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26 de fevereiro de 2018

Marxistas de ontem , marxistas de hoje

Espero que a influência política da crónica de Rui Tavares, apostado em mobilizar o pobre Marx para a sua perdida causa europeísta, esteja ao nível da seriedade intelectual da pergunta que colocou na sexta-feira, tanto mais que se trata de um historiador: acreditaria Marx nos marxistas de hoje?

Tudo por causa da forma como os marxistas actuais, nomeadamente os comunistas portugueses, que parecem ser o alvo por mencionar, abordam a questão nacional, ao mesmo tempo que assinalam os duzentos anos do nascimento de Marx.

Tavares limita-se basicamente a repetir uma série de magníficos slogans conhecidos do Manifesto do Partido Comunista,escrito por Marx e Engels há 170 anos, e depois elabora uma narrativa que passa por cima de tudo o que de mais importante ocorreu na história do marxismo e da questão nacional.

Comecemos então por abrir e ler esse brilhante e aberto texto que é o Manifesto, indo para lá do slogan e parando em quatro momentos onde a questão nacional surge, baralhando as certezas algo a-históricas de Tavares.

Em primeiro lugar, note-se no que diz Engels no prefácio à edição polaca: “A restauração de uma Polónia forte e independente, porém, é uma causa que não diz respeito só aos Polacos — diz-nos respeito a todos. Uma colaboração internacional sincera das nações europeias só é possível se cada uma destas nações for, em sua casa, perfeitamente autónoma.”

Em segundo lugar, é verdade que “os operários não têm pátria”. Mas logo a seguir Marx e Engels esclarecem: “Não se lhes pode tirar o que não têm. Na medida em que o proletariado tem primeiro de conquistar para si a dominação política, de se elevar a classe nacional, de se constituir a si próprio como nação, ele próprio é ainda nacional, mas de modo nenhum no sentido da burguesia.”

Em terceiro lugar, afirmam o seguinte: “Pela forma, embora não pelo conteúdo, a luta do proletariado contra a burguesia começa por ser uma luta nacional. O proletariado de cada um dos países tem naturalmente de começar por resolver os problemas com a sua própria burguesia.”

Em quarto lugar, quando elencam dez medidas gerais para os “países mais avançados”, não deixam de sublinhar previamente que “estas medidas serão naturalmente diversas consoante os diversos países”, valorizando a especificidade e diversidade da escala nacional também no conteúdo. Já agora, entre essas medidas estava a “centralização do crédito nas mãos do Estado, através de um banco nacional com capital de Estado e monopólio exclusivo.”


Seja como for, qualquer discussão sobre esta matéria tem de partir, julgo eu, da constatação feita pelo insuspeito Michel Lowy (trotsquista), que talvez seja, dados os seus trabalhos, um dos que melhor conhece a história da relação do marxismo com a questão nacional: “Marx não ofereceu uma teoria sistemática da questão nacional, uma definição precisa do conceito de nação, nem uma estratégia política para o proletariado nesta área”. No mesmo texto, denuncia logo de entrada o economicismo e o livre-cambismo, tão evidentes quanto equivocados historicamente, presentes em certas passagens do Manifesto, sobre as bases materiais para o desaparecimento das nações, de resto eventualmente em tensão com outras passagens já aqui assinaladas.

Não se pode pedir tudo a Marx e a Engels, até porque o mais importante está lá, bem para lá das conclusões: um método de análise do modo de produção capitalista, sofisticado e aberto a análises históricas concretas de formações sociais concretas, com um intuito transformador.

Não é aliás por acaso que a questão nacional ocuparia na teoria e na prática as melhores mentes da Segunda e Terceira Internacionais, até dada a sua resiliência. De alguma forma, creio que a chave, em termos de história da economia política, está na teoria do novo imperialismo, política externa do capital financeiro oriundo dos países mais poderosos do sistema internacional. Diga-se que este é um tema que Rui Tavares nunca aborda, reduzindo o imperialismo a uma sobrevivência conservadora de antigo regime, o que é típico sobretudo das abordagens conservadoras ao assunto, diga-se, e tem implicações, por exemplo, na identificação das origens da Primeira Guerra Mundial.

As abordagens marxistas ao imperialismo permitiram uma articulação entre uma actualização de economia política internacional, enfatizando os processos de concentração e centralização do capital e os seus efeitos externos numa economia mundial brutalmente hierarquizada, uma mais clara ideia sobre a importância política das nações oprimidas, da sua autodeterminação e das formas institucionais variadas de que esta se podia revestir, para além de permitir uma fidelidade renovada ao ideal internacionalista da solidariedade com as classes exploradas e os povos oprimidos (esta última categoria passa a ser muito importante).

Não é aliás por acaso que um dos primeiros decretos do poder soviético - o da paz, o que apela ao fim de uma guerra tão fratricida quanto produto das rivalidades imperialistas (França, Grã-Bretanha e Alemanha são destacadas, naturalmente) - articula a questão da classe com um grande enfoque na questão nacional, na autodeterminação das nações (creio que é a palavra mais vezes repetida neste documento), ponto caro, por exemplo, a Lenine.

A Internacional Comunista, sobretudo depois da viragem para as frentes populares nos anos trinta, haveria de destacar a importância da liderança nacional, mas já antes tinha feito da luta contra o imperialismo e o colonialismo uma das suas bandeiras. A questão nacional era aliás também um ponto caro a um leninista chamado Gramsci, por exemplo, o da formação da vontade geral nacional e popular. Para lá da Europa, os movimentos anti-coloniais de inspiração marxista e teorias marxistas como a da dependência fariam o resto, também em matéria de defesa de uma certa ideia de desconexão económica num contexto de tarefas novas de desenvolvimento.

Sim, o marxismo, como qualquer tradição viva e plural, evoluiu e mudou muito desde Marx. Hoje, sem cair nos extremos da teoria da dependência, temos de defender a capacidade dos países para decidirem soberanamente as conexões e as desconexões, económicas e outras, internacionais que melhor servem os interesses dos seus povos.

Entretanto, em Portugal, uma certa tradição marxista teve no século XX em Álvaro Cunhal o seu principal cultor. Se atentarmos no melhor trabalho que conheço sobre esta história em Portugal, Comunismo e Nacionalismo em Portugal, da autoria do historiador José Neves, constatamos o investimento intelectual, cultural e político colectivo que foi feito, nas mais duras condições, para imaginar uma outra nação, em oposição à nação do fascismo. As posições do PCP sobre a questão nacional vêm de longe. E é preciso dizer que os comunistas têm acertado mais do que outros quando analisam a economia política da integração europeia e os seus efeitos. Talvez isto se deva a uma certa fidelidade a uma certa tradição marxista, de resto tão fiel e infiel a Marx como qualquer outra.

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