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17 de fevereiro de 2018

Daesh a história escodida

José Goulão
                               
Derrotado, mas não liquidado. O Estado Islâmico ou Daesh, por certo a organização criminosa de maior envergadura montada sob a fachada do «extremismo islâmico» para servir nas guerras de agressão e expansão lançadas este século, capitulou às mãos dos exércitos iraquiano e sírio, reforçados com o apoio de forças militares russas chamadas pelo governo legítimo de Damasco. Não, a chamada «coligação internacional anti-Daesh», comandada pelo Pentágono, nada teve a ver com o desfecho, antes pelo contrário, exceptuando o caso da sangrenta reconquista da cidade de Mossul, no Iraque.
Tornado ineficaz em termos de consolidação dos objectivos que originalmente lhe foram estabelecidos, designadamente o desmembramento do Iraque e da Síria e a remodelação das fronteiras estabelecidas no primeiro quartel do século XX naquela região do Médio Oriente, o Daesh está a ser reciclado para novas funções, definidas de acordo com os interesses transnacionais e globais de quem mais se tem servido dele, em primeiro lugar o Pentágono e a NATO.
Do «Califado» instaurado durante o ano de 2014 em territórios sírios e do Iraque, com centros nevrálgicos em Raqqa, Deir ez-Zor, Bukamal e Mossul, já nada resta para aquartelar os seus efectivos monstruosos: 240 mil mercenários com mil e uma origens, congregados sob as bandeiras do Estado Islâmico no Iraque e no Levante (Daesh na sigla árabe). Entre esses, é bastante provável que os membros do contingente de 80 mil antigos soldados do exército de Saddam Hussein recrutados pelas forças norte-americanas de ocupação do Iraque, no âmbito da estratégia para criação de um «Sunistão» que concretizasse a divisão dos territórios do Iraque e da Síria, regressem às suas regiões de origem.

«Reciclar»: quem, onde, como

Mas restam dois terços dos terroristas para «reciclar». Começam, porém, a conhecer-se alguns dos seus destinos. Chefes do Daesh estão a ser «amnistiados» pela Unidade de Protecção do Povo (YPG), uma organização curda actuando no Norte da Síria sob enquadramento do Pentágono, como via para integrar unidades de jihadistas nas «forças de segurança» das novas «fronteiras» regionais. Como a administração Trump vetou a criação desse corpo – no quadro da discordância entre a França e os Estados Unidos sobre a essência do projecto «Rojava» – os terroristas derrotados aguardam ainda a definição das novas funções, acampados à saída da base de Kasham, recinto militar ao serviço da ocupação norte-americana. É nesta espécie de limbo que os mercenários do Daesh transitam da condição de extremistas islâmicos ao serviço da jihad para gendarmes de causas que se afirmam laicas e são também atlantistas.
A reciclagem de outros efectivos do Daesh compete à ditadura de Erdogan na Turquia. Os mercenários estão a ser reintegrados no «Exército Livre da Síria», entidade fundada por potências da NATO no início da agressão ao povo e ao território sírio, em 2012, segundo a fábula de que se destinava a acolher os desertores do Exército Nacional, colocando-os ao serviço da «oposição». Na verdade encheu-se de jovens recrutados em todo o mundo árabe e também nos subúrbios de grandes cidades europeias; e que, enquadrados agora pelo exército de Ancara, combatem na região síria de Afrin contra os curdos da YPG e, por extensão, contra muitos mercenários que, até há dias, eram seus correligionários debaixo das bandeiras do Daesh. Destapando assim, por outro lado, um estranho cenário de confronto directo entre dois membros da NATO.

Outros mercenários do derrotado Estado Islâmico estão a ser transferidos para países como o Afeganistão, a Índia, o Bangladesh e Myanmar. As operações de resgate na Síria são efectuadas por aviões da Força Aérea norte-americana, que os transportam numa primeira etapa para o Afeganistão, de acordo com informações transmitidas pelo Irão à Rússia.
Já é possível conhecer funções que lhes serão distribuídas na Índia, uma vez integrados nas milícias hindus do partido nacionalista BJP do primeiro-ministro Narendra Modi, as mesmas que assassinaram o Mahatma Gandhi. Terroristas que ainda há dias fuzilavam e decapitavam em massa ao serviço da jihad ou «guerra santa» islâmica vão agora combater os rebeldes muçulmanos de Cachemira.
No Afeganistão, admite-se que alguns dos «desmobilizados» do Daesh integrem as operações de tráfico de ópio e heroína que o ex-presidente Hamid Karzai, um dos barões de tão rentável negócio monopolista à escala mundial, transferiu das máfias kosovares para o Estado Islâmico e suas redes europeias e africanas.
Como se percebe, esta reciclagem diversificada abre novos ciclos, sem fechar os objectivos que os criadores e mentores do Daesh definiram para o ciclo anterior. A partilha do Iraque não está consumada, embora o Curdistão se considere independente – porém não reconhecido internacionalmente. E o governo legítimo da Síria continua em funções, embora parcelas do território estejam ocupadas por extensões da NATO, com base até em limpezas étnicas – como aconteceu no Norte, onde as vítimas foram comunidades cristãs e árabes expulsas à força para deixar espaço aos curdos da YPG.
Por outro lado, estes acontecimentos permitem conhecer melhor os episódios soltos que escrevem a história sangrenta do Daesh, de maneira a compor o sinistro quebra-cabeças desta operação terrorista que está na origem de uma carnificina próxima de um milhão de mortos.

A verdade sobre a origem do Daesh

Corria o ano de 2006. Três anos depois da invasão do Iraque, a Casa Branca e o Pentágono desesperavam perante a mobilização dos iraquianos contra a ocupação, apesar do colaboracionismo dos mais altos dirigentes, confinados ao quarteirão do poder em Bagdade definido pela chamada Linha Verde.
John Negroponte, embaixador norte-americano em Bagdade, depois director nacional de espionagem e um especialista em operações subversivas clandestinas, decidiu então traçar uma estratégia para minar a resistência iraquiana. É muito rico o currículo do experiente embaixador, espião e conspirador Negroponte: por exemplo, assassínios selectivos no Vietname (Operação Phoenix da CIA); organização da guerra civil em El Salvador; montagem da operação Irão-Contras para tentar reverter a Revolução Sandinista na Nicarágua; liquidação da revolução de Chiapas no México.
Financiada e treinada pelo Pentágono, a organização terrorista sunita assim criada, enquadrada pela polícia especial («Brigada dos Lobos»), foi baptizada como ExércitoIslâmico no Iraque e ficou nominalmente a ser dirigida por Abu Bakr Al-Baghdadi, mais tarde o «califa» do Daesh, até que as armas russas puseram termo aos seus diasem território sírio. Em termos gerais, John Negroponte recorreu ao princípio básico de dividir para reinar, lançando sunitas contra xiitas e espalhando o terror entre as populações civis. No campo sunita, baseou-se na estrutura da Al-Qaida no Iraque para formar uma coligação tribal islamita. Requisitou os serviços do coronel James Steele, que colaborara com ele em El Salvador, e este recrutou os futuros dirigentes do grupo no campo de concentração de Bucca; organizou depois a sua formação na tristemente célebre prisão de Abu Ghraib, onde foram submetidos a métodos de lavagem cerebral elaborados pelos professores Albert Biderman e Martin Seligman, também usados em Guantánamo. A preparação dos chefes terroristas em métodos de tortura seguiu, por sua vez, os cânones experimentados na polícia política da Formosa, onde Steele leccionou, e na Escola das Américas, instrumento de elite para instrução dos aparelhos repressivos das ditaduras fascistas latino-americanas.
Com a chegada do general David Petraeus ao Iraque para chefiar a ocupação norte-americana, a nova milícia tornou-se uma unidade do regime. O coronel John Coffman foi agregado ao trabalho de Steele, respondendo directamente perante Petraeus; e o diplomata Brett McGurk ficou destacado para assegurar a ligação permanente do próprio presidente George W. Bush ao processo. Apenas dois anos depois de ter participado, com elevadas responsabilidades, na criação e condução do Estado Islâmico no Iraque o diplomata Brett McGurk foi designado como enviado especial do presidente Obama para supervisionar a chamada «coligação anti-Daesh».
O grupo extremista que deu corpo à ideia de Negroponte cumpriu a sua missão na guerra civil e foi muito aplicado na estratégia – ainda que falhada - de criação do «Sunistão» que partiria o Iraque em três zonas, juntamente com a curda e a xiita.


Rua de Aleppo, Síria. CréditosHosan Katan/Reuters / 
Em Abril de 2013, quase um ano depois de as principais potências da NATO e as petroditaduras do Golfo terem lançado a «Operação Vulcão em Damasco e Sismo na Síria» para desmantelar este país, já o Estado Islâmico no Iraque estava presente em operações de desestabilização desenvolvidas em território sírio; por isso, ampliou a sua designação para «e no Levante» (completando a sigla Daesh). No mês seguinte, guiado por uma associação sionista norte-americana, a Syrian Emergence Task Force, o senador direitista John McCain, um dos principais conselheiros de Obama para o Médio Oriente, avistou-se clandestinamente com dirigentes do terrorismo islâmico no interior da Síria. Entre os presentes, como pode testemunhar-se em fotos postas a circular pelos serviços de comunicação do senador, encontrava-se Abu Bakr Al-Baghdadi, o chefe do Daesh em pessoa. Para que, no entanto, não ficassem dúvidas, o senador McCain declarou a uma televisão do seu país que conhece pessoalmente os dirigentes do Daesh e está «em contacto permanente com eles».


Maio de 2013. Encontro de John McCain com terroristas, em teritório sírio ocupado por estes. À esquerda Ibrahim al-Badri, com quem o senador americano dialoga. Ibrahim al-Badri, mais conhecido por Abu Bakr al-Baghdadi, criou e dirigiu o chamado «Estado Islâmico». Fonte:SenegalPress
Nessa ocasião já os Estados Unidos faziam constar, entre alguns parceiros de guerra, a intenção de montarem um dispositivo terrorista de grande envergadura para reforçar as intervenções no Iraque e na Síria. Estava em curso, entretanto, uma acção de transferência para a Turquia, com destino à Síria, de mercenários islâmicos que tinham actuado sob o comando da NATO na operação de destruição da Líbia. Em 18 de Fevereiro de 2014, a conselheira nacional de segurança dos Estados Unidos, Susan Rice, convocou os chefes dos serviços secretos da Arábia Saudita, da Turquia, do Qatar e da Jordânia para Amã, onde lhes comunicou a reestruturação do «Exército Livre da Síria» e, nesse âmbito, a montagem, com supervisão saudita, de uma vasta operação secreta para remodelar as fronteiras regionais.

Estado Islâmico, versão actualizada

Entrou assim em funções a versão actualizada do Estado Islâmico no Iraque e no Levante, o Daesh. Abdelakim Belhadj, chefe terrorista líbio que a NATO escolhera como governador militar de Tripoli e a Interpol identificou como chefe do Estado Islâmico no Magreb, foi então enviado a Paris onde, recebido no Ministério dos Negócios Estrangeiros, aconselhou a França a transferir para o Daesh o apoio prestado à Al-Qaida – que o ministro Laurent Fabius considerava estar a fazer «um bom trabalho». Três campos de treino de jihadistas foram montados pelo Pentágono e pela NATO na Turquia, prontos a receber mercenários de todo o mundo com destino ao Daesh: em Sanliurfa, Osmanyie e Karaman.
Dotado com uma enorme frota de veículos todo-o-terreno da marca Toyota novinhos em folha, equipado com armamento avançado que os Estados Unidos forneciam usando o Exército do Iraque como falso destino, beneficiando de um sistema de túneis e bunkers atempadamente criado pela Lafarge, maior empresa mundial de construção civil, o Daesh avançou pelo Iraque com uma dinâmica que parecia imparável. Através de uma cavalgada na qual se sucederam os fuzilamentos em massa de populações civis, instaurando um terror bárbaro por onde passavam e onde se instalavam, os mercenários «islamitas» tomaram aeroportos, instalações petrolíferas, chegaram a poucas dezenas de quilómetros de Bagdade e, sem mais demoras, criaram um «Califado» em território conquistado dos dois lados da fronteira entre a Síria e o Iraque, cortando o movimento na estrada internacional Beirute-Damasco-Bagdade-Teerão. Tudo isto num ápice, em poucas semanas.
O contrabando de petróleo tornou-se uma das maiores fontes de financiamento do Daesh, com escoamento garantido por embarcações fretadas pela família Erdogan ou por milhares de camiões cisterna da empresa Powertrans, que tinha como proprietário remoto o próprio genro do ditador turco. Refinado pela Turkish Petroleum Refineries, o petróleo que sustentava a actividade terrorista saía através dos portos turcos para a Europa, destino que tinha também grande parte do produto «lavado» em Israel através da atribuição de falsos certificados de origem. Jana Hybaskova, representante da União Europeia em Bagdade, explicou este processo no Parlamento Europeu, pelo que os Estados membros não podem alegar desconhecimento da possibilidade de estarem a financiar indirectamente o terrorismo.
Pressionado pelas imagens aterradoras das decapitações de cidadãos ocidentais que o Daesh distribuía através do seu sistema de comunicação, em cuja génese estiveram peritos do MI6, serviço de espionagem britânico, Barack Obama viu-se forçado a lançar uma «coligação anti-Daesh».
Os efeitos dessa decisão na estrutura terrorista, porém, foram escassos. O mesmo não poderá dizer-se das centenas de vítimas civis sírias provocadas pelos bombardeamentos da «coligação» e dos entraves por ela colocados à acção do exército soberano de Damasco, principalmente quando estava em vias de concretizar vitórias estratégicas sobre os terroristas. Sem esquecer as abundantes denúncias segundo as quais a «coligação internacional» dizia combater os jihadistas enquanto continuava a municiá-los, através de armamento largado em para-quedas para as zonas sob seu controlo. Assim demonstrando, como se ainda fosse necessário, que o desmantelamento da Síria e o derrube do seu governo foram sempre os verdadeiros objectivos das potências da NATO, sobrepondo-se a qualquer variante da «guerra contra o terrorismo».
Não restam hoje dúvidas de que a estrutura mercenária do Daesh funciona como um corpo clandestino do Pentágono, da própria NATO, no quadro da privatização crescente das operações militares nos campos de batalha. A ideia, contudo, não é nova: tal como montou a estrutura clandestina e terrorista da Gládio, a NATO manipula agora um sucedâneo, o Daesh, adequado às condições e circunstâncias das regiões a dominar e policiar.

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