Engenharias
eleitorais
Jorge Cordeiro
O sistema eleitoral voltou à
liça. Por mãos e dizeres diversos aí estão repostos os velhos e recorrentes
argumentos. Ungidos das melhores intenções. Inundados dos mesmos equívocos e
sombreados contornos. Neste empreender de fazeres recalcados pelo não realizar,
está de regresso a aziada contrariedade pela adiada materialização desta
“reforma estrutural”. Para o relançamento da obra, embargada que tem estado
mais por razões de conjuntura do que de vontade dos empreiteiros, aí estão convocados
os materiais argumentativos para lhe dar corpo. Na almejada reconfiguração
arquitectónica que querem dar ao edifício, estendido sobre o estirador o
sistema político que querem de facto redesenhar, é vê-los a deitar mãos à obra.
Deixemos de lado os apologéticos
hinos à cidadania, as loas à “sociedade civil”, o apego aperfeiçoativo de que
se reclamam. Entendamos-los como aplainamentos prévios a inevitáveis e
legítimas interpelações. E sobretudo não nos impressionemos com as aparentes
inquietações que vão desfiando: as imperfeições da proporcionalidade do método
de Hondt; o frágil poder de escolha dos eleitores; a inexistente
responsabilização dos eleitos; o inquietante nível abstencionista. A que se
poderá adicionar o mais eloquente, estilístico e imbatível propósito de “levar
a cidadania a reencontrar-se com a política”. A frase é digna de estante,
embora com um simples GPS se resolvesse o desiderato. Vencidos que estão no
texto, até à linha que nos encontramos, aspectos de forma e elenco de intenções,
passemos à identificação do verdadeiro ser que reúne tantos saberes. O sistema
político, a parte que lhe corresponde de organização eleitoral e o seu lugar no
regime democrático e na Constituição da República é de há muito objecto de
inconformismo. O que se busca com a sua alteração é uma menos sobressaltada
imposição de conhecidos projectos políticos.
Percorramos alguns dos
argumentos. Primeiro, a revisão do sistema eleitoral, dizem, seria um
imperativo para obviar ao «declínio do sistema partidário» que
identificam ser «mais sensível nos partidos que mais estiveram no poder».
Observando o concentrado de mentes pensantes ser-se-ia levado a concluir, a
partir das suas palavras, o que um leigo alcançaria quanto à verdadeira raíz do
problema: o conteúdo da política dos partidos que ao longo de quatro décadas
governaram. Segundo argumento, a «representação proporcional personalizada»
seria o condão que reconciliaria eleitos e eleitores, melhoraria a
proporcionalidade. Aos que desconfortáveis com o método de “Hondt” o
questionam, alegando não ser um método proporcional perfeito escondem, de
facto, o seu incómodo com a consagração constitucional do princípio. Refutando
imobilismos sugere-se para alívio da inquietude quanto à proporcionalidade que
levem em linha de conta que ela se assegura tanto mais quanto maior o número de
deputados e a dimensão dos círculos e mais perfeita irromperá se aos círculos
distritais se adicionar um círculo de aproveitamento nacional. Terceiro, os
círculos uninominais, alegam, aproximaria eleitos e eleitores, não prejudicaria
a representação nacional, significaria «melhores deputados e melhores
partidos». Não se desperdiçará espaço a comentar afirmações como as de Ribeiro
e Castro que fosse este o método em vigor e «provavelmente não teríamos tido
“bancarrota” nem troika.»! Convencidos de que o escrutínio dos elencos
governativos resultavam de processo distinto do que agora se discute, acabamos
soterrados por tão demolidora ilação.
Quarto, os círculos uninominais
contribuiriam para cada deputado deixar de «ser um escolhido» para «passar
a ser um eleito», tudo em harmoniosa
metamorfose cuja perfeição e zénite se alcançaria com a «admissão de
candidatos independentes». O que resultaria desse miraculoso ungimento
baseado na notoriedade, no populismo e no insuflar mediático – testado no plano
local – seria uma Assembleia recheada de Isaltinos e Valentins. Quinto
argumento, apresentado como de monta, de que um círculo nacional de compensação
asseguraria sempre a representação proporcional da conversão de votos em número
de mandatos, é uma patranha. De novo o jogo de aparências. A indução de voto útil na disputa
uninominal rearrumará nessa dinâmica e nos critérios mediáticos das disputas
uni-pessoais a intenção do voto, desvalorizará projectos e propostas em nome de
protagonistas e “Messias”. Como alguém assinalou, destes círculos resultarão
quase só deputados do PS e do PSD incompensáveis com a actual composição
numérica da AR.
A ardilosa engenharia eleitoral
encontra enraizamento percursor no País. Já em 1901 o Decreto Eleitoral – que
ficaria conhecido como “A Ignóbil Porcaria” – havia com a manipulação de círculos eleitorais, na altura
agregando a áreas urbanas rurais, assegurado que menos votos traduzissem maior
número de mandatos. Uma alteração que negociada entre as duas formações
políticas dominantes – “regeneradores” e
“progressistas” – perpetuava no poder os interesses políticos
instalados. Nada de novo, portanto.
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