O sol e a
peneira
Tomando o acessório pela essência
na expectativa de que, iludidos por aquele se não veja esta, o argumentário que
tem envolvido o debate sobre “transparência” só pode ter por objectivo
tomar-nos, a todos, por tolos. Não é credível que quem se empenhe em descentrar
as razões que estão na origem do tráfico de influência e da corrupção acredite
que seja possível tapar o sol com a peneira. Mesmo em dia de nebulosidade
intensa, naquelas horas em que o dia se faz noite ou naqueles mais breves momentos
em que a lua se interpõe entre a terra e o sol, a verdade é que não há peneira
que encubra o que sol acaba sempre por alumiar.
Sempre se dirá, e com verdade,
que nenhuma lei pode eliminar deliberados comportamentos condenáveis. Mas é
ainda uma verdade maior afirmar que as regras, sobretudo a ausência delas, não
só não contribuem para os prevenir como os estimulam e abrigam. A maleita é
suficientemente viral para poder ser combatida com paliativos: sejam códigos de
conduta, piedosas intenções regulatórias ou descaradas soluções de lobbing
de influência. Aprovem-se os
códigos de conduta que se entenderem mais que não seja para se não parecer o
que à mulher de César se exigia que fosse. Mas não se queira com o marginal
fugir ao essencial: debelar a promiscuidade entre poder político e económico,
pôr fim à ligação umbilical dos grupos monopolistas aos partidos que têm
governado o País.
Neste curioso afã de alguns para
se assumirem como paladinos da transparência há quem veja num qualquer bilhete
de futebol – peão, superior ou central – um factor corruptível a que é preciso
pôr cobro. A intenção fica bem, é popular como os tempos recomendam, é até
comovente. Ainda que ponha a nu esta nossa limitação de situar nesse
ininterrupto trânsito entre as cadeiras dos conselhos de administração e as dos
conselhos de ministros, destes para chairman e CEO de grupos económicos
que tutelaram e agora administram, o problema a que se devia, de facto, dar
combate. Assim como não se questionarão regras que impeçam a oferta de uma
perna de presunto pata negra ou uma caixa de vinho afamado por ser
superior ao valor que se determine. É saudável e educativo. Mas o que queríamos
ver mesmo resolvido, talvez por insuficiência de percepção relativa de factos,
é este escândalo de ilustres
integrantes de afamados escritórios de advogados, hoje negociarem meticulosos
cadernos de encargos de futuras privatizações em nome do governo e, amanhã, lá
estarem a representar os grupos económicos, a mover acções contra o Estado ou a
justificar incumprimentos de obrigações contratuais que eles próprios
elaboraram.
A vertigem de movimentos é de nos
deixar sem fôlego: a ex-ministra das Finanças a sair do governo correndo para o
berço de quem especula com a dívida nacional; o vai-vem do antigo ministro de
Durão e Portas, José Luís Arnaut
que entre a privatização dos CTT e a sua passagem para a Goldman Sachs que os
adquiriu, aterra agora nomeado chairman da ANA, navegação aérea; a
transferência de Óscar Gaspar, Secretário de Estado da Saúde de Sócrates para a
associação do sector privado da área que tutelava; essa nebulosa de PPP e
“doações” a privados de erário público que marca a passagem de Sérgio Monteiro
pelo Governo anterior, premiada com a ida para o BdP para vender o Novo Banco;
ou quem nomeado pelo governo de Passos como negociador da privatização da ANA,
a ela presidiu enquanto pública e dela transitou para a Vinci já privatizada,
acabe nomeado pelo actual governo para presidir à NAV. Depois da recente
nomeação de Frasquilho fica-se com ideia mais nítida do que significa
“alargados consensos”.
Neste jogo de sombras e pantomina
aí está saída da cartola a ideia de legalizar o lobbing como sucedâneo
do nepotismo e tráfico de influência, agora credibilizado com a instituição da
sua prática a que não faltaria a devida entidade reguladora para travestir de
inocência o que se prolonga de pérfido.
Quer falar-se seriamente em
transparência? Combata-se a
promiscuidade entre os poderes político e económico, campo fértil para a corrupção e para o
desvio de erário público. Enfrente-se o regime de incompatibilidades e
impedimentos. Abandone-se de vez as resistências de PS, PSD e CDS à fixação de
requisitos mais apertados para exercício de cargos políticos alegando limitação
de direitos fundamentais ou argumentando que é tudo uma questão de educação.
Vá-se ao essencial: a titulo de exemplo, estenda-se às empresas
maioritariamente públicas as limitações já existentes; decrete-se o impedimento
nas situações em que mesmo não tendo participação relevante na entidade
contratante o deputado execute ou participe na execução do que foi contratado;
aumente-se para cinco anos o período de impedimento do exercício de actividades
privadas após exercício de funções públicas.
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