Agostinho Lopes
O discurso (ou sermão) do novo 1.o Ministro Montenegro na tomada de posse
do Governo foi de uma cristalina clareza na escuridão da estratégia que tem
elaborada e armazenada.
Se havia dúvidas, ou alguém de boa fé estava enganado, as suas palavras
enquadradas pelo contraponto do Presidente Marcelo, não deixaram dúvidas ou
lugar a enganos, a não ser aos que tapam os olhos para não ver... e ao que se
percebe há bastantes! Três cenários estão desenhados.
O primeiro é o mais improvável, mas anda por aí... aconselhado também por
gente do PS. O PS aceita o papel de parceiro menor de outro bloco central – há
quem lhe chame «bloco central informal» (1) –, mesmo proclamando urbi e
orbi ser o «líder da oposição». Montenegro por aí irá, de pé atrás, mas sempre
preparado para outras duas saídas.
Não parece ser boa ideia para o PS, mesmo se a possibilidade de ter o PSD na
mão ser encantatória para, em momento oportuno, sacudi-lo borda fora. Terá as
vantagens de que o novo Governo PSD, com as velhas ideias do PS, lhe tire
algumas castanhas do lume, tapando inclusive buracos abertos por Costa e c.ia
e ficando com os custos de tais operações, enquanto o Chega engorda e encurta
mais o PSD! Mas também desvantagens: ficar demasiado encrustado, agarrado
a soluções do PSD e pagar por isso uma factura elevada. Não estarão
esquecidos que após um casamento assim (embora em posição relativa inversa)
vieram as maiorias, incluindo as absolutas de Cavaco Silva!
Mas dois outros caminhos estão em cima da mesa – Montenegro sinalizou, e
não só agora, por cá o «não é não», enquanto nas ilhas, ao que parece, o não é
sim. Para que o PSD e Montenegro possam cumprir o «Programa que os
eleitores sufragaram» (é evidente que toma a parte pelo todo: quem o sufragou
foram 1.814.021 eleitores, 28,02% – pouco mais de um quarto – dos que
votaram!), Montenegro acha que os outros partidos devem fazer seu o seu
Programa eleitoral, e abrir de par em par as portas ao seu governo! (Nem a
Constituição da República nem nenhuma democracia parece indiciar tal
imperativo!) Assim avançará com «soluções» que demagogicamente assumiu,
que responderão em parte, muito parcialmente, a reclamações e situações
agudas deixadas pelo PS, tanto quanto possível delimitadas e enviesadas na sua
concretização em dois grandes grupos: a satisfação no imediato do grande
capital com a redução dos seus impostos – ver baixa do IRC e a quem se vai
aplicar –, com uma nova e favorável repartição dos dinheiros do PRR (vai usar
a chantagem dos prazos de execução), com a privatização por
concessões/cheques de serviços público a serem prestados por transferência
para serviços privados (saúde, ensino, etc.) com o argumento de responder a
urgências inadiáveis, com a acentuação das lógicas de mercado na resposta ao
problema habitacional, favorecendo a especulação imobiliária e com mexidas
na legislação laboral com a justificação do costume (ver solicitações de
associações patronais). Este grupo de respostas terá a sustentá-lo a «forte» mas
fraudulenta argumentação de pôr o país a crescer, da necessidade de um
elevado crescimento económico, para reforçar a capacidade financeira do
Estado (com «contas certas») e das empresas para responder às outras
promessas feitas a outros grupos profissionais e sociais. Branco é galinha o
põe.
O segundo grupo de «soluções» terá, para lá de algumas migalhas iniciais, a
resposta de um faseamento, atirando a sua finalização para o fim da
Legislatura. Argumento: dar tempo ao crescimento económico sem
desequilíbrios na gestão orçamental – nada de aceitar encargos públicos
regulares sem receitas regulares (isto enquanto alivia fiscalmente o capital!).
Procurará criar com as promessas apenas iniciadas na sua concretização (mas
incumpridas) um ambiente de euforia sabiamente animado pela comunicação
social dominante e os améns das grandes confederações patronais (agora é que
vai ser... mais investimento, mais produtividade, mais exportações, mais
habitação... mas depois de amanhã!), travando os «protestos» (e crescimento)
do Chega que terá pouco para protestar – ver programa do Pacheco Amorim (2)
– e exibindo as dificuldades de responder a tudo o que as malfeitorias do PS
(muitas vão ser exibidas como novidade!) causaram e causam aos portugueses.
Argumentará com as novas regras orçamentais da UE, com a crise nos nossos
mercados externos e os constrangimentos da geopolítica e da guerra.
Aliás, ainda a procissão não tinha saído da igreja e já o prior alertava de que a
ideia de que vamos resolver tudo porque temos os «cofres cheios» era
«perigosa», era «errada» e era mesmo «irresponsável» (3). No que foi
secundado pelo padre pregador um dia depois: «As limitações orçamentais
existem e exigem a todos – governantes e outros actores políticos – terem uma
consciência e sentido de cumprimento desses limites», anunciando que o
Governo vai esclarecer os portugueses sobre «as disponibilidades orçamentais
que existem (4)». O Expresso tirou a inevitável conclusão: «Governo trava
expectativas e pede tempo». Boa vai ela, para os portugueses que pensaram que
com Montenegro no Governo era «atar e pôr ao fumeiro». Não, primeiro ainda
vamos criar o porquinho... e depois logo se vê!
E se o PS ou o Chega não lhe viabilizarem os OE aí teremos a vítima exposta,
de corda ao pescoço, disposta à degola, sem poder trabalhar para o
bem/salvação dos portugueses, procurando repetir o teatro de Cavaco e Costa
em busca da maioria absoluta e que tão bons resultados deu, como sabemos
hoje! Se as sondagens, após beneméritas obras pró-capital e obras de
beneficência para os pobres e necessitados, e muitas promessas não
concretizadas por oposição dos malandros da oposição – nem (sabem) governar
nem deixam governar – forem de bons augúrios, e não é difícil que aconteça,
salvo manobras e campanhas maliciosas no interior e acontecimentos
extraordinários no exterior, será por aí que Montenegro vai, na busca da
almejada maioria absoluta, julgando que assim também limitará e sangrará o
Chega.
Se as sondagens não derem luz verde no semáforo para essa via, então, mesmo
com algum sacrifício de imagem, há uma autoestrada à disposição, onde poderá
ser construída de raiz, e consolidada com bons alicerces, toda a política de
direita, e mesmo ir além da troika (PSD, CDS, PPM), com a cooptação do
Chega! É fácil a reformulação do «não é não»: o PS (a «esquerda») fez o
«bloqueio democrático», não o «deixou trabalhar», inviabilizou que o PSD/AD
cumprisse o seu programa eleitoral, contrariamente ao que tinha dito durante a
campanha eleitoral. Alterado o quadro político em que pronunciou o
pleonasmo, resta o Chega. Assim, para permanecer fiel aos eleitores, dirá o
PSD: lá terá que ser o Chega!
A única dúvida agora é se esta estratégia já está ou não acordada com o Chega.
Mas pode não estar. O parceiro é de (elevado) risco e tem muita prosa, como
foi visível naquela balbúrdia da eleição do Presidente da AR. Mas já se tem
visto teatro mais conspirativo e encenação de manobras de diversão mais
criativas!
Seria de espantar que bem encenada esta peça não tivesse as palavras
adequadas e justas daqueles que fizeram cruzes sobre a boca e ameaçaram com
o fogo do inferno quem assim procedesse. Mas as almas são muito temerosas
das perdas de poder, votos, sinecuras. E assim a absolvição, mais cedo que
tarde, chegaria, e nem água benta precisaria. Nascida a criançola, nem sequer o
Sr. Presidente da República se atreveria em nome da santa estabilidade e
governabilidade a pôr em causa o seu sucesso. A bem da nação.
Isto fica escrito na pedra. Mas para lá do direito a traçar cenários, também
haverá sempre um cinzel para reescrever a história pós-10 de Março. A força do
povo português já a reescreveu algumas vezes, como bem sabemos.
(1) Manuel Carvalho, «A arrogância não é exclusivo das maiorias», Público,
04ABR24.
(2) Em recente artigo no Sol, 29MAR24, «O Chega veio para ficar», Pacheco
de Amorim enumera aspectos centrais do programa do Chega: «Alterar
profundamente a máquina do Estado (...)»; «Alterar profundamente as políticas
públicas de Saúde, Educação, Segurança Social (...)»; «Retirar o Estado de
onde não deve estar para reforçar onde ele é indispensável é devolver aos
portugueses a liberdade perdida (...)» (leia-se: tirar da saúde, educação,... e pôr
na polícia...), e «Finalmente, a baixa acentuadíssima de impostos (...)».
(3) Luís Montenegro, na tomada de posse do Governo AD.
(4) Ministro Leitão Amaro, no encontro com os OCS após o primeiro Conselho
de Ministros.
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