A tentativa de ‘maidanizar’ a Geórgia
A CE argumenta que “a
adoção da lei sobre agentes estrangeiros será um obstáculo no caminho da
Geórgia para a UE.” Não se percebe como é que o pleno funcionamento das
instituições democráticas pode minar o desejo da Geórgia aderir à
União. Deveria ser o oposto.
Carlos Branco, Major-General
13 jun 2024, 00:10
Carlos Branco
Tornou-se
antiquado mudar regimes através de golpes militares. Essa prática foi
substituída por técnicas mais “modernas”, como as “revoluções coloridas”
levadas a cabo em vários países do antigo espaço soviético, inspiradas
na teoria da ação não violenta de Geene Sharp, ou como a Lawfare.
Das
várias revoluções coloridas, duas tiveram lugar na Ucrânia (2004 e
2014) e uma na Geórgia (2003), derrubando governos democraticamente
eleitos. Eduard Shevardnadze, eleito presidente da Geórgia em 1995 e em
2000, foi afastado através de uma revolução colorida, que colocou
Mikheil Saakashvili no poder. Tanto num caso como no outro sabemos quem
as financiou e instigou.
Os
poderes instaurados através destas manobras sediciosas acabam por ser,
mais tarde ou mais cedo, afastados eleitoralmente, sendo necessário
promover novas “revoluções” para reinstalar proxies. Foi o que aconteceu
em 2014, na Ucrânia, e se ensaiou o ano passado e este ano, em Tbilisi,
onde se encontra em curso uma nova tentativa, tendo como leitmotiv a
contestação à lei “Sobre a Transparência da Influência Estrangeira”.
Em
2012, o estratega do golpe que afastou Shevardnadze foi derrotado
eleitoralmente por Bidzina Ivanishvili, líder o partido “Sonho
Georgiano” (SG). Desde então, o SG tem ganho com grande vantagem todas
as eleições legislativas.
Depois
de avanços e recuos, a referida lei foi aprovada em maio de 2024, após
um veto presidencial. A larga maioria parlamentar do SG permitiu anular
esse contratempo – eram necessários 76 votos, o SG controla 84 lugares.
Não obstante a democraticidade do processo legislativo georgiano,
mereceu a condenação da Comissão Europeia (CE) e dos EUA. Sem explicar
porquê, a CE argumenta que “a adoção da lei sobre agentes estrangeiros
será um obstáculo no caminho da Geórgia para a UE.” Não se percebe como é
que o pleno funcionamento das instituições democráticas pode minar o
desejo da Geórgia aderir à União Europeia (UE). Deveria ser o oposto.
Enquanto
decorriam os debates no parlamento, os ministros dos Negócios
Estrangeiros dos Estados bálticos, da Islândia e o presidente da
comissão parlamentar de assuntos exteriores do Bundestag, numa
inaceitável ingerência nos assuntos internos da Geórgia, encabeçaram uma
manifestação de estudantes até ao parlamento, em protesto contra a lei
sobre os agentes estrangeiros. Paradoxalmente, vimos agentes
estrangeiros a contestarem a aprovação por um parlamento
democraticamente eleito de um projeto de lei dedicado à “transparência
sobre a influência estrangeira”, que pejorativamente apelidaram de “lei
russa”.
Tivessem
dirigentes georgianos feito o mesmo na Alemanha ou em qualquer país
báltico zeloso da sua soberania e teriam sido detidos e enviados de
volta ao seu país. Não será difícil imaginar qual seria a reação de um
qualquer país da CE, se o presidente da comissão de relações exteriores
da Duma ou o ministro russo dos Negócios Estrangeiros reciprocasse e
encabeçasse uma manifestação numa qualquer capital europeia. O que
parece inaceitável nuns sítios, parece aceitável noutros.
Mais
de 60 países por todo o mundo adotaram leis sobre agentes estrangeiros,
nomeadamente as democracias ocidentais, muito semelhantes e nalguns
casos mais exigentes do que a georgiana. Os EUA, que estão por detrás
destas ações desestabilizadoras, aprovaram em 1938 a Lei de Registo de
Agentes Estrangeiros (FARA). A própria UE adotou, em dezembro de 2023,
legislação sobre agentes estrangeiros, o designado “Pacote de Defesa da
Democracia”, nalguns aspetos mais rigorosa do que a lei americana.
A
lei russa sobre agentes estrangeiros – aprovada em 2012 e modificada em
2019 e 2021 – foi determinante para pôr fim às ONG financiadas pelos
EUA, Reino Unido e UE que, segundo o governo russo, ao serviço de
interesses estrangeiros, desempenharam durante mais de duas décadas um
papel sedicioso, procurando minar a confiança dos cidadãos no governo,
promovendo a chamada oposição política, dando-lhe dinheiro e instruções.
A
lei aprovada pelo parlamento georgiano pretende tornar transparente o
financiamento das ONG, procurando prevenir a interferência estrangeira
em assuntos de política interna do Estado georgiano. Por isso, exige que
as ONG declarem as suas fontes de financiamento. Quando mais de 20 por
cento do seu orçamento for proveniente de fontes estrangeiras devem
registar-se como agentes estrangeiros. Em benefício da transparência,
têm de declarar a origem do dinheiro.
Segundo
Nikoloz Kharadze, presidente da Comissão de Assuntos Exteriores do
parlamento georgiano, “há cerca de 25 mil ONG ativas na Geórgia, 90% das
quais recebem fundos do estrangeiro. Com esta lei, os georgianos
poderão ficar a saber quais das 25 mil ONG são totalmente financiadas
por governos estrangeiros hostis”. Num país cuja população não atinge os
quatro milhões de habitantes, haverá cerca de uma ONG por cada 160
cidadãos, sem se saber de onde vem o dinheiro para sobreviverem.
Ainda
com a lei em discussão, o primeiro-ministro da Geórgia Irakli
Kobakhidze afirmou que “o projeto de lei tem como principal objetivo
proteger a Geórgia da ‘ucranização’, reforçar a soberania e assegurar o
desenvolvimento estável [do país], uma condição necessária para a
integração da Geórgia na União Europeia. Evitar a ‘ucranização’ é uma
condição necessária para a integração da Geórgia na União Europeia, e
este é o principal objetivo deste projeto de lei”.
Os
verdadeiros motivos destes grupos industriados e pagos para derrubarem o
governo não têm nada a ver com os argumentos avançados pela UE, mas sim
com o facto da Geórgia não ter cedido a pressões para abrir uma nova
frente militar contra a Rússia. De salientar que o presente governo
continua a definir como principais objetivos da sua política externa a
adesão à UE e a cooperação com a NATO. Mas isso parece não chegar. O que
é mesmo necessário é uma política de intensa hostilidade à Rússia.
É
fácil compreender o motivo de um país com 3,7 milhões de habitantes,
uma larga fronteira com a Rússia, dependente economicamente de Moscovo e
localizado no Cáucaso do Sul, uma zona de extrema importância
geoestratégica para a Rússia, pretender desenvolver uma política
acomodatícia com o Kremlin, que nunca permitirá a instalação de bases
militares pertencentes a potências hostis em território georgiano.
Antecipando
o que seria uma política de confrontação com Moscovo, para onde é
insistentemente empurrada por Bruxelas e Washington, Kobakhidze disse
que, “hoje, a Ucrânia está em ruínas. É o resultado de Maidan, isto não
acontecerá na Geórgia”.
Por
seu lado, procurando interpretar a vontade popular georgiana,
Washington mostrou uma “profunda preocupação com as ações
antidemocráticas do SG, bem como com as suas recentes declarações e
retórica”, dizendo que “estas ações podem comprometer o futuro europeu
da Geórgia e são contrárias à Constituição da Geórgia e aos desejos do
seu povo.”
Numa ameaça
velada, o Porta-voz do Departamento de Estado Matthew Miller assinalou
que “o Governo da Geórgia ainda tem tempo para voltar atrás. Não se
trata apenas da lei recentemente aprovada, mas também das declarações
que estão a fazer ao rejeitarem o caminho que têm vindo a percorrer há
tanto tempo.”
O
Secretário de Estado Antony Blinken anunciou recentemente uma revisão
global de toda a cooperação bilateral dos EUA com a Geórgia. “Hoje, como
parte desta política, estamos a tomar medidas para introduzir
restrições de vistos a dezenas de cidadãos georgianos, incluindo
funcionários e membros das suas famílias.” Não deixa de ser insólito
Blinken anunciar uma nova política de imposição de restrições de vistos à
Geórgia com base na Lei norte-americana dos agentes estrangeiros. A
resposta de Tbilisi foi clara: “a independência nacional não está à
venda por um visto de viagem.”
A
sequência de acontecimentos rocambolescos relacionados com a aprovação
desta lei não tem fim. A presidente da Geórgia, Salome Zurabishvili,
também com a nacionalidade francesa, e ex-diplomata francesa, ela
própria acusada de ter recebido avultadas quantias do exterior, não só
vetou a lei como apelou ao presidente francês Emmanuel Macron para
intervir nos assuntos internos da Geórgia. No dia 27 de março de 2024, o
Senado francês aprovou uma lei para combater a interferência
estrangeira, e em 23 de maio de 2024 veio dizer “que a lei georgiana de
‘influência estrangeira’ é incompatível com os valores da UE”.
Por
outro lado, Kobakhidze veio dizer publicamente ter sido ameaçado de
morte pelo comissário europeu Olivér Várhelyi por causa da sua lei
“pró-russa” relativa aos agentes estrangeiros. O primeiro-ministro
georgiano afirmou que Várhelyi o “intimidou” ao citar a tentativa de
assassinato de [Robert] Fico [primeiro-ministro eslovaco]. Várhelyi
confirmou o conteúdo da conversa, dizendo terem sido as suas palavras
descontextualizadas, o que se faz sempre quando diz o que não devia ter
sido dito.
Os
desenvolvimentos narrados com a aprovação da lei georgiana sobre os
agentes estrangeiros mostram alguns factos profundamente desagradáveis,
como seja a infinita falta de pudor dos dirigentes ocidentais. Estes
comportamentos não são compagináveis com a retórica da Ordem baseada em
regras. Para os amigos tudo, para os outros a lei. Não tem precedente
sancionar deputados legitimamente eleitos pelo povo por adotarem uma lei
sem qualquer impacto fora do seu território.
O
Sul Global não estará desatento a estes acontecimentos e à arrogância
que os suporta. A autoridade moral do Ocidente está a esboroar-se. Não
bastava a condescendência com os acontecimentos na Palestina. Estes
eventos mostram uma Europa sem autonomia e completamente subserviente e
manietada a interesses que não são os seus, que a dividem e corroem.
Washington
parece não perceber que o mundo está a mudar. É tremenda a falta de
habilidade em lidar com o assunto, empurrando Tbilisi para o colo de
Moscovo. A persuasão poderá produzir mais efeitos do que a coação.
Afinal, não é com vinagre que se apanham moscas.
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