundial.

Nos primeiros tempos da revolução industrial os operários viram nas
máquinas o seu ‘inimigo’ e por isso as destruíram e sabotaram. Cedo
compreenderam, porém, que o seu inimigo de classe nunca poderiam ser
as máquinas, mas uma outra classe social.
Ninguém de bom senso e de boa fé pode cometer hoje o mesmo erro,
considerando que a origem dos nossos males está na revolução
científica e tecnológica. Seria imperdoável que o fizéssemos: a
revolução científica e tecnológica não pode ser confundida com a
globalização nem pode ver-se nesta o resultado inevitável daquela.
O que está mal na globalização atual não é a revolução científica e
tecnológica que torna possíveis alguns dos instrumentos da política de
globalização neoliberal, mas o neoliberalismo que a alimenta, a
estrutura dos poderes em que ela se apoia, os interesses que serve,
cada vez mais os interesses da pequena elite do grande capital
financeiro especulador.
A crítica da globalização neoliberal não pode, pois, confundir-se com
a defesado regresso a um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da
ciência e do progresso. Como a História tem demonstrado, o
desenvolvimento científico e tecnológico é o caminho da
libertação do homem.
A partir de 1967, as crises sucederam-se nas economias capitalistas.
Mas os primeiros sinais da crise estrutural do capitalismo foram a
rotura unilateral dos Acordos de Bretton Woods por parte dos EUA
(1971) e as chamadas crises do petróleo (1973-1975 e 1978-1980). Estes
dois episódios (que colocaram as políticas keynesianas perante o
enigma da estagflação e trouxeram para o primeiro plano a tendência no
sentido da baixa da taxa média de lucro) mostraram os limites do
estado keynesiano e das políticas keynesianas e colocaram o
keynesianismo em grandes dificuldades.
Destas crises resultou a vitória da contra-revolução monetarista e a
substituição do consenso keynesiano pelo chamado Consenso de
Washington, que procurou ‘codificar’ os dogmas inscritos no catecismo
monetarista e neoliberal, na tentativa de travar aquela perigosa
tendência.
Inspirado no velho dogma liberal segundo o qual o desenvolvimento dos
povos só pode resultar do livre funcionamento da economia, os
‘mandamentos’ fundamentais deste dito ‘consenso’ são, em síntese, os
seguintes: plena liberdade de comércio; liberdade absoluta de
circulação de capitais à escala mundial (a ‘mãe’ de todas as
liberdades do capital); um mercado único de capitais à escala mundial;
desregulação completa de todos os mercados, em especial os mercados
financeiros; privatização, por puros preconceitos
ideológicos, do setor público empresarial, incluindo as empresas que
produzem e fornecem serviços públicos (até a água!) e as empresas e os
setores estratégicos que constituem o alicerce da soberania e da
independência nacional; o ‘dogma’ da independência dos bancos
centrais, com a consequente ‘privatização’ dos próprios estados, que,
como qualquer cidadão, dependem dos ‘mercados financeiros’ para o
financiamento das suas políticas; princípio da banca universal, que
permite aos bancos fazer todo o tipo de ‘negócios’ com dinheiro,
abrindo o caminho ao capitalismo de casino; plena liberdade de
‘produção’ em série de complexos produtos financeiros derivados (as
tais armas de destruição maciça), capital puramente fictício que serve
apenas para alimentar os jogos de casino; regra de ouro do equilíbrio
orçamental; aplicação de sistemas fiscais que favorecem os ricos e
sufocam os pobres; combate prioritário à
inflação e desvalorização das políticas de promoção do emprego e de
combate ao desemprego, porque este é sempre desemprego voluntário,
pelo qual são responsáveis os sindicatos (que não aceitam a baixa dos
salários) e as ‘imperfeições’ introduzidas no
mercado de trabalho (salário mínimo garantido, subsídio de desempego,
segurança dos postos de trabalho, em suma, os direitos decorrentes do
estado social, os direitos fundamentais dos trabalhadores);
esvaziamento da contratação coletiva (talvez por se
saber, graças à OIT, que ela tem sido, ao longo das últimas décadas,
um instrumento mais efetivo de redistribuição do rendimento em sentido
favorável aos trabalhadores do que as
próprias políticas de redistribuição do rendimento de inspiração
keynesiana); ‘flexibilização’ da legislação laboral (precarização do
emprego, facilitação dos despedimentos, aumento do número de horas de
trabalho não pago); desmantelamento do estado social, ‘confiscando’ os
direitos económicos, sociais e culturais dos trabalhadores (que muitas
constituições consagram como direitos fundamentais dos trabalhadores),
sacrificando os salários, os direitos e a dignidade dos trabalhadores
e pondo em causa a
própria democracia, na tentativa de compensar a subida dos custos
financeiros, contrariar a baixa tendencial da taxa média de lucro e
entregar ao capital os ganhos da produtividade.
Após o desmoronamento da União Soviética e da comunidade socialista,
os neoliberais de todos os matizes convenceram-se, mais uma vez, de
que o capitalismo tinha garantida a eternidade, podendo regressar
impunemente ao ‘modelo’ puro e duro do
século XVIII. As políticas neoliberais vieram acentuar a exploração
dos trabalhadores, assumindo sem disfarce o genes do capitalismo como
a civilização das desigualdades.
O neoliberalismo consolidou-se como ideologia dominante. E o
neoliberalismo não é o produto inventado por uns quantos ‘filósofos’
que não têm mais nada em que pensar. O neoliberalismo não existe fora
do capitalismo, antes corresponde a uma nova
fase na evolução do capitalismo. O neoliberalismo é o reencontro do
capitalismo consigo mesmo, depois de limpar os cremes das máscaras que
foi construindo para se disfarçar.
O neoliberalismo é o capitalismo puro e duro do século XVIII, mais uma
vez convencido da sua eternidade, e convencido de que pode permitir ao
capital todas as liberdades, incluindo as que matam as liberdades dos
que vivem do rendimento do seu trabalho. O
neoliberalismo é o capitalismo na sua essência de sistema assente na
exploração do trabalho assalariado, na maximização do lucro, no
agravamento das desigualdades. O neoliberalismo é a expressão
ideológica da hegemonia do capital financeiro sobre o
capital produtivo, hegemonia construída e consolidada com base na ação
do estado capitalista, que é hoje, visivelmente, a ditadura do grande
capital financeiro.
Ao longo da década de 1990, a aplicação do Consenso de Washington
permitiu ao grande capital financeiro recuperar a liberdade de
movimentos de que gozara nos anos 1920 e que conduziu à Grande
Depressão. Graças às políticas neoliberais, o proclamado capitalismo
sem crises deu lugar ao capitalismo de casino, ao capitalismo do risco
sistémico, ao capitalismo sem risco e sem falências para os bancos, ao
capitalismo do
crime sistémico.

 A globalização neoliberal é, antes de tudo e acima de tudo, um
projeto político, levado a cabo de forma sistemática pelos grandes
senhores do mundo, apoiados, como nunca antes na História, pelo
poderoso arsenal dos aparelhos produtores e difusores da ideologia
dominante, responsáveis pelo totalitarismo do pensamento único.
Todo o edifício da globalização neoliberal (o império do capitalismo
neoliberal) foi obra construída por políticas ativas orientadas para
alcançar os resultados que nos querem apresentar como consequências
inevitáveis do progresso científico e tecnológico.
Foram as instituições do poder político (os estados nacionais e as
organizações internacionais dominadas pelo capital financeiro e pelos
seus estados) que desmantelaram todas as estruturas e mecanismos de
regulação e de controlo da atividade financeira que
vinham dos tempos do combate à Grande Depressão dos anos 1930,
contando com a cumplicidade ativa de uma regulação amiga do mercado.
Os EUA abriram o caminho, abolindo em 1974 o controlo sobre os
movimentos de capitais. Em 1979, foi a vez do Reino Unido, seguido
pelo Japão em 1980. Na Europa, o Tratado de Maastricht (1992) veio
impor aos estados-membros da UE o princípio da
livre circulação de capitais, não só dentro do espaço comunitário, mas
também nas relações com países terceiros.
Em geral, os membros do chamado G7 desempenharam neste processo um
papel decisivo, ao imporem a todo o mundo a lógica ‘libertária’ no que
toca aos movimentos de capitais. O FMI (controlado, de facto, desde há
muito, pelas grandes potências
capitalistas, e, em particular, pelos EUA) foi o instrumento escolhido
para, em nome da chamada ‘comunidade internacional’, executar esta
missão. A partir da década de 1970,sempre que um país recorre aos
serviços do FMI, este condiciona o apoio pretendido à aceitação, pelo
país em dificuldades, dos princípios da livre convertibilidade da
moeda e da livre circulação internacional de capitais. A OMC, que em
1995 substituiu o GATT, passou a aplicar os princípios do
livrecambismo não apenas aos produtos industriais e agrícolas, mas
também aos serviços, aos investimentos e à propriedade intelectual,
acentuando o peso do livrecambismo enquanto ideologia das potências
dominantes, ao
proclamar que o caminho do desenvolvimento exige a plena liberdade de
comércio e a liberdade absoluta de circulação de capitais.
A concretização do programa neoliberal inscrito no Consenso de
Washington tem sido facilitada pela emergência de um verdadeiro
mercado mundial de força de trabalho, um elemento novo na
caraterização do capitalismo global, que muitos consideram “a
principal consequência social da mundialização”, e que não existia em
1916, quando Lenine publicou o estudo clássico sobre O Imperialismo:
um enorme exército de reserva de mão-de-obra foi colocado à disposição
do grande capital, sujeitando os trabalhadores
a uma concorrência dramática e constituindo um estímulo poderoso à
deslocalização de empresas, em busca de mão-de-obra mais barata e sem
direitos.
Invocando enganosamente o velho estado mínimo de Adam Smith, os
ideólogos do neoliberalismo mudaram mais uma vez a máscara do estado
capitalista, munindo-o de outras armas (estado regulador ou estado
garantidor), para que ele pudesse cumprir o seu papel nas condições
históricas das últimas três ou quatro décadas.
Mas o estado capitalista não desapareceu, nem sequer enfraqueceu,
porque, ao contrário de uma certa leitura que dele se faz, o
neoliberalismo, como a presente crise tornou evidente, exige um estado
de classe cada vez mais forte.
Só um estado forte poderia ter criado as condições que permitiram
levar à prática os comandos do Consenso de Washington, dispensando o
compromisso dos tempos do estado social keynesiano, substituindo-o
pela violência do estado neoliberal, que se vem abatendo sobre os
trabalhadores.
Há mais de cinquenta anos o argentino Raúl Prebisch (o primeiro
Presidente da CEPAL) avisou que as soluções liberais só poderiam
concretizar-se pela força das armas.
As ditaduras militares que o imperialismo semeou em vários países da
América Latina comprovaram a razão deste diagnóstico.
No início dos anos 1980 foi o insuspeito Paul Samuelson quem chamou a
atenção (numa Conferência no México) para os perigos do “fascismo de
mercado”. E em 1981 Beltram Gross escreveu um livro sobre o “fascismo
amigável”.
Nestes últimos anos, foi a vez de autores como Amartya Sen e Paul
Krugman avisarem o mundo de que “a concentração extrema do rendimento”
significa “uma democracia somente de nome”, “incompatível com a
democracia real”, chamando a nossa
atenção para “os perigos que uma recessão prolongada coloca aos
valores e às instituições da democracia.” O combate contra as
políticas neoliberais é, por isso mesmo, um combate pela dignidade e
pelos direitos dos trabalhadores, mas é também um combate pela
democracia.

 Está-se a construir um novo Leviathan, que vem substituindo a
política pelo mercado, governando segundo as ‘leis do mercado’ como se
estas fossem a constituição das constituições, negando a política e a
cidadania, matando a democracia.

Um Leviathan que, enquadrado pela ideologia neoliberal, se identifica
com o poder económico e, sobretudo, com o poder financeiro, colocando
acima de tudo as liberdades do capital e assumindo-se, sem disfarce,
como a ditadura do grande capital financeiro.
Muitos dos mais destacados sociólogos vêm insistindo na tese – que a
análise do que se tem passado nos últimos trinta ou quarenta anos
confirma inteiramente – de que o projeto político da Nova Direita
consiste em uma economia livre e um estado forte, um estado capaz de
“restaurar a autoridade a todos os níveis da sociedade” e de dar
combate aos inimigos externos e aos inimigos internos (A. Gamble).
Wolfgang Streeck fala de um processo de esvaziamento da democracia
cujo objetivo é o de conseguir a “imunização do capitalismo contra
intervenções da «democracia de massas”, libertando o mercado das
exigências da vida democrática e
assegurando o “primado duradouro do mercado sobre a política.”
Este processo – sublinha Streeck – vem sendo prosseguido “através de
uma reeducação neoliberal dos cidadãos”, porque não está disponível
atualmente a hipótese de “abolição da democracia segundo o modelo
chileno dos anos 1970.” Mas fica o aviso.
As soluções ’brandas’ que têm sido adotadas só serão prosseguidas se
“o modelo chileno dos anos 1970” não ficar disponível para o grande
capital financeiro. Se as condições o permitirem (ou o impuserem, por
não ser possível continuar o aprofundamento da
exploração dos trabalhadores através dos métodos ‘sofisticados’
atualmente utilizados), o estado capitalista pode vestir-se e armar-se
de novo como estado fascista, sem as máscaras que atualmente utiliza.
Costuma atribuir-se a Roosevelt a afirmação segundo a qual permitir o
domínio da política pelo “dinheiro organizado” é mais perigoso do que
confiar o governo do mundo ao “crime organizado”. Seja quem for o
autor deste diagnóstico, ele traduz bem a realidade atual e encontra
nela plena confirmação: a coberto da sacrossanta liberdade de
circulação do capital e da livre criação de produtos financeiros
derivados, o dinheiro organizado vem cometendo toda a espécie de
crimes, crimes que afetam a vida e a dignidade de milhões pessoas,
humilhando povos inteiros, empobrecidos à força para satisfazer as
exigências dos grandes ‘padrinhos’ do crime organizado. Estes crimes,
cometidos pelas instituições financeiras e pelos seus administradores,
em vez de ficarem impunes (porque, como lembra The Economist, os
bancos não são apenas too big to fail, são também too big to jail),
deveriam ser considerados crimes imprescritíveis, porque eles são,
verdadeiramente, crimes contra a humanidade.

A vida mostra que o homem não deixou de ser o lobo do homem. Mas os
ganhos de produtividade resultantes da revolução científica e
tecnológica que tem caraterizado os últimos duzentos anos de vida da
humanidade dão-nos razões para acreditar que podemos construir um
mundo de cooperação e de solidariedade, um mundo capaz de responder
satisfatoriamente às necessidades fundamentais de todos os habitantes
do planeta.
Este é um tempo de grandes contradições e de grande desespero. Pablo
Neruda deixou-nos esta mensagem: “Dai-me toda a dor do mundo./ Vou
transformá-la em esperança.” Pois bem. A nossa obrigação é fazer como
Neruda, transformando este tempo
de desesperança num tempo de esperança.
Sendo a globalização neoliberal um projeto político, os adversários da
globalização, empenhados em evitar uma nova era de barbárie, temos de
ser capazes de pôr de pé um projeto político alternativo, que assente
na confiança no homem e nas suas capacidades, um projeto inspirado em
valores e empenhado em objetivos que “os
mercados” não reconhecem nem são capazes de prosseguir, um projeto que
rejeite a lógica determinista que nos quer impor, como inevitável, sem
alternativa possível, a atual globalização neoliberal, uma das marcas
desta civilização-fim-da-história.
Esta é a equação correta para compreender o capitalismo dos nossos
tempos, as  suas forças e as suas fraquezas.
Já em 23.9.2000 The Economist escrevia em editorial: “Os que protestam
contra a globalização têm razão quando dizem que a questão moral,
política e económica mais urgente do nosso tempo é a pobreza do
Terceiro Mundo. E têm razão quando dizem que
a onda de globalização, por muito potentes que sejam os seus motores,
pode ser travada.
É o facto de ambas as coisas serem verdadeiras que torna os que
protestam contra a globalização tão terrivelmente perigosos.” Num
momento de lucidez, um dos faróis do neoliberalismo veio dizer o que
nós já sabíamos: os motores da globalização neoliberal
podem ser parados ou mesmo postos a andar em marcha atrás; a
inevitabilidade da globalização neoliberal é um mito; a tese de que
não há alternativa é um embuste.
O capitalismo globalizado pelo grande capital financeiro ganhou força,
por um lado. Mas as suas contradições e as suas debilidades estão
sujeitas aos efeitos tão bem traduzidos na velha máxima segundo a qual
maior a nau, maior a tormenta.
Perante as contradições desencadeadas pela própria globalização
neoliberal, temos razões para acreditar que a globalização “aciona
forças que colocam em relevo não somente a incontrolabilidade do
sistema por qualquer processo racional, mas também, eao mesmo tempo, a
sua própria incapacidade de cumprir as funções de controlo que se
definem como sua condição de existência e legitimidade.” (I.
Mészáros).
Como salientava, há já vinte anos, Eric Hobsbawm, “o nosso mundo corre
o risco de explosão e de implosão. (…) Há sinais, tanto externamente
como internamente, de que chegámos a um ponto de crise histórica. (…)
O mundo tem de mudar (…) e o futuro não pode ser uma continuação do
passado.”
Tem inteira razão o grande historiador inglês. Neste tempo de crise
estrutural do capitalismo (o capitalismo do crime sistémico), os
trabalhadores do Brasil, da América Latina, da Europa, dos EUA e de
todos os continentes hão-de compreender a urgência de
transformar o mundo, começando por mudar as políticas levadas a cabo
nas últimas três ou quatro décadas pelo estado capitalista, cuja
natureza de classe talvez em nenhum outro período da história do
capitalismo tenha sido tão evidente como hoje.
Para sairmos desta caminhada vertiginosa para o abismo, é necessário
evitar que o mercado substitua a política, que as ‘leis do mercado’ se
sobreponham aos normativos constitucionais e que o estado democrático
ceda o lugar a um qualquer estado tecnocrático.
Cabe-nos a todos uma responsabilidade enorme nas lutas a travar, tanto
no que se refere ao trabalho teórico (que nos ajuda a compreender a
realidade para melhor intervir sobre ela) como no que respeita à luta
ideológica (que nos ajuda a combater os interesses estabelecidos e as
ideias feitas), porque a luta ideológica é, hoje mais do que nunca, um
fator essencial da luta política e da luta social (da luta de
classes).
É um trabalho longo e difícil. Vale a pena fazê-lo acompanhados da
música de Chico Buarque, que, em tempos de ditadura, sonhava e cantava
o seu “sonho impossível”, porque acreditava nele e nos apontava o
caminho: “Lutar, quando é fácil ceder / (…)
Negar, quando a regra é vender / (…) E o mundo vai ver uma flor /
Brotar do impossível chão”.

Porto Alegre, 28 de Janeiro de 2018

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