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27 de março de 2025

A Falácia dos branqueadores

Rui Pinto 
Ouvi três argumentos -todos devidamente falaciosos- para tentar justificar o ataque pseudojornalístico do apresentador de telejornais José Rodrigues dos Santos (JRS), contra Paulo Raimundo e o PCP (RTP, Telejornal de segunda-feira, 24-03-2025) que originou mais de um milhar de reclamações/queixas dirigidas em 24 horas à Provedora do Telespectador. Proponho-me demonstrar porque são falaciosos esses argumentos.
1º A insustentabilidade da posição do PCP na questão ucraniana (alegada pelo diretor de um jornal). É falacioso porque o PCP vem desde antes de 2014 alertando para o que se estava a passar e que, no limite, resultaria na tragédia belicista para que a elite imposta por um golpe de Estado ocidental em Kiev arrastou o povo do seu país, com as confessas indução e falsas promessas das administrações norte-americanas e europeias. Não existindo por parte do PCP qualquer apoio, explícito ou implícito, à intervenção militar russa de 2024, o que seria, aliás, despiciendo para o rumo das coisas e da própria entrevista onde, sublinho, o nome da força política eleitoral dirigida pelo entrevistado (CDU) nunca foi mencionado.
2º A liberdade de critério editorial do jornalismo e do jornalista (alegada por um jornalista/comentador). É falacioso por duas ordens de razões. 1) porque a iniciativa editorial da RTP foi a de entrevistar os dirigentes políticos das forças parlamentares concorrentes às eleições sobre essas mesmas eleições e a situação política do país, designadamente no plano programático. Assim o indica o próprio material cénico em estúdio que serve de fundo a essa opção editorial e 2) porque a entrevista é um espaço desigual em que o entrevistador dispõe do poder da pergunta e o entrevistado se encontra condicionado à obrigação subalterna da resposta, que pode dar enfrentando a questão (como fez Raimundo) ou fugindo-lhe (como fez Nuno Melo, sobre a questão de um arguido poder, ou não, ser “primeiro-ministro”). Em qualquer dos casos, ao entrevistador não cumpre desfigurar o género jornalístico "entrevista", passando a outro, o de "debate", neste caso com o entrevistado que o é para poder explanar a sua posição e não para ser magnificado ou menorizado pelo entrevistador, sob a forma de uma amena cavaqueira ou de um interrogatório policial (variando neste o papel do entrevistador entre “polícia bom” ou “polícia mau”).
3º JRS faz questionamentos ideológicos aos seus entrevistados que conseguem ou não dar-lhes respostas convincentes. Este foi esgrimido pelos “liberais” que alegam o brilhantismo de um seu dirigente ao explicar ao mesmo entrevistador como o capitalismo é bom. Pois, sim, teve este entrevistado de explicar a bondade do sistema de pirataria geral que originou a formação do capitalismo mercantil? Teve de explicar a sua intensificação através da escravatura até finais do século XIX e depois da exploração semiescrava até à morte do trabalho assalariado, pelo chamado “capitalismo selvagem”? Teve de explicar a agudização das desigualdades sociais no chamado processo de globalização em que intervêm duas guerras mundiais, um par de bombas atómicas sobre civis no Japão e um sem-fim de guerras locais pela rapina dos recursos coloniais e pós-coloniais? Não, não teve. Teve a liberdade para passar a outros assuntos relacionados com a origem da sua presença na televisão? Sim, teve.
É por isto que são falaciosos os argumentos da liberdade, da defensabilidade das ideias políticas (que nunca são confrontadas em igualdade de circunstâncias) e dos debates ideológicos que, em televisão, pela própria natureza do médium (“dez minutos para…”), só podem ser incluídos na categoria do que Bourdieu designava por “debates falsamente verdadeiros” em complementaridade com os “verdadeiramente falsos” (futebol e quejandos…).
Tudo isto se pode ensinar e aprender nos bancos da escola. Que jornalistas e outros actores políticos não o saibam ou finjam que o não sabem, só demonstra a sua ignorância no melhor dos casos. No pior, a sua solidariedade ideológica e má-fé corporativo-amiguista da qual, claro, pode a qualquer momento resultar (mais) uma benesse concedida por quem detém a propriedade das palavras e das coisas e assim nelas manda arbitrária e discricionariamente. É por tudo isto que se trata de falácias, ou seja, argumentos que parecem ser bons, mas não são. 
A coisa pode ser ainda mais aprofundada, mas alongaria excessivamente o texto, ganhando o aspeto de ensinar o pai-nosso ao vigário, tarefa de que, sem qualquer sobranceria, me sinto civicamente dispensado.
Deixo na imagem, tomada do meu amigo João Fraga de Oliveira, um esclarecedor texto de Viriato Soromenho Marques, que nos ajuda a perceber estes assuntos sem precisarmos de explicador e de que extraio este fragmento: “““Uma das mais dolorosas aprendizagens durante estes mais de três anos de guerra na Ucrânia tem sido a de confrontar-me com o trágico declínio da honorabilidade académica e do brio intelectual, tanto nas instituições universitárias como nos meios de comunicação social”.
Já não se lhes pede que sejam homéricos. Bastaria que não fossem intelectualmente desonestos!


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