Censura e intimidação
Desde há mais de 25 anos que estudo o Holocausto e as responsabilidades de Salazar e Franco em dificultar a salvação de vidas de refugiados judeus (em especial dos que, em alguns países, tinham, desde antes das ditaduras, uma proteção diplomática que aquelas fizeram cessar). Se há fenómenos que me habituei a detetar e a estudar são quer a “trivialização” do Holocausto quer a sua negação. E quem estuda trivialização e negacionismo tende a reconhecer com grande facilidade uma e outro noutras situações. Por exemplo, os governos e os media ocidentais chamaram
Hitler a Saddam Hussein, a Milosevic, e, nos últimos três anos, a Putin. Cada um deles era responsável por massacres que podiam configurar a prática de genocídio, mas nunca ouvi ninguém no universo político e intelectual que rodeia Taborda da Gama (os colunistas liberais-conservadores, os dirigentes dos partidos da direita, ou até mesmo do PS), queixar-se de “trivialização” do Holocausto e do uso de “genocídio”.
Quanto à negação, já Ana Sá Lopes chamou aqui a atenção para a frase sibilina que Gama usou no seu texto: “Aquilo que assistimos actualmente em Gaza não se equipara ao Holocausto nazi, por mais criticáveis que para alguns possam ser os contornos da actuação de Israel e os seus efeitos na população civil.” Gama nega, portanto, poderem ser comparáveis com o Holocausto, porque genocidas, “os contornos da actuação de Israel e os seus efeitos na população civil” palestiniana. Como sublinhavam há dias os mais de 30 relatores especiais da ONU para várias das dimensões dos direitos humanos, “enquanto os Estados debatem a terminologia — é ou não é genocídio? — Israel continua a sua destruição implacável da vida em Gaza, através de ataques por terra, ar e mar, deslocando e massacrando impunemente a
população sobrevivente. (…) Ninguém é poupado — nem as crianças, as pessoas com deficiência, as mães que amamentam, os jornalistas, os profissionais de saúde, os trabalhadores humanitários ou os reféns.” Desde outubro de 2023, Israel matou, pelo menos, 53 mil palestinianos. Depois de quebrar o cessar-fogo, num só dia (18 de março) matou “600 pessoas em 24 horas, 400 das quais eram crianças.” E governos como o português assistem impávidos a “uma das manifestações mais ostensivas e impiedosas da profanação da vida e da dignidade humanas”.
Enquanto isso, Taborda da Gama acusa uma cartunista de ser antissemita por “efetuar comparações entre a política israelita contemporânea e a dos nazis”. Como viu muito bem em 2018 o relator especial da ONU para o racismo, exemplos como o que Gama usa “estão a ser invocados e utilizados para suprimir os direitos humanos e as liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão, de reunião e de participação política e o direito à igualdade e à não discriminação”. O Chega não está no Governo. Mas parece.
Sem comentários:
Enviar um comentário