Gente fina é outra coisa
Jorge Cordeiro
Os projectos que o CDS levou a debate parlamentar a pretexto da “protecção” dos idosos revelam parte, do muito que ainda estará por mostrar, de quem mede o seu padrão de iniciativa e intervenção política por esse esse pequeno mundo de ilusão e opulência onde coabita.
Conceber que os problemas reais, e em muitas circunstâncias dramáticos das condições de vida dos idosos, se resolveria por via da criminalização das famílias e, pasme-se, dessa prerrogativa infalível que se lhes facultaria com o deserdar de filhos e descendentes, só podia mesmo passar por aquelas mentes. Nada que deva surpreender. Tão só o produto natural de conviviabilidade em ambientes de fidalguia e abastância. Dito de outro modo, coisas de gente fina.
Mesmo quando se quer dar um ar “popular” e fazer uns discursos condoídos sobre pobres e desfavorecidos, a matriz de classe do que se é politicamente, é assim como o azeite: ou seja, afastadas as considerações sobre massa ou densidade que em última circunstância podiam desmentir um testado provérbio com séculos de vida, vem sempre ao de cima.
Ouvir Cristas a papaguear com ressonante sucesso mediático que «a “esquerda” abandona os idosos» ou «não protege a população mais frágil e vulnerável», entedeada com a derrota do seu exercício de hipocrisia parlamentar, é digno destes dias de folia. Não se invocará aqui a falta de vergonha que recomendaria a não saída à rua, a menos que sob a cobertura de uma das muitas e fantasiosas máscaras condizentes com a tradição do entrudo. A questão não está no plano moral. Desde logo porque em matéria de observância de costumes, espírito caritativo e cândidas intenções, Cristas, Mota Soares e corte restante, são gente de pedir meças a quem quer que seja. O que se deve invocar é este refinado cinismo político de quem tendo estado no governo anterior, titulando aliás o ministério respectivo, vir com ar condoído falar das condições de vida dos idosos depois de, durante quatro anos, não terem feito outra coisa do que lhes ter infernizado a vida.
O que se devia ouvir de Cristas e do CDS era a devida penitenciação, a que os cinquenta dias que medeiam o entrudo e o período pascal interpelariam, pelo que durante quatro anos andou a semear de agruras sobre milhões de reformados. Gente que de fingida memória curta julga assim poder desmemorizar os outros. Não há goma que apague o rasto de quem enquanto pôde mais não descortinou outra forma de proteger os idosos para lá do corte das suas reformas. Não há tempo que apague a “protecção” dada com o congelamento das pensões para mais de um milhão e duzentos mil reformados, o agravar do mecanismo de condição de recurso e a restrição de acesso ao complemento solidário do idoso, levando a que mais de 70 mil o tivessem perdido. Não há manipulação argumentativa que iluda que Cristas, e o governo PSD/CDS a que pertenceu, agravou as taxas moderadoras e fez com que 800 mil portugueses, muitos dos quais idosos, perdessem o direito à sua isenção.
Considerar que o maior problema dos idosos se prende com o deserdar dos filhos que os abandonem é ignorar uma crua realidade: a maioria dos idosos não tem seja o que for que possa ser alvo de direitos sucessórios. Impelidos a medir a carteira dos outros pela sua, não deram conta que a pensão média do regime contributivo é de 441 euros, no regime não contributivo se fixa nos 287 euros, que mais de 220 mil pensionistas de velhice e invalidez recebem pensões inferiores a 200 euros. Ou que a maioria das famílias não tem rendimentos para aceder a um lar de idosos onde a mensalidade média é hoje bem superior a 800 euros. O futuro dos reformados e idosos exige uma resposta séria incluindo, também e naturalmente, as que combatam o abandono com a elevação das condições de vida familiar. Resposta aos problemas do presente, sejam eles o aumento das pensões ou a criação de uma rede pública de lares e de cuidados continuados, e aos do futuro, inseparáveis da valorização dos salários e da eliminação de penalizações associadas a factores como os da sustentabilidade. Não exercícios de manobrismo político ou de retórica parlamentar, rendilhados com umas genéricas disposições sobre medidas que enquanto governo nunca adoptou. Se o caminho que se fizesse fosse o da criminalização de condutas que atentam contra os direitos das pessoas idosas bem se pode dizer, que tivesse ele norma retroactiva associada, e está-se mesmo a ver quem já estaria a caminho da penitenciária.
Fechados no seu pequeno mundo não percebem nada do que os rodeia. Regressasse Calisto Elói, essa figura camiliana da “Queda de um Anjo” ao parlamento e ter-se-ia ouvido, com as devidas adaptações, - seja a da figura a que se dirige, seja a da devida rectificação geográfica que fará do Restelo e não do então recôndido lugar aludido - a interpelação proferida «ora o morgado tem coisas. Vossa Excelência parece que caiu há pouco de algum planeta. Olhe que Lisboa não é Miranda».
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