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16 de março de 2018

A nau dos neoliberais


As águas turvas da União Europeia


Os  federalistas convictos, amantes inconfessos da dimensão neoliberal do “europeísmo”, tementes da sobrevivência dos interesses que sob ele se acomodam dão graças, não ao divino, mas a mais terrenas réstias de esperançosa luz. Porque a nau “europeia” persiste na deriva, a água ameaça infiltrar-se nos esconsos do adornado navio com riscos para a navegação almejada lá vemos os vigias do costume, apostos no alto da gávea, vislumbrando porto firme a que acostem. A boa nova que os acalenta advém desse “histórico” e saudado acordo entre a CDU/CSU e o SPD (re)celebrado na Alemanha. Inundados de incontido júbilo cá se ouvem uns desejando «boa sorte à “grande coligação”», outros alertando para riscos de “nervosismo”, esse escolho, potencial icebergue, que poderia levar a afundar o Euro ou a UEM.

Com esta arreliadora persistência de não dar por adquirido o que recheado de contrafacção é apresentado, permita-se um olhar diferente, uma mais exigente verificação do produto impingido sob a capa de “europês”. Comecemos por esse linguajar estilístico que, maltratando conceitos, se agita perante a sucessão de resultados eleitorais em países diversos. Nas mãos destes sucateiros da palavra tudo se explica por emergente “populismo”, arreliador “euro-cepticismo” ou pulsão “extremista”. O aparente desajeitamento  linguístico não é gratuito. Pelo contrário, subjazem-lhe dois objectivos: o de arrumar naqueles epítetos o alastramento de um justificado juízo condenatório das políticas da UE, tomando a oposição à integração capitalista com derivas nacionalistas reaccionárias e “extremistas”; o de fugir à constatação, demolidora, do que os resultados expressam de arrasamento das forças políticas responsáveis pelo processo de exploração, usurpação de soberania e agravamento das desigualdades. Como Teresa de Sousa, corroída de incerteza desesperante, questionava «o centro vai aguentar?».

Regressando ao tema originário, após a incursão reflexiva por águas vizinhas ainda assim julgadas pertinentes, afirme-se que o acordo CDU/CSU-SPD conhece horizontes mais amplos que os caseiros. Ali reside bóia para se manterem à tona de água. A manobra salvífica é de monta e proporcional ao percepcionado rombo que o processo de integração patenteia. Trata-se de chegada a hora das decisões, pôr de lado contradições, aparentes ou reais, no seio do eixo franco-alemão e fornecer o cimento que há-de unir, como unidos estão, socialistas e liberais nessa cruzada de dominação neoliberal supranacional, erguida nos escombros dos direitos dos trabalhadores e dos povos. Nada que não se soubesse e conhecesse mas que agora se evidencia. A intimidade familiar das formações políticas é tal que até o ministro das Finanças acaba na balsa do SPD. Pelo caminho, ainda que não  isento de contratempos ditados por disputas internas, ficam os  desentendimentos entre Comissão e Conselho, Juncker e Tusk,  Macron e Merkel. O que parecia distante, tocado a rebate os interesses que os une, próximo se tornou. Como dizia a supra-citada cronista da UE «a Europa ainda precisa de um governo alemão em mãos seguras, capaz de fazer a ponte entre as duas grandes famílias políticas (...)». Reposta a harmonia siga, ainda que por águas tumultuosas, o aprofundamento da UEM e do Euro. Afirma-se por aí que «o maior drama da Europa é compatibilizar a escolha dos eleitores nacionais com a negociação de compromissos que defendam os interesses europeus». Uma maçada esta disfunção entre o conteúdo das políticas e as consequências que dela decorrem. A adequação revelar-se-ia obra de monta não fosse esse expediente de quando os resultados não agradam relê-los, quando não, voltar a repeti-los. Há sempre aquela salvação para o “centro se aguentar”: no caso, Macron, aquele que «conseguiu derrotar os extremos colocando-se exactamente ao centro». Bernard Henri-Levy, “filósofo” francês interrogava-se da razão do êxito eleitoral de Macron e de «como se comportarão os que foram  arrastados para o poder» sob a sua bandeira. Bernard procura resposta na Revolução Francesa. Sugerimos-lhe que avance uns anos e encontra-la-á em Louis Bonaparte. Afastemos similitudes fisionómicas ou pessoais e fixemo-nos na dinâmica política. Penetremos nas palavras de Marx acerca do ascenso de Napoleão III e far-se-á alguma luz: olhe-se para a personagem como «resultado inevitável do desenvolvimento da luta de classes em França cuja circunstâncias tinham criado as condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco representar o papel de herói», relativize-se a noção de “golpe” e “parlamentar” transpondo-os para o domínio da  operação eleitoral  e visite-se a ideia de que «o golpe de Bonaparte apareceu como resultado de uma correlação de forças (…) da qual a burguesia já não podia dominar socorrendo-se dos métodos parlamentares habituais» e constatará como Marx que «o Napoleão da insurreição camponesa desfez-se com uma imagem de névoa e nada mais restou do que o grande desconhecido da intriga burguesa realista». Há verdades que perduram

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