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14 de março de 2018
O que significa o veto russo a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre guerra ao Iêmen
MK Bhadrakumar
O veto dos russos no Conselho de Segurança da ONU nessa 2ª-feira, para bloquear o avanço de uma resolução apoiada pelos EUA que visava a condenar o Irã por supostas violações das sanções internacionais (com os EUA tentando, por essa via, agravar o conflito no Iêmen) foi marco histórico.
É a primeira vez que a Rússia derruba movimento liderado pelos EUA no Conselho de Segurança relacionado a conflito regional no qual os russos não estivessem diretamente envolvidos. Moscou não bloqueou os movimentos ocidentais contra o Iraque em 2003 ou contra a Líbia em 2011, apesar de, nos dois casos, haver interesses russos envolvidos. Moscou tampouco impediu que o governo do Kosovo fosse admitido à ONU como estado soberano, controlado pelo ocidente, em 2008, e engoliu a pílula, por mais amarga que tenha sido em todos os sentidos.
Na Síria, claro, a Rússia usou seu poder de veto repetidas vezes, seja em defesa de interesses russos seja em defesa de interesses da Síria aliada dos russos. Mas no conflito no Iêmen, a Rússia não é nem coadjuvante nem protagonista nem tem qualquer razão legítima para pender para um dos lados.
Assim sendo, o veto russo nessa 2ª-feira inaugura categoria especial, como manifestação pública da disputa encarniçada que já se configura entre russos e norte-americanos, pela influência global. Passa a ser portanto um ponto de virada na era da política pós-Guerra Fria entre as grandes potências.
No plano mais amplo onde se instalou, a Rússia indicou que os EUA e seus aliados ocidentais já não podem dominar o sistema internacional e que a Rússia se oporá à hegemonia dos EUA por questão de princípios. É evento que tem implicações importantes na segurança regional e internacional.
Na verdade, o que a Rússia fez foi fulminar uma tentativa imoral e sem qualquer fundamento legal, pelo Ocidente, para isolar o Irã, de um ponto de vista geopolítico. O Ocidente adotou posição de cinismo obsceno, ante o conflito no Iêmen. Os EUA são partícipes virtuais no conflito, garantindo ajuda militar às forças sauditas e fazendo o serviço de identificar alvos para os aviões sauditas, cujos ataques brutais contra o Iêmen nunca arrefeceram.
O governo Trump dos EUA sequer se deu o trabalho de apresentar qualquer prova de que os Houthis dependessem de apoio do Irã. Especialistas da ONU, dentre outros, recusam-se a validar a acusação feita pelos EUA, de que o Irã teria fornecido aos Houthis os mísseis que atingiram a Arábia Saudita. O governo Obama, pelo menos, admitiu francamente que, embora os Houthis pudessem ser "pró-Iran", ninguém jamais encontrara qualquer prova dessa aliança entre os dois grupos.
Na verdade, os muçulmanos xiitas zaidistas são mais próximos do Islã sunita, do que do xiismo praticado no Irã.
Os russos rejeitaram o texto redigido pelos britânicos, apoiados por EUA e França, que se servia, contra o Irã, de "conclusões não confirmadas e relatórios ainda não examinados e sem qualquer confirmação, que ainda precisam ser checados e discutidos na Comissão de Sanções da ONU" – nas palavras do representante permanente da Rússia na ONU, Vasily Nebenzya.
Nebenzya observou que os russos apresentaram "mais de uma proposta de redação mais séria", mas suas propostas não foram consideradas. Disse que a Rússia "opõe-se fundamentalmente a que se politize qualquer extensão técnica dos grupos de exportações das comissões de sanções, e a que se use a extensão para cumprir metas que nada têm de técnicas ou especializadas, e são exclusivamente de caráter geopolítico".
Significativamente, a versão britânica agora abortada não continha só condenações contra Teerã por conta de fornecimento ilegal de armas aos Houthis; fazia referência também a uma intenção de tomar outras medidas como reação àquelas violações. Pode-se supor que Moscou tenha desconfiado das intenções dos EUA no mesmo processo, adiante, dada a estratégia hostil, do governo Trump, contra o Irã – esforços para desmontar o acordo nuclear, imposição de mais sanções, fazer recuar a capacidade dos mísseis iranianos e pôr fim ao crescimento do Irã como potência regional.
Resposta clara a Washington, o ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov disse na 3ª-feira em Moscou que "é necessário implementar integralmente o Plano de Ampla Ação Conjunta [acordo nuclear para o Irã]. Se alguém quer discutir outras questões que tenham a ver com o Irã nesse ou noutro formato, deve fazê-lo com a participação voluntária do Irã e em base consensual, não mediante ultimatos."
Interessante, o ministro de Relações Exteriores saudita Adel al-Jubeir telefonou a Lavrov na 2ª-feira, horas antes da votação no Conselho de Segurança. Segundo o release russo, os dois ministros "trocaram impressões sobre várias questões das agendas bilaterais para o Oriente Médio, inclusive no contexto da redação de uma nova Resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre o Iêmen."
Evidentemente, se o governo Trump tentou aprofundar as relações sauditas-russos, a ação não funcionou. Moscou de fato "tirou o hífen" nas relações dos russos com Arábia Saudita e Irã. Rússia exibiu as próprias exclusivas credenciais para desempenhar papel influente na ação de pôr fim ao conflito no Iêmen e para facilitar a reaproximação entre sauditas e iranianos. Também interessante: Riad não criticou o veto de Moscou, na 2ª-feira. Coube a EUA, Grã-Bretanha, França e Alemanha emitir uma nota conjunta.
Claro, o que emerge daí, na análise final, é a capacidade de resistência da aliança Rússia-Irã na política do Oriente Médio. A tese ocidental, de que um Irã "assertivo" inevitavelmente se oporia ao "expansionismo" russo no Oriente Médio está exposta como noção errada.
Ironicamente, o evento da 2ª-feira terá efeito salutar sobre a coordenação entre russos e iranianos na Síria, especialmente agora, quando as duas potências preparam-se para um encontro com a Turquia, em Istambul, em abril.
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