O PACTO COM O DIABO» - «COMPLACÊNCIA E PROMISCUIDADE DO OCIDENTE COM AS FORÇAS NEONAZIS [E COM A CORRUPÇÃO] QUE PROLIFERAM NA UCRÂNIA»
Texto do Major-General Carlos Branco
(in ‘Jornal Económico’ de 06/03/2025)
No
Ocidente passou a ser pecado falar de neonazis na Ucrânia, dando-se
início à maior campanha de branqueamento de um regime político realizada
até hoje.
O tema ganhou
uma renovada acuidade quando o presidente Donald Trump apelidou o seu
congénere ucraniano de ditador. Independentemente do rigor das palavras
usadas por Trump importa perceber qual é a verdadeira natureza do regime
presentemente instalado em Kiev.
Segundo
a Varities of Democracy, uma organização de elevada credibilidade
académica, que estuda o tema dos regimes políticos a nível mundial,
considera a Ucrânia uma autocracia eleitoral, portanto, longe de ser uma
democracia plena. Embora não se pretenda com este artigo fazer
incursões teóricas no domínio da ciência política, ele apresenta alguns
factos que podem ajudar o leitor a fazer uma apreciação do tema mais
informada.
Para uma
melhor compreensão dos factos e com o intuito de facilitar a sua leitura
e sistematização, consideraram-se neste trabalho quatro períodos
distintos: desde a independência (1991) até à vitória de Viktor
Yanukovych (2010); durante a presidência Yanukovych (2010 – 2014); desde
o golpe de Maidan (2014) até à eleição de Zelensky (2019), e desde a
eleição deste até aos dias de hoje. Por questões de parcimónia, iremos,
fundamentalmente, concentrar-nos no último período.
O
aparecimento na Ucrânia, à luz do dia, de organizações
ultranacionalistas teve lugar no primeiro período, acelerando após a
revolução laranja (2004) e a chegada ao poder de Viktor Yushchenko que,
por exemplo, em 2006 reabilitou a organização nacionalista ucraniana OHH
UN, responsável pela execução de cerca de 100 mil polacos e judeus
durante a Segunda Guerra Mundial.
Nessa
sequência, em 2010, pouco antes de abandonar a presidência, Yushchenko
concedeu o título de Herói da Ucrânia aos líderes da Organização dos
Nacionalistas Ucranianos (OUN) Stepan Bandera e Roman Shukhevych (22 de
janeiro).
Durante a
presidência de Yanukovych houve uma pausa nessa política de estado, com a
anulação do título de herói da Ucrânia concedido por Yushchenko. Mas,
isso não impediu que esses grupos continuassem a proliferar. Por
exemplo, em 2013, nasce a Misanthropic Division, uma rede internacional
neonazi cujo dirigente Dmytro Kanuper foi condecorado pelo parlamento
dinamarquês, em 2024, como um combatente pela liberdade, o mesmo que
tinha o Mein Kampft como a sua leitura preferida; ou, a trasladação (21
de julho de 2013) por ativistas da organização ucraniana Pamiat
(Memória) dos restos mortais de soldados ucranianos que combateram na
Divisão SS “Galicia”.
O
golpe de estado arquitetado pelos EUA no início de 2014 – numa audição
no Congresso norte-americano, Vitória Nuland confessou terem sido
gastos, desde 1991, cinco mil milhões de dólares em ações subversivas na
Ucrânia – foi executado com a colaboração ativa destes grupos. Não é,
por isso, de estranhar ver Oleg Tyanibok, um confesso nazi líder do
Svoboda, uma organização de extrema-direita, impedido de entrar nos EUA
devido às suas opções políticas, ser reabilitado e aparecer ao lado do
falecido John McCain.
Em
2014 realizaram-se eleições presidenciais (25 de maio) e legislativas
(25 de agosto). Nas primeiras concorreram 21 candidatos e nas segundas
29 partidos, num ambiente de grande hostilidade relativamente às forças
não apoiantes do novo regime. O Partido das Regiões que tinha ganhado as
eleições em 2010 não teve condições para concorrer às eleições
legislativas, apesar de ter apresentado um candidato às presidenciais. O
sistema marginalizou e absorveu os partidos pró-russos influentes.
Nesse ambiente iniciaram-se as perseguições e o assédio a jornalistas e
opositores ao regime.
[Petr
Poroshenko, presidente, entretanto, eleito, vem dizer, num tom
“conciliador” que os “ucranianos terão empregos, eles [os russos] não;
nós teremos pensões, eles não; as nossas crianças irão para as escolas e
jardins de infância, as deles terão de se esconder em caves.”
Iniciam-se os ataques indiscriminados às populações russófonas do
Donbass por milícias ultranacionalistas, com a anuência do governo,
recorrendo ao bombardeamento intensivo de áreas residenciais.
Tornaram-se triviais as procissões destes grupos pela Avenida Moscow
Prospect, redenominada Avenida Bandera Prospect, com archotes, em datas
simbólicas.]
Poroshenko
toma medidas para diminuir a relevância social da língua russa e da
Igreja Canónica Ortodoxa. Em 2017, foi aprovada uma lei que proibia o
uso do russo no sistema de ensino. Em dezembro de 2018, foi criada a
Igreja Ortodoxa da Ucrânia (OCU), independente da igreja canónica
ortodoxa, alinhada com Constantinopla, cujos sacerdotes não só
subscrevem a ideologia dos setores politicamente mais radicais do
espetro político ucraniano, como homenageiam publicamente colaboradores
nazis, personagens como Stepan Bandera.
[Neste
período generalizaram-se as punições públicas extrajudiciais dos
chamados marauders, uma forma de justiça popular, “em que pessoas são
atadas a árvores e postes com fita-cola, com as calças ou saias baixadas
e as nádegas fustigadas com chibatas e varas.” Estas práticas sociais
passaram a ser dirigidas contra quem se suspeitasse ser russófilo.
Bastava ser ouvido pela “polícia de costumes” a falar russo ao
telemóvel. Em 2015, Poroshenko bane o partido comunista, do antecedente,
uma força política com uma considerável influência na sociedade.]
Em
maio de 2019, Zelensky ganha as eleições e assume o poder com a
promessa de resolver o problema das províncias rebeldes que dilacerava a
sociedade ucraniana havia cinco anos e fazer a paz. Mas fez tudo ao
contrário do que tinha prometido. Tendo chegado ao poder escudado num
partido – “Servo do Povo” – com uma ideologia libertária, rapidamente se
posicionou como um partido russofóbico e pró-americano, navegando num
pântano de contradições ideológicas que combinava ideias liberais,
socialistas e nacionalistas.
A
intervenção na Rada (27 de maio de 2019) de Dmytro Yarosh, fundador do
Sector Direito e comandante do Exército Voluntário ilustra bem a
importância dos referidos grupos na sociedade ucraniana, quando ameaçou
Zelensky de morte se “traísse a Ucrânia”, ou seja, se tivesse a
aleivosia de implementar os Acordos de Minsk (“que não eram para ser
cumpridos, mas para ganhar tempo e preparar a ofensiva final contra o
Donbass e a Crimeia”).
Com
a tomada de posse de Zelensky, acelera-se o processo de deterioração
das liberdades cívicas iniciado no mandato do seu antecessor,
particularmente no que respeita à promiscuidade entre Estado e grupos
ultranacionalistas, que aumentam de protagonismo. Completamente alinhado
ideologicamente com aqueles grupos, Zelensky vai aprofundar aquilo que
Poroshenko tinha iniciado. Os oligarcas seguem-lhe o exemplo.
Um
dos principais objetivos do presidente, ex-russo falante, é a completa
eliminação da língua e cultura russa. Imediatamente após os protestos de
Maidan, o Verkhovna Rada decidiu revogar a lei sobre os princípios da
política linguística do Estado, que estava em vigor desde 2012. Em 2017,
Poroshenko proíbe o ensino em russo, e a partir de janeiro de 2021,
Zelensky dá outra machada na língua russa, ao proibir a sua utilização
na administração do Estado.
[Foram
igualmente proibidos os livros escritos em russo, incluindo os
clássicos da literatura russa. Zelensky ordenou a retirada de 100
milhões de livros de autores russos das bibliotecas da Ucrânia. Tolstoi,
Pushkin, Dostoievski e Gorky, entre outros, foram proscritos. O mesmo
sucedeu aos compositores russos. Tchaikovsky, Prokofiev, Shostakovich,
Borodin, Glinka, Rimsky-Korsakov e muitos outros foram também banidos.
Espetáculos e quaisquer outras manifestações culturais em língua russa
foram igualmente proibidas. O inglês passou a ser a segunda língua na
Ucrânia. As minorias húngaras e romenas, que tinham pretensões
semelhantes à russa foram igualmente atingidas e objeto de
discriminação.]
No plano
religioso, Zelensky foi mais além de Poroshenko e proibiu a igreja
canónica ortodoxa (ICO). Foi penoso ver, em abril de 2023, o cerco ao
Kiev Pechersk Lavra (KPL) e os correligionários da nova igreja ucraniana
expulsarem os sacerdotes da ICO com a ajuda da polícia. De santuário de
referência da ICO, o KPL passou a ser lugar de cerimónias pagãs e de
encontros gastronómicos sem qualquer relação com a religião. Por toda a
Ucrânia, os acólitos da nova igreja apoderaram-se dos santuários da ICO e
expulsaram os seus sacerdotes.
Foi
durante a vigência de Zelensky, que se realizaram os maiores ataques à
liberdade de expressão no país. No dia 3 de fevereiro de 2021 foram
banidos três canais de televisão (ZIK, News 1 e 112 Ukraine). No dia 20
de março de 2022, obedecendo às ordens de Zelensky, o Conselho de Defesa
e Segurança Nacional da Ucrânia ilegalizou, duma assentada, 11 partidos
políticos por supostas ligações à Rússia. Viktor Medvedchuk, o líder da
“Plataforma para a Vida”, o principal partido da oposição, que ocupava
44 lugares no parlamento ucraniano, foi colocado em prisão domiciliária.
Destino
semelhante teve o presidente do supremo tribunal. O presidente do
Tribunal Constitucional “ausentou-se” para parte incerta para não ter a
mesma sorte. Até o antigo Presidente Poroshenko, um adversário político e
inimigo de longa data de Zelensky, foi vítima da repressão política e
da caça às bruxas “politicamente motivada” promovida por Zelensky, que o
acusou de “alta traição” e de auxílio a organizações terroristas. É
longa a lista de políticos, jornalistas e empresários mortos,
sequestrados ou torturados durante a presidência de Zelensky. Um deles, é
Oleksander Dubinskyi deputado na Rada, vítima de duas tentativas de
assassinato e preso há mais de 15 meses por criticar a corrupção no
país.
Em contrapartida,
nenhuma das organizações neonazis foi ilegalizada. O nazismo e as
insígnias fascistas normalizaram-se na sociedade e no seio das forças
armadas. A suástica, o Sol negro e a caveira de Totenkopf
vulgarizaram-se e tornaram-se moda. Zelensky publicou, sem qualquer
pudor, fotografias destas insígnias nas suas contas das redes sociais.
A
13 de maio de 2023, Zelinsky visitou o Papa envergando uma camisola
preta com o emblema da UNO, uma organização nacionalista ucraniana, e
entregou-lhe um ícone com uma silhueta negra de Cristo ao colo da Virgem
Maria, o que, de acordo com os cânones da Igreja Católica pode ser
considerado satânico. A moda chegou também a outros domínios como
monumentos, toponímia e filatelia, utilizados para exaltar figuras
prominentes do movimento ucraniano bandeirista, responsável pela morte
de judeus.
No dia 1 de
março de 2022, de acordo com o decreto assinado por Zelensky, foi criada
a “Legião Internacional de Defesa da Ucrânia” que passou a ser
integrada na estrutura das Forças Armadas, cujo pessoal incluía
mercenários, adeptos de ideias extremistas e terroristas de várias
partes do mundo.
Zelensky
aderiu e alimentou a fantasia, promovida pelos ultranacionalistas, de
um estado mono étnico, monocultural e centralizado. A aprovação na Rada
da lei racista e xenófoba sobre os povos indígenas” (13 de dezembro
2022) foi uma materialização desse desígnio. Inserido neste projeto,
assiste-se a um movimento de revisionismo histórico com laivos
fantasiosos e caricatos. Igor Tsar, autor do livro “Ucrânia – a pátria
ancestral da humanidade”, vencedor do Prémio Stepan Bandera, publicado
em Lvov alerta-nos para uma imensidão de “factos históricos”
desconhecidos (foram as tribos arianas da Ucrânia que fundaram o Irão no
4º milénio a.C. e colonizaram a Palestina. A língua inglesa é
proveniente da Ucrânia. Até Jesus era ucraniano).
[Nesta
análise sobre o regime ucraniano sob a tutela de Zelensky, não podíamos
deixar de referir o envolvimento de Zelensky na corrupção que grassa no
país, que se encontra devidamente documentada. No outono de 2021, o
Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação publicou os
chamados Pandora Papers, onde se incluíam dados das contas offshore de
35 líderes mundiais. Zelensky e os seus parceiros do estúdio Cartel 95
estavam entre eles.]
Entre
2012 e 2016, foram transferidos 41 milhões de dólares para a empresa
offshore de Zelensky. Num país normal teria sido preso. Uma das
múltiplas mansões que tem por esse mundo fora encontrava-se na Crimeia,
um erro que lhe custou caro. Foi expropriado e a mansão vendida em hasta
pública, tendo o resultado da venda revertido para um fundo de ajuda a
combatentes russos.
No
Ocidente passou a ser pecado falar de neonazis na Ucrânia, dando-se
início à maior campanha de branqueamento de um regime político realizada
até hoje. O “Guardian”, entre outros órgãos de referência da
comunicação social, que antes do início da guerra em 2022 escrevia
“bem-vindo à Ucrânia, o país mais corrupto da Europa”, passou depois a
considerar que “A luta pela Ucrânia é a luta pelos ideais liberais.” A
corajosa reportagem de Mariana Van Zeller sobre grupos neonazis na
Ucrânia foi censurada e retirada do canal Disney. Quem desmonta esta e
outras falácias (o tema está longe de se esgotar neste artigo) foi
acusado de ser propagandista do Kremlin.
O
branqueamento do regime instaurado em 2014 é feito com base em dois
argumentos: se o regime tivesse a filiação ideológica de que é acusado
não teria um presidente judeu; os neonazis não têm expressão eleitoral
significativa, por isso o regime é democrático. As questões devem, no
entanto, ser colocadas de outro modo. Seria insuportável para as
democracias europeias admitirem que estão a apoiar um regime que permite
a proliferação da ideologia nazi e protege organizações neonazis.
Por
outro lado, omite-se o facto de que muitos desses partidos/grupos
ultranacionalistas não concorreram às eleições, e menospreza-se
deliberadamente a sua influência na sociedade, sobretudo nas forças
militares e de segurança, consolidada no rescaldo do golpe de Maidan. O
facto da Ucrânia ter servido de tirocínio de combate a vários grupos
neonazis europeus está superlativamente documentado em língua portuguesa
aqui (cap.IV) e aqui).
[A
farsa completa-se quando Zelensky participou nas comemorações do 80º
aniversário da libertação do campo de extermínio nazi de Auschwitz, ou
se ajoelha no memorial de Babyn Yar, em Kiev, não obstante a sua adesão
incondicional à exaltação histórica dos bandeiristas, os mesmos que
perpetraram o massacre lembrado por aquele memorial.]
Não
podemos deixar de nos questionar sobre a complacência e promiscuidade
do Ocidente com as forças neonazis que proliferam na Ucrânia, porque é
que se omitiu essa realidade e se tornou um tabu a partir de fevereiro
de 2024, apesar de denunciada antes, com o conluio da comunicação
social. Os exemplos são gritantes, e são muitos. Os aplausos em pé no
parlamento canadiano a Yaroslav Hunka, que durante a Segunda Guerra
Mundial serviu na 14ª Divisão de Granadeiros da Waffen-SS, considerado
um “herói” durante a visita do Presidente Zelensky. Por terem sido
vítimas da brutalidade destes grupos, os polacos são uma exceção a este
unanimismo.
Pelo exposto,
pode concluir-se que Donald Trump não anda afinal muito longe da
verdade. Pelo andamento da carruagem, não se admire o leitor se um dia
acordar e perceber que andou três anos a ser enganado. A possibilidade
de isso acontecer já esteve mais distante.
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