Coronel , Carlos Matos Gomes
O primeiro-ministro britânico ofereceu a 2 de março um «party» na sua residência oficial — «party» parece-me a melhor definição — a um heteróclito conjunto de personalidades por ele escolhidas, segundo o seu critério e com o pretexto da guerra na Ucrânia.
A primeira conclusão do «party» em Londres é que os ingleses tomaram conta do negócio da Ucrânia em nome da “Europa”, da União Europeia, de onde saíram, e da NATO, onde se mantêm. Os funcionários políticos do topo da União Europeia foram a Londres para serem entronizados como súbitos da Inglaterra. A personagem a quem devem essa distinção, Zelenski, teve direito a audiência pessoal com o soberano inglês, uma personagem com grande relevo na definição dos destinos do mundo, como os ingleses garantem ser.
Do «party» do domingo gordo saíram conclusões para todos os gostos, exceto as da imprescindibilidade de serem necessários dois para dançar o tango e os distintos convidados não explicaram como se estabelece um cessar-fogo, ou uma paz sem falar com a outra parte, com a Rússia, no caso. Nada que o historicamente comprovado génio inglês para transformar vulgares situações de conflitos limitados em caos generalizados não consiga alcançar.
Portugal tem, como sabemos, uma longa relação com a Inglaterra e os ingleses. A lista de negócios ruinosos com os ingleses inclui o saque de Lisboa, o domínio após a batalha de Aljubarrota, os tratados de Windsor e de Methuen, o direito à exploração dos portos do Brasil, como paga da intervenção contra as invasões francesas, as concessões de caminhos de ferro, de telecomunicações o domínio dos portos de Moçambique… A lista é longa. Curta será a lista de quem ganhou alguma coisa com uma aliança com a Inglaterra. Mas há sempre crentes, como se comprova com a fotografia.
A expressão de “estar feito ao bife” tem origem desconhecida, mas existem duas explicações mais consensuais, estar feito ao bife queria significar para os operários portugueses das fábricas e das obras dos ingleses que estavam sujeitos aos castigos dos patrões ingleses e dos seus capatazes, a outra possível origem situa-se no período após as invasões francesas, quando os ingleses chefiados por Beresford tomaram de facto conta de Portugal: “estamos feitos ao bife”, sujeitos aos ingleses, logo, em apuros.
O «party» de domingo revelou que a Europa, ou boa parte dela, a dos seus dirigentes mais vocais e excitados, as «warmongers» Von Der Leyen e a «va t’en guerre» Kallas, o secretário da NATO, está feita ao bife e com os bifes.
Estar feito ao bife tem sido uma constante na política mundial desde o século XVIII, quando a Inglaterra iniciou a sua expansão, que teria o apogeu no século XIX, o século associado à supremacia britânica, o período entre a derrota de Napoleão e a Primeira Guerra Mundial, designado como «Pax Britannica».
«Pax Britannica» é um termo para inchar o orgulho inglês, que ignora as violências exercidas em todo o planeta. Na realidade, o século XIX é o século que revela a prática política da Inglaterra, iniciada com a expansão das Companhias das Índias Ocidentais e Orientais e que deixou um rasto que é designado por “british mistery”, o mistério inglês que leva as outras nações a considerarem a Inglaterra uma entidade política regida por outros princípios que não o do uso da força e da perfídia para impor os seus interesses.
Durante p século XIX a Inglaterra foi a causadora ou a principal promotora de conflitos em todo o planeta, realizando campanhas de expansão oportunistas, sobre a China, a Índia, o Pacífico, o Médio Oriente e a África.
O sistema imperial inglês estruturou-se na expansão territorial das áreas já conquistadas e na formação de redes locais de comércio. No século XIX a Grã-Bretanha aproveitou a oportunidade geopolítica que lhe foi aberta com a decadência simultânea dos impérios Otomano e Chinês. Quanto à rápida expansão britânica sobre a imensa área denominada “Índia”, compreendida do atual Mianmar à costa africana do Índico e o Afeganistão ao norte, ocorreu no vácuo de competidores europeus e baseada no enfraquecimento político e militar dos indianos e dos chineses.
No Médio Oriente, que continua a sangrar, os planos para uma divisão pós-primeira grande guerra do império Otomano, aliado da Alemanha, foram secretamente elaborados pela Grã-Bretanha e pela França sob o acordo de 1916, conhecido por Sykes-Picot. Este acordo não foi divulgado ao Xerife de Meca, que os britânicos encorajaram a lançar uma revolta árabe contra os seus governantes otomanos, dando a impressão de que Grã-Bretanha apoiava a criação de um Estado árabe independente. Entretanto os ingleses firmaram dois outros compromissos repartindo as províncias otomanas em áreas de influência, a britânica, que englobava a Palestina, incluía os territórios da atual Jordânia e de Israel, a Mesopotâmia, que correspondia aproximadamente ao Iraque de hoje, e a Península Arábica. O naco francês compreendia a Síria, que na época abrangia o Líbano e a Cilícia, parte da atual Turquia. Desconhecedor do que se tramava nas suas costas, Thomas Edward Lawrence, Lawrence da Arábia, fornecia orientação militar e armamentos ao príncipe Hussein, emir de Meca, e liderava a revolta árabe contra o domínio turco. Em correspondência secreta enviada a Hussein, Henry McMahon, alto comissário britânico no Egito, prometeu-lhe, em troca da rebelião, a criação de um grande reino árabe independente. Ao mesmo tempo, Lord Arthur of Balfour, ministro dos negócios estrangeiros britânico, enviava uma carta ao poderoso banqueiro Rothschild, vice-presidente do Comitê de Deputados Judeus, tornando público o apoio do “Governo de Sua Majestade” ao “estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu”. Além de granjear para a Inglaterra a simpatia da comunidade judaica internacional, a criação do que viria a ser o Estado de Israel oferecia aos ingleses uma vantagem adicional: privava os franceses do controle do Porto de Haifa, afastando-os, portanto, do Canal de Suez. A “razão e o direito à existência de Israel” resulta deste acordo entre a Inglaterra e a família Rothschild e o ludibrio da França!
Esse tríplice conluio, com franceses, árabes e judeus, por meio do qual os ingleses pretendiam tomar para si a maior parte do bolo do Oriente Médio, não poderia resultar noutra coisa que não fosse uma inesgotável fonte de antagonismos. O conflito israelo-palestiniano, que até hoje dilacera a região, é um produto dessa política de “arrasto e razia” da Inglaterra que está agora a liderar a Europa no conflito com a Rússia e os Estados Unidos.
O elemento mais simbólico do modo de proceder inglês de um punhal em cada mão nas suas relações com os outros atores políticos será, porventura, o de Lawrence da Arábia, oficial do exército britânico durante a Revolta Árabe de 1916–1918, que a Inglaterra começou por apoiar contra o império otomano. No final da Grande Guerra, em 1919, Lawrence tornou-se conselheiro da delegação árabe na Conferência de Paz de Paris, onde viu as antigas promessas da “sua Inglaterra” de reconhecimento da soberania da nação árabe serem traídas. Traído em nome da política de realismo e dos negócios do seu governo.
A China constituiu outro dos grandes imbróglios em que os ingleses se envolveram e envolveram os europeus. Durante o século XIX a China foi invadida pelos contrabandistas ingleses e americanos apoiados pelos seus governos que impuseram que o chá era comprado na China em troca do ópio cultivado na Índia. Esse negócio imposto pelos ingleses conduziu às guerras do ópio, criando o pretexto para a intervenção britânica. A Inglaterra criava mais um inimigo para a Europa. Seria apenas mais um.
A Grã Bretanha, ao contrário do que a encenação dos seus cerimoniais quer fazer crer, não se rege por outros princípios que não sejam o lucro, o negócio antes de tudo e por todos os meios. A Grã-Bretanha rege-se por encenações de etiqueta, pelo estabelecimento de distâncias entre nobres e plebeus, pelos graus com que cada súbdito deve vergar a espinha.
Lealdade e palavra de honra são conceitos desconhecidos dos ingleses nas suas relações com os outros povos. Não é por acaso que os ingleses impõem que o julgamento das disputas resultantes dos grandes contratos comerciais seja feita por tribunais arbitrais ingleses, onde estão em posição de vantagem! É a sua lei que impera!
Quatro dias antes das eleições nos Estados Unidos, o primeiro ministro inglês Keir Starmer estabeleceu um contrato comercial com Zelenski para uma concessão por cem anos da exploração das matérias-primas da Ucrânia e dos portos do país. Depois incentivou Trump a receber Zelenski e este a ir a Washington assinar um acordo de minerais! Mas o que teria Zelenski a negociar com Trump se já vendera à Inglaterra o que tinha valor na Ucrânia? Starmer, o grande amigo da Ucrânia, atirou Zelenski de mãos nuas, ou de bolsos vazios ao dono da banca e esperava que Trump ficasse muito satisfeito com a situação em que surgia como o otário!
O «party» de Downing Street teve como finalidade obter a cumplicidade daqueles convivas para este golpe à moda inglesa. Numa imagem: Keir Starmer, fez de Zelenski uma minhoca no bico de um corvo e pretendeu que os seus convidados o aplaudissem e Trump recebesse a minhoca e fizesse um afago na cabeça do corvo.
O que se pode concluir destes exemplos de prática política da Inglaterra no mundo? Que, quem confia na Inglaterra está feito ao bife, isto é, está à mercê dos interesses do momento.
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