Ventura e sacrilégio
(Por Alberto Carvalho, in Facebook, 23/05/2025, Revisão da Estátua de Sal)
Poucos gestos políticos foram tão coreografados como o de André Ventura, ao ajoelhar-se junto ao túmulo de Josemaría Escrivá, em Madrid, para agradecer os resultados eleitorais do Chega. A imagem, difundida com fervor nas redes sociais, não foi um ato devocional privado, mas uma liturgia pública, pensada ao milímetro. Mais do que uma oração, foi um sinal político. Um rito de poder.
É legítimo que um homem creia, reze, confesse a sua fé. Não é disso que se trata. O problema nasce quando a fé se converte em instrumento de legitimação política, quando se transforma num ornamento simbólico para conquistar certos segmentos do eleitorado, quando o sagrado é instrumentalizado para glorificar o poder terrestre. Ventura não foi rezar – Ventura foi comunicar. E o que comunicou foi inquietante.
O túmulo de Escrivá não foi escolhido ao acaso. Na basílica de Almudena, o Chega consagrou o seu resultado eleitoral à santidade de uma obra religiosa associada à ordem, ao sacrifício e à elite moral. O fundador da Opus Dei – canonizado por João Paulo II entre muitas polémicas – é, para muitos, símbolo de uma espiritualidade aristocrática, militarizada, antiliberal. Uma espiritualidade de gabinete e disciplina, onde o sucesso terreno é lido como bênção divina.
Ventura, conhecedor das forças simbólicas, sabe que, ao ajoelhar-se perante Escrivá, liga-se a uma tradição conservadora transnacional, que bebe em fontes espanholas e vaticanas. Sabe também que a fotografia desse momento reforça a ideia de que é o “escolhido” – não apenas pelo povo, mas por Deus. O populismo, aqui, funde-se com o messianismo.
A Opus Dei sempre teve uma relação ambígua com a política: discreta, mas nunca ausente. Marcada pela influência em redes económicas, jurídicas e mediáticas, nunca precisou de partidos. Mas há quem a use como selo de autoridade moral – mesmo sem lhe pertencer formalmente.
Ventura parece querer apropriar-se desse capital simbólico: hierarquia, severidade, pureza moral, sacrifício. Tudo embalado numa estética quase clerical, onde o político se apresenta como guerreiro da virtude.
O gesto em Almudena não é apenas religioso. É um aceno a essas redes de influência. Um reconhecimento tácito de afinidade. Um convite, talvez. Ou a resposta por ser um membro numerário da Prelatura. Porque, no fundo, Ventura quer mais do que votos: quer legitimidade. E, na ausência de enraizamento ideológico, recorre ao imaginário do catolicismo tradicionalista como âncora e como palco.
Nada disto é novo. Os populismos autoritários sempre cultivaram a teatralidade. Mussolini posava como César. Franco assistia à missa como um altar-boy disciplinado.
Salazar, entre silêncios e missais, construía uma mística de austeridade sagrada.
Ventura bebe dessa tradição. Ele não propõe uma política, mas um rito. Não oferece ideias, mas imagens. Não governa – celebra-se.
A sua ida a Almudena é a liturgia desse culto. Um culto que mistura fé, nação e ressentimento. Um culto onde o povo é puro, o estrangeiro é ameaça e Deus é português – mas fala castelhano.
Há, aqui, uma ironia que Portugal não deve ignorar: ao ajoelhar-se em Madrid, Ventura repete gestos que, no passado, os portugueses souberam recusar. Se o salazarismo teve inspiração ibérica, também foi marcado por um certo orgulho de independência espiritual. Hoje, esse orgulho dilui-se num conservadorismo importado, que copia os modelos espanhóis da Vox e os mitos da Cristandade militante.
Estamos, assim, perante um populismo que, em vez de se enraizar na história portuguesa, a ignora ou subverte. Um populismo que troca Santo António por Escrivá, o 25 de Abril por 1939 e a Constituição por um rosário mal rezado. Um populismo que, em nome da moral, banaliza o sagrado – e, em nome de Deus, profana a liberdade.
É tempo de dizer claramente: a fé não pode ser cúmplice da tirania, nem cúmplice da encenação. Não pode servir de muleta simbólica para um projeto político fundado na exclusão, no ressentimento e na teatralidade. Ventura ajoelhou-se não por humildade, mas por cálculo. E o que está em jogo não é a sua salvação – é a nossa democracia.
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