Uma
teoria na força da vida
Jorge Cordeiro
Duzentos anos depois do seu
nascimento, o pensamento e a obra de Marx, nas dimensões científica e
filosófica que encerram, ecoam com inteira actualidade.
Muitas das ideias de Marx parecem
hoje lugares-comuns. A contestação frontal a elementos fundamentais da sua
teoria económica e social é timorata. Não porque quem se lhe opõe a aceite na
sua essência, mas porque não podendo negar a realidade objectiva, - tanto nas
suas múltiplas manifestações sociais como nas correspondentes categorias
económicas, - opta por a desvirtuar e subverter.
O marxismo pode ser
ostensivamente ignorado no ensino ou adulterado em meios académicos. Pode
deliberadamente optar-se por Sócrates e pelo estoicismo em detrimento de
Epicuro e dos sofistas na filosofia antiga, insistir na formatação ideológica preferindo o
imaterialismo de Kant com o regime censitário em que desemboca ao igualitarismo
de Thomas More ou, no domínio da economia, privilegiar a cartilha de Keynes ou
Friedman à robustez do marxismo. Mas não será por a teoria marxista ser mil
vezes lida pelo que não é ou simplesmente ignorada que deixa de se expressar
nessa realidade em que todos os dias se tropeça nas relações de produção, no
lugar de cada um no sistema produtivo, nas raízes da exploração, nas crises
cíclicas que evidenciam a crise estrutural do capitalismo (inseparável da sua
própria natureza) e no cortejo de dramáticos problemas que lança sobre a
Humanidade.
O marxismo não nasceu do nada nem
à margem da civilização. Incorporou o que de mais avançado a ciência produzira,
como a teoria da evolução de Darwin, e acomoda os desenvolvimentos posteriores,
como a teoria da relatividade de Einstein. Tem os seus alicerces nas expressões materialista e dialéctica da
filosofia alemã, na teoria económica inglesa e no socialismo utópico francês. O
marxismo mergulha as suas raízes no avanço do conhecimento humano, nos lampejos
que libertaram o pensamento de concepções filosóficas e religiosas
obscurantistas, que aplicou o método dialéctico e científico não apenas à
natureza, mas também à sociedade, demonstrou conceitos económicos, situou a
relação da consciência e do ser enquanto produtos do meio social, evidenciou o
conjunto das relações de produção e a super-estrutura política, o Estado e a sua
relação com o direito de propriedade. Toda uma nova concepção do mundo, em
clara ruptura com o pensamento até então dominante.
Nenhuma teoria social e
filosófica exerceu acção tão profunda na consciência humana. A força da
evidência não permite negar as suas novas noções sobre a natureza do Estado, o
papel das classes sociais na história e no seu desenvolvimento, a criação da
mais-valia capitalista. Incapazes de desmentir a realidade, os seus detractores
optam por iludir os conceitos e as ilações que deles teriam de extrair.
Não admira, pois, os tratos de
polé a que é sujeito. Seja pelos que o atacam abertamente, seja pelos que dele
se reclamando o renegam ao recusarem o que significa de inevitável
transformação social.
Atomizando a integridade da sua
teoria económica: admitem conceitos como o de mercadoria, lucro ou valor mas
não querem ouvir falar do salário enquanto expressão monetária da força do
trabalho e, sobretudo, afastam o conceito de mais-valia com o que revela de
apropriação pelo capital da parte sobrante do valor total do produto criado
pelo trabalhador. Compreende-se: se o não fizessem ruiria o esforço para
esconder a incompatibilidade de interesses entre trabalhadores (para eles
“colaboradores”) e capital, a falsa teorização de que sem empresas e capital
não haveria nem emprego nem produto, e a ter de admitir que são os
trabalhadores que criam a riqueza.
Amputando a dimensão dialéctica
do materialismo histórico, do desenvolvimento social na sua relação com o modo
de produção dominante para
apresentar o capitalismo como o estádio último da sociedade humana e
ocultar a contradição insanável deste com o desenvolvimento das forças
produtivas que conduzirá à sua superação.
Distorcendo o marxismo naquilo
que é central como a natureza e papel do Estado: incapazes de o negar,
apresentam-no como uma entidade arbitral, acima do conflito de interesses de
classe, para iludir o que representa, em qualquer circunstância ou forma, de
instrumento de dominação e opressão.
É por isso que aí vemos, na
espuma do superficial e do politicamente correcto, a crítica às desigualdades
mas verberando a socialização da propriedade; as loas à “sociedade civil”
contrapondo-a ao Estado, mas iludindo o que aquela é enquanto mera expressão e
premissa deste; apelos à coesão
social, mas a recusa de leis laborais que defendam os direitos dos
trabalhadores na balança desigual em que se contrapõem aos do capital no modo
de produção capitalista.
A Conferência que o PCP organiza
este fim-de-semana, sobre o II centenário do nascimento de Marx é um momento
para tornar mais vívido e presente
um legado que, por mais silenciado e deturpado que seja, se impõe com
redobrada actualidade.
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