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26 de março de 2018

“A Ignóbil Porcaria”




Engenharias eleitorais
Jorge Cordeiro

O sistema eleitoral voltou à liça. Por mãos e dizeres diversos aí estão repostos os velhos e recorrentes argumentos. Ungidos das melhores intenções. Inundados dos mesmos equívocos e sombreados contornos. Neste empreender de fazeres recalcados pelo não realizar, está de regresso a aziada contrariedade pela adiada materialização desta “reforma estrutural”. Para o relançamento da obra, embargada que tem estado mais por razões de conjuntura do que de vontade dos empreiteiros, aí estão convocados os materiais argumentativos para lhe dar corpo. Na almejada reconfiguração arquitectónica que querem dar ao edifício, estendido sobre o estirador o sistema político que querem de facto redesenhar, é vê-los a deitar mãos à obra.

Deixemos de lado os apologéticos hinos à cidadania, as loas à “sociedade civil”, o apego aperfeiçoativo de que se reclamam. Entendamos-los como aplainamentos prévios a inevitáveis e legítimas interpelações. E sobretudo não nos impressionemos com as aparentes inquietações que vão desfiando: as imperfeições da proporcionalidade do método de Hondt; o frágil poder de escolha dos eleitores; a inexistente responsabilização dos eleitos; o inquietante nível abstencionista. A que se poderá adicionar o mais eloquente, estilístico e imbatível propósito de “levar a cidadania a reencontrar-se com a política”. A frase é digna de estante, embora com um simples GPS se resolvesse o desiderato. Vencidos que estão no texto, até à linha que nos encontramos, aspectos de forma e elenco de intenções, passemos à identificação do verdadeiro ser que reúne tantos saberes. O sistema político, a parte que lhe corresponde de organização eleitoral e o seu lugar no regime democrático e na Constituição da República é de há muito objecto de inconformismo. O que se busca com a sua alteração é uma menos sobressaltada imposição de conhecidos projectos políticos.

Percorramos alguns dos argumentos. Primeiro, a revisão do sistema eleitoral, dizem, seria um imperativo para obviar ao «declínio do sistema partidário» que identificam ser «mais sensível nos partidos que mais estiveram no poder». Observando o concentrado de mentes pensantes ser-se-ia levado a concluir, a partir das suas palavras, o que um leigo alcançaria quanto à verdadeira raíz do problema: o conteúdo da política dos partidos que ao longo de quatro décadas governaram. Segundo argumento, a «representação proporcional personalizada» seria o condão que reconciliaria eleitos e eleitores, melhoraria a proporcionalidade. Aos que desconfortáveis com o método de “Hondt” o questionam, alegando não ser um método proporcional perfeito escondem, de facto, o seu incómodo com a consagração constitucional do princípio. Refutando imobilismos sugere-se para alívio da inquietude quanto à proporcionalidade que levem em linha de conta que ela se assegura tanto mais quanto maior o número de deputados e a dimensão dos círculos e mais perfeita irromperá se aos círculos distritais se adicionar um círculo de aproveitamento nacional. Terceiro, os círculos uninominais, alegam, aproximaria eleitos e eleitores, não prejudicaria a representação nacional, significaria «melhores deputados e melhores partidos». Não se desperdiçará espaço a comentar afirmações como as de Ribeiro e Castro que fosse este o método em vigor e «provavelmente não teríamos tido “bancarrota” nem troika.»! Convencidos de que o escrutínio dos elencos governativos resultavam de processo distinto do que agora se discute, acabamos soterrados por tão demolidora ilação. 

Quarto, os círculos uninominais contribuiriam para cada deputado deixar de «ser um escolhido» para «passar a ser um eleito», tudo em harmoniosa  metamorfose cuja perfeição e zénite se alcançaria com a «admissão de candidatos independentes». O que resultaria desse miraculoso ungimento baseado na notoriedade, no populismo e no insuflar mediático – testado no plano local – seria uma Assembleia recheada de Isaltinos e Valentins. Quinto argumento, apresentado como de monta, de que um círculo nacional de compensação asseguraria sempre a representação proporcional da conversão de votos em número de mandatos, é uma patranha. De novo o jogo de aparências. A  indução de voto útil na disputa uninominal rearrumará nessa dinâmica e nos critérios mediáticos das disputas uni-pessoais a intenção do voto, desvalorizará projectos e propostas em nome de protagonistas e “Messias”. Como alguém assinalou, destes círculos resultarão quase só deputados do PS e do PSD incompensáveis com a actual composição numérica da AR.

A ardilosa engenharia eleitoral encontra enraizamento percursor no País. Já em 1901 o Decreto Eleitoral – que ficaria conhecido como “A Ignóbil Porcaria” –  havia com a manipulação de círculos eleitorais, na altura agregando a áreas urbanas rurais, assegurado que menos votos traduzissem maior número de mandatos. Uma alteração que negociada entre as duas formações políticas dominantes – “regeneradores” e  “progressistas” – perpetuava no poder os interesses políticos instalados. Nada de novo, portanto.





 

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