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26 de fevereiro de 2018

Mercantilização da criação e fruição culturais. Aparelhos de dominação ideológica

http://www.pcp.pt/node/299034


Da Cultura como espaço de luta entre uma ideologia da emancipação e uma ideologia da dominação.
 Manuel Gusmão
* Lida por Rui Mota
É a prática social total que gera, dialecticamente, a ideologia. A ideologia é uma forma da experiência social (fr. 1 p.3). Vasco Magalhães-Vilhena começa assim os seus Fragmentos sobre ideologia. Com essa formulação, em duas proposições, o filósofo português aponta velozmente dois traços da definição de ideologia em Marx: a determinação pela estrutura social e o ser uma forma da consciência social. A partir daqui, Vasco Magalhães-Vilhena insiste em que a ideologia não é necessariamente conhecimento deformado, aberrante ou ilusório e com base numa leitura interpretativa de algumas obras da juventude de Marx e Engels, propõe como necessária e exacta a distinção entre a ideologia em sentido geral e em sentido restrito, numa acepção em que se aproxima da significação de idealismo «A faceta da ideologia em função da qual ela não é somente um reflexo invertido da realidade, mas também, e sobretudo, um reflexo que ignora a razão de ser dessa inversão, é uma faceta historicamente relativa. Isto é, ela extrai a sua origem de circunstâncias sociais, históricas e, portanto, transitórias bem precisas. Por outras palavras, a inversão ideológica, é um momento acidental, e não essencial, do processo de reflexão da realidade no conhecimento.» (Magalhães-Vilhena, “Fr., sobre ideologia”, 36 p.50) 
Para Marx e Engels a ideologia traduz, na sua acepção geral, o conjunto das formas da consciência social que se ergue sobre uma base social dada, o acervo das representações sociais, dos objectivos, desígnios, ideias, opiniões e formas de sentir disponíveis a cada momento, na sociedade.
Funcionalmente a ideologia transforma os indivíduos concretos em sujeitos do discurso, gera a ilusão de que dominam as suas condições de actividade e consciência, toca a reunir os membros da classe cujos desejos a ideologia exprime e, para levá-los à luta, quanto mais não seja pela sua sobrevivência.

Segundo o mesmo autor, para Marx, Engels e Lénine, todas as formas da consciência social sem qualquer excepção -- todas as formas ideológicas -- são determinadas em última instância — isto é através de numerosas e complexas mediações e conforme uma autonomia relativa — pelo desenvolvimento da base económica da sociedade. Em última instância (in der letzte Instanz) – isso quer dizer, essencialmente, que a dependência da superestrutura ideológica, relativamente às relações económicas, ocorre através da interconexão das diferentes formas de consciência social e do desenvolvimento da própria ideologia; a autonomia relativa da ideologia, aliás, varia de uma forma ideológica para outra.
A categoria histórico-filosófica de ideologia significa concepção geral do mundo e da vida que, simultaneamente, reflecte a marca social na sua origem e projecta eixos de actuação prática sobre a realidade. Desse modo, ela perde o seu valor negativo.
Marx mostra convincentemente que qualquer formação económico-social precisa, para continuar a produzir — ao mesmo tempo que o faz — de reproduzir as suas condições materiais de produção. Deve pois reproduzir as suas forças produtivas, designadamente a qualificação do trabalho e as relações de produção existentes (às quais a produção deve submeter-se).
Com base na leitura que faz de Marx no Livro II d’O Capital, Louis Althusser observa que toda a formação social releva de um modo de produção dominante, pelo que podemos dizer que o processo de produção põe em movimento forças produtivos existentes em (dans et sous) relações de produção definidas. Donde se segue que, para este autor, toda a formação social deve produzir e, para fazê-lo, deve reproduzir as condições da sua produção. Deve pois reproduzir as forças produtivas e as relações de produção existentes (cf. Louis Althusser, “Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado”, Ed. Presença, 1974, p.11).
Althusser passa de seguida a descrever a ideologia como agenciamento activo da reprodução das relações de produção existentes e tendente a, tendo em conta a teoria marxista-leninista do Estado como aparelho repressivo, obrigar à manutenção da extorsão da mais-valia à classe operária através da luta de classes. Se o aparelho repressivo é único e centralizado, os procedimentos ideológicos que visam o tipo de submissão da classe operária às relações de produção dominantes, responderiam a um plural de aparelhos ideológicos. No fundamental, a diferença entre os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) e o aparelho repressivo estaria em que, quer um, quer os outros, manifestam uma diferença de acento muito importante que impede a confusão entre eles. É que o aparelho repressivo funciona de uma maneira massivamente prevalente pela repressão, embora funcione secundariamente pela ideologia, da mesma maneira que, mas inversamente, os aparelhos ideológicos do Estado funcionam prevalentemente pela ideologia e secundariamente pela violência (Althusser, 1974, p. 46).
Althusser fornece então uma lista empírica dos aparelhos ideológicos de Estado e sujeita a discussão. (Althusser, 1974, p. 43-45)
-- O AIE religioso (o sistema das diferentes igrejas),
-- O AIE escolar (o sistema das diferentes escolas públicas e particulares),
-- O AIE familiar,
-- O AIE jurídico,
-- O AIE político (o sistema político de que fazem parte os diferentes partidos)
-- O AIE sindical,
-- O AIE da informação (imprensa, rádio-televisão, etc)
-- O AIE cultural (Letras, Belas Artes, desportos, etc.).
A lista é, internamente, muito heterogénea -- o que aproxima, por exemplo, o AIE familiar do AIE Jurídico? --, e a própria designação de AIE deixa transparecer uma concepção mecanicista do papel do Estado nos diferentes aparelhos ideológicos. Para o problema que aqui nos interessa estudar, podemos fazer equivaler os domínios ideológicos a diferentes áreas culturais, de base disciplinar. Teríamos assim culturas artísticas, a cultura desportiva, as culturas filosófica, científica, ecológica, a cultura tecnológica e as culturas religiosas que se exercem sobre actividades mais ou menos institucionalizadas ou acolhidas por instituições, como o ensino e educação em diferentes graus do aparelho escolar; os teatros, o cinema, a dança, as escolas de ensino artístico, e as formas de reprodução das várias performances; a investigação científica; a inovação tecnológica e a consciência ecológica; a comunicação social e os seus vários media; as várias redes de debate de matérias mais ou menos específicas.
Estas áreas têm-se desenvolvido desde o tempo de Marx até aos nossos tempos, não só através do crescimento quantitativo de obras, mas através do interesse crescente dos públicos e da sua diversidade social. Para além do crescimento, do desenvolvimento formal e mesmo do acesso de diferentes públicos socialmente diferenciados, esta grande área ganha uma consistência material fortíssima. No exercício das suas actividades, os produtores culturais e ideológicos têm constantemente que lidar com realidades materiais, o papel, a(s) tinta(s), as canetas, as máquinas de escrever, os computadores; com pincéis, lápis, tesouras, a tela, a pedra, o metal; com instrumentos de observação e de medida. A literatura, as artes, a filosofia, as ciências, cessam por consequência de serem actividades puramente espirituais e sobretemporais, se é que alguma vez o foram; o que traz consigo a sua historicização interna que torna possível uma história cultural concebida como a das metamorfoses do conjunto das produções humanas.
O aparecimento do proletariado e a sua transformação em partido, bem como a criação das suas organizações sociais e culturais, tornou estas áreas em fonte de direitos de acesso, objecto de reivindicações, espaço das lutas e do trabalho da emancipação social. Por um lado, a ideologia burguesa reforça a tendência para que, no fundamental, o funcionamento da sua intervenção se dê massivamente no sentido de manter as condições de reprodução da sua ideologia. Neste quadro, o proletariado e outras secções de classes e grupos sociais, pressionam no sentido de obter uma democratização da cultura que culminará, em termos de definição de projecto, na palavra de ordem já leninista de revolução cultural.
Assim, quando a burguesia se defronta com um campo de direitos, ela reage sempre tendencialmente no sentido da sua restrição ou denegação. Por um lado a burguesia tende a valorizar o espaço industrial que é susceptível de gerar interesse económico-financeiro e pode inundar o mercado assim acrescentado de produtos que são sucedâneos para a liberdade de criação artística. Por isso, uma das suas orientações políticas fundamentais é a mercantilização de todos os intervenientes no que tenderão a chamar «o mercado cultural». 
A financeirização sob a forma do subfinanciamento crónico é a forma mais agressiva da mercantilização dos factores culturais. 
Para a burguesia não há necessidade de uma política de democratização cultural porque argumenta que as indústrias «inovadoras ou criativas» são as que mais lucros obtêm e públicos mais vastos atingem. Com esse nome demagógico, a burguesia aponta as somas atingidas pelas indústrias fonográfica e áudio-visual como prova da existência de uma democracia cultural. 
A financeirização leva o Estado burguês a comprimir a autonomia relativa, a sobrecarregar as dificuldades dos criadores, submetendo-os a diversas formas de censura e de controlo burocrático, obrigando, em casos limite, os executantes musicais, por exemplo, a terem de pagar os seus instrumentos que, ainda por cima, eram taxados como produtos de luxo, situação ultrapassadas no Orçamento de Estado por proposta do PCP.
A desvalorização do trabalho dos trabalhadores culturais começa na incompreensão do seu horário de trabalho, o que é determinante no que se designa como «trabalho intermitente». Grande parte do trabalho de criação cultural não é visível pelo espectador, antes é um trabalho invisível e contudo fundamental para a obra produzida.
O trabalho intermitente, acompanhado pela ideia de que a cultura não necessita de grandes verbas porque é uma produção imaterial é, à partida, uma forma de exploração e uma ameaça à autonomia relativa dos trabalhadores da cultura. Esta concepção é contraditória com a monumentalização do poder. A par do subfinanciamento crónico das actividades contemporâneas, a ideologia burguesa defende, aliás, de forma inconsequente, o apoio financeiro às actividades relacionadas com a salvaguarda do património cultural.
Na crítica destas orientações das ideologias da burguesia, defende-se a prioridade estratégica conferida à democratização da criação cultural. 
A definição dessa prioridade implica uma base de massificação do acesso à cultura mas não é suficiente, a não ser para uma concepção social-democrata. Neste caso, a democratização adquire como traço distintivo a promoção da participação que intensifica o papel dos intervenientes no processo cultural, e identifica um traço que já Marx referira: O objecto de arte – tal como qualquer outro produto – cria um público capaz de perceber e apreciar a beleza. Portanto, a produção não cria apenas um objecto para o sujeito, mas também um sujeito para o objecto. Logo, a produção gera o consumo 1º, fornecendo-lhe a sua matéria; 2º, determinando o modo de consumo; 3º, criando no consumidor a necessidade de produtos que começaram por ser simples objectos (Marx 1857, p.220).
Marx desloca, assim, o acento para a constituição da obra e prepara o terreno para vir a afirmar que esse fazer da obra se mantém activo nela, e é o reconhecê-lo que marca o leitor/espectador e o destina a ser capaz de, também ele, criar novas obras que podem chegar a transformar o modo de utilizar a linguagem, por exemplo, numa determinada obra que deixou de ser um simples objecto, para passar a ser um produto.
Assim, Marx e Engels e Lénine, ao insistirem na democratização da cultura, estão a potenciar a sua capacidade de transformação do mundo e da vida, a desenvolverem o que nela é promessa de emancipação social e humana, enquanto o destino que lhe dá a ideologia burguesa é tão só o de manter a dominação ideológica de uma classe sobre as outras. Nos Manuscritos Económico-Filosóficos (de 1844), Marx já entrevira essa capacidade de as artes virem a ser, graças ao seu trabalho na história do mundo, um trabalho intenso de alargamento das capacidades dos sentidos humanos. A música, criando um sentido musical; a pintura, criando um sentido para a beleza das formas; a literatura, contando outra vez, mas sem repetição, as histórias que nos aconteceram; ou os afectos que nos fazem, tudo isso inovando na forma de apresentação das obras artísticas, vai transformando, alargando e aprofundando a capacidade de produzir sentido e de, portanto, o reconhecer na natureza do mundo e das coisas e, por isso, aumentando a capacidade de entendimento e de produção dessa natureza socialmente humanizada.
Uma deslocação do eixo da democratização da fruição da cultura centrado na democracia da fruição para o eixo da democratização da criação cultural é o que o marxismo revolucionário nos leva a considerar necessário para potenciar aquela capacidade da produção gerar o consumo de que falava Marx. E, reparemos, que Marx não atribui aqui à arte nenhum especial condão — ele diz, lembram-se, «o objecto de arte – tal como qualquer outro produto -, cria um público capaz de compreender a arte e apreciar a beleza […]». Com a frieza e a paixão, com o rigor analítico e da imaginação, compreendemos o que Marx está a fazer: ele está a condenar aqueles que excluem milhões de seres humanos do convívio com a arte e a beleza, assim como os amputam de uma fracção da sua humanidade, no mesmo momento em que, numa operação em tudo semelhante, lhes roubam o pão e a água, os expulsam das suas terras e os aprisionam na condição que lhes impõem de refugiados.

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