As águas
turvas da União Europeia
Os federalistas convictos, amantes inconfessos da dimensão
neoliberal do “europeísmo”, tementes da sobrevivência dos interesses que sob
ele se acomodam dão graças, não ao divino, mas a mais terrenas réstias de
esperançosa luz. Porque a nau “europeia” persiste na deriva, a água ameaça
infiltrar-se nos esconsos do adornado navio com riscos para a navegação
almejada lá vemos os vigias do costume, apostos no alto da gávea, vislumbrando
porto firme a que acostem. A boa nova que os acalenta advém desse “histórico” e
saudado acordo entre a CDU/CSU e o SPD (re)celebrado na Alemanha. Inundados de
incontido júbilo cá se ouvem uns desejando «boa sorte à “grande coligação”»,
outros alertando para riscos de “nervosismo”, esse escolho, potencial
icebergue, que poderia levar a afundar o Euro ou a UEM.
Com esta arreliadora persistência
de não dar por adquirido o que recheado de contrafacção é apresentado,
permita-se um olhar diferente, uma mais exigente verificação do produto
impingido sob a capa de “europês”. Comecemos por esse linguajar estilístico
que, maltratando conceitos, se agita perante a sucessão de resultados
eleitorais em países diversos. Nas mãos destes sucateiros da palavra tudo se
explica por emergente “populismo”, arreliador “euro-cepticismo” ou pulsão
“extremista”. O aparente desajeitamento
linguístico não é gratuito. Pelo contrário, subjazem-lhe dois
objectivos: o de arrumar naqueles epítetos o alastramento de um justificado juízo
condenatório das políticas da UE, tomando a oposição à integração capitalista
com derivas nacionalistas reaccionárias e “extremistas”; o de fugir à
constatação, demolidora, do que os resultados expressam de arrasamento das
forças políticas responsáveis pelo processo de exploração, usurpação de soberania
e agravamento das desigualdades. Como Teresa de Sousa, corroída de incerteza
desesperante, questionava «o centro vai aguentar?».
Regressando ao tema originário, após a incursão
reflexiva por águas vizinhas ainda assim julgadas pertinentes, afirme-se que o
acordo CDU/CSU-SPD conhece horizontes mais amplos que os caseiros. Ali reside
bóia para se manterem à tona de água. A manobra salvífica é de monta e
proporcional ao percepcionado rombo que o processo de integração patenteia.
Trata-se de chegada a hora das decisões, pôr de lado contradições, aparentes ou
reais, no seio do eixo franco-alemão e fornecer o cimento que há-de unir, como
unidos estão, socialistas e liberais nessa cruzada de dominação neoliberal
supranacional, erguida nos escombros dos direitos dos trabalhadores e dos
povos. Nada que não se soubesse e conhecesse mas que agora se evidencia. A
intimidade familiar das formações políticas é tal que até o ministro das
Finanças acaba na balsa do SPD. Pelo caminho, ainda que não isento de contratempos ditados por
disputas internas, ficam os
desentendimentos entre Comissão e Conselho, Juncker e Tusk, Macron e Merkel. O que parecia
distante, tocado a rebate os interesses que os une, próximo se tornou. Como
dizia a supra-citada cronista da UE «a Europa ainda precisa de um governo
alemão em mãos seguras, capaz de fazer a ponte entre as duas grandes famílias
políticas (...)». Reposta a harmonia siga, ainda que por águas tumultuosas,
o aprofundamento da UEM e do Euro. Afirma-se por aí que «o maior drama da
Europa é compatibilizar a escolha dos eleitores nacionais com a negociação de
compromissos que defendam os interesses europeus». Uma maçada esta
disfunção entre o conteúdo das políticas e as consequências que dela decorrem.
A adequação revelar-se-ia obra de monta não fosse esse expediente de quando os
resultados não agradam relê-los, quando não, voltar a repeti-los. Há sempre
aquela salvação para o “centro se aguentar”: no caso, Macron, aquele que «conseguiu
derrotar os extremos colocando-se exactamente ao centro». Bernard
Henri-Levy, “filósofo” francês interrogava-se da razão do êxito eleitoral de
Macron e de «como se comportarão os que foram arrastados para o poder» sob a sua bandeira. Bernard
procura resposta na Revolução Francesa. Sugerimos-lhe que avance uns anos e
encontra-la-á em Louis Bonaparte. Afastemos similitudes fisionómicas ou
pessoais e fixemo-nos na dinâmica política. Penetremos nas palavras de Marx
acerca do ascenso de Napoleão III e far-se-á alguma luz: olhe-se para a
personagem como «resultado inevitável do desenvolvimento da luta de classes
em França cuja circunstâncias tinham criado as condições que permitiram a um
personagem medíocre e grotesco representar o papel de herói», relativize-se
a noção de “golpe” e “parlamentar” transpondo-os para o domínio da operação eleitoral e visite-se a ideia de que «o golpe
de Bonaparte apareceu como resultado de uma correlação de forças (…) da qual a
burguesia já não podia dominar socorrendo-se dos métodos parlamentares
habituais» e constatará como Marx que «o Napoleão da insurreição
camponesa desfez-se com uma imagem de névoa e nada mais restou do que o grande
desconhecido da intriga burguesa realista». Há verdades que perduram
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