REGRESSO AO SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO
« As forças armadas atuais, numa sociedade em que predomina uma ideologia neoliberal que aposta no esvaziamento do papel do Estado e das instituições públicas, que incentiva o egoísmo e recusa exigir dos cidadãos contributos cívicos em tarefas de interesse nacional, geoestrategicamente sujeita a decisões tomadas em fóruns supranacionais, estão preparadas e orientadas para enquadrar forças multinacionais, no cumprimento de missões definidas em instâncias supranacionais»
Pezarat Correia
Assistimos
a um debate, conjuntural e habilmente manipulado, sobre a eventual
reposição de um Serviço Militar Obrigatório (SMO). Digo conjuntural e
manipulado porque tem a ver, exclusivamente, com a atual situação na
Ucrânia e com a paranoica
fantasia da ameaça da
prontidão russa para invadir a Europa ocidental, com que os “falcões
belicistas” vão entretendo a desatenta opinião pública para que aceite,
acriticamente, os reforços armamentistas que engrossem os cofres do
complexo industrial militar dos EUA.
isso
me permito repor aqui, no GDH, um texto que publiquei há cerca de 6
anos na coluna “Jango” que então mantinha n’O Referencial, revista da
Associação 25 de Abril, porque o considero de inteira atualidade e,
hoje, o escreveria exatamente nos
mesmos termos,
pedindo especial atenção para os três últimos parágrafos. É um pouco
longo e peço me desculpe quem já o tiver lido. É o que se segue:
SERVIÇO MILITAR – ESQUELETOS NO ARMÁRIO
É
com alguma estupefação que se ouvem algumas vozes, ainda que
aparentemente desalinhadas, anunciando a necessidade de regresso do
serviço militar obrigatório (SMO), isto é, a umas forças armadas de
modelo de conscrição. São vozes oriundas dos partidos que mais se
bateram e conseguiram a sua extinção e instalação do
serviço militar assente no voluntariado e de umas forças armadas profissionalizadas.
Esta
rotura institucional correspondeu a uma tendência que alastrou
nassociedades ocidentais nos finais da década 80 do século passado,
centrada na obsessão de esvaziamento do papel do Estado e das
instituições públicas, derivada do radicalismo
neoliberal
da globalização que atingiria a generalidade das suas funções na
economia, na educação, na saúde, na segurança social e, até, em áreas
consideradas de reserva desoberania como a ordem pública e a defesa
nacional. Tudo era apetecível na perspetiva de rentabilidade da voragem
capitalista. As vozes que se levantaram alertando para os variados
riscos que estas opções atraíam foram silenciadas pela vaga modernista
que se
sujeitava à moda que, do exterior,
nomeadamente dos EUA e da UE, impunha modelos estruturais e
comportamentais e tinha bom acolhimento na maioria dos media. E foi uma
cedência dos partidos que alternavam e repartiam o poder às suas
“jotas”, primeiros sinais de um populismo perverso que hoje conquista
espaço no ocidente e ameaça seriamente uma democracia que parecia
irreversivelmente adquirida.
Em
1988 num pequeno ensaio, Centuriões ou pretorianos? 1 , antecipámo-nos
na denúncia dessa tendência que víamos como uma dinâmica deliberada já
em marcha e uma violação frontal da Constituição da República Portuguesa
de 1976 para a qual,
mesmo após a revisão de 1982,
o serviço militar é obrigatório (art 276/2) recusando, implicitamente, o
modelo profissional de forças armadas.
A
concluir, escrevíamos: «Em 1985 o serviço militar em Portugal
caraterizava-se por uma tendência profissionalizante e em alguns casos
já marcadamente profissional [...] As tendências a curto prazo serão no
sentido da profissionalização das Forças Armadas.» (pp. 93 e 94).
Nessa
altura, confirmando essa tendência, vozes politicamente responsáveis já
falavam no fim do SMO e, em 1991, o governo decretava a redução do SMO
para 4 meses o que, constituindo uma inviabilidade funcional, mais não
era do que o primeiro
passo para a sua extinção,
dado que nenhuma estrutura militar sobreviveria a um modelo em que o
grosso das tropas apenas permanecesse nas fileiras o tempo da recruta.
Era
óbvio que o serviço de guarnição e nas unidades operacionais teria de
ser assegurado através de uma profissionalização assente no
voluntariado. Era um artifício para justificar o inevitável o recurso ao
serviço militar profissional.
Mas
havia um outro aspeto ainda mais perverso que daí resultaria e se
inscrevia na sua lógica intrínseca, que não era assumido e parecia
passar despercebido. Uma vez que os exércitos profissionais são sempre
reduzidos porque se regem por critérios
economicistas,
em tempos de crise que exijam reforços na falta de um contingente na
disponibilidade ter-se-ia que recorrer a Empresas Militares Privadas
(EMP) já emergentes na sequência das Empresas Privadas de Segurança para
a ordem pública,
introduzindo a privatização nas
Forças Armadas. Também fui pioneiro na denúncia desta aberrante
emergência, com escândalo em alguns meios intelectuais. Em setembro de
1992 escrevi: «Não nos espantaremos muito se, qualquer dia, começarmos a
ser
subtilmente sensibilizados para soluções mais
“avançadas”, mais “modernas”, que envolverão processos de privatização
na Forças Armadas. Será tudo questão de rentabilidade.»
2
Em fevereiro de 1999, estando em discussão na AR a Lei do Serviço
Militar, o Grupo Parlamentar de Defesa Nacional convidou-me para me
pronunciar sobre o projeto de lei. A concluir uma crítica sobre o seu
conteúdo e insuficiências para enfrentar eventuais situações de
emergência, afirmei perante os deputados que a alternativa, na lógica
daquela opção, era a mercenarização e a privatização.
Poucos
meses depois, se bem que ainda não em Portugal, a mercenarização e a
privatização eram um facto. Às EMP começaram a ser atribuídas funções
burocráticas, depois de instrução e formação, a seguir de apoio
logístico, mas logo se estenderam à atividade operacional. Com o
prolongamento da guerra de agressão anglo-americana ao Iraque com início
em 2003, os efetivos das EMP empenhados em atividade operacional
terrestre chegaram a ultrapassar os efetivos das forças regulares.
Aos poucos a profissionalização ia sendo assumida em Portugal, às claras.
Com
a revisão constitucional de 1997 caía a norma do SMO, o mesmo se passou
em setembro de 1999 com a publicação da Lei do Serviço Militar e, em
2004, o SMO era definitivamente extinto por lei ordinária.
Se
é certo que as pressões das “jotas” partidárias tiveram influência não
foram o único nem o principal fator da mudança. A conjuntura
político-social era favorável e foi oportunisticamente aproveitada. O
fator determinante era sociológico e tinha a ver com a relação e
influência mútua entre sociedade e instituição militar.
Em
1996, quando já estava a concretizar-se a viragem que no ano seguinte
se confirmaria com a revisão constitucional, participei num seminário no
IAEM 3 , “Visão prospetiva do serviço militar em Portugal”, com uma
comunicação a que chamei “Instituição militar, modelo de sociedade,
interesses vitais e defesa do espaço nacional”, depois publicada pelo
próprio IAEM e pela Revista Militar. 4 Permito-me transcrever alguns
trechos desse texto mais relacionados com o tema aqui em análise:
«Sociólogos
militares têm mostrado que há uma interdependência entre o tipo de
instituição militar dominante e o modelo de sociedade em que ela se
insere. Nexo que resulta da influência recíproca, pois não só a dinâmica
social modela a natureza das forças armadas que a servem, como estas,
enquanto instrumento de coação armada, assumem, frequentemente, um papel
excessivo
influenciando a evolução da sociedade
[…] É geralmente aceite que nos encontramos num ponto de viragem, o que
provavelmente aconteceu em todas as gerações, em todas as épocas […] A
lógica da correspondência entre modelo de sociedade e forças armadas,
dentro de uma dada época histórica, levará, assim,
a inevitabilidade da correspondência sociedade-instituição militar.» (IAEM pp. 172 a 174, RM pp. 1031 a 1034)
Já
depois de publicadas as reflexões que aqui registo, sociólogos ilustres
exibiam preocupações semelhantes. Charles Moskos, Allen Williams e
David Segal em 2000, no artigo, “Armed forces after the cold war” 5 ,
escreviam:
«A instituição
militar pós-moderna […] enfrenta um enfraquecimento dos laços com o
Estado-nação. O formato básico deslizou para uma força profissional […] O
tipo pós-moderno é ascendente na era contemporânea […] A instituição
militar pós-moderna carateriza-se por cinco mudanças organizacionais […]
A terceira é a alteração das vocações militares para combate em guerras
com missões que poderão ser consideradas não-militares
no
sentido tradicional. A quarta alteração é que as forças militares são
mais usadas em missões internacionais autorizadas (ou pelo menos
legitimadas) por entidades que ultrapassam o Estado-nação. Uma última
mudança é a internacionalização das próprias forças militares […]» (pp. 1
e 2) que, a prazo, virá a alterar os modos como a responsabilidade pode
ser exercida no governo das forças armadas […] a conscrição […] por um
lado atua como
um valioso dissuasor contra
potenciais agressores e por outro fornece um importante laço com a
sociedade civil e em alguns casos não apenas é aceite como continua
popular.» (pp. 6, 37, 64 e 65)
Mais à frente, citando Moskos, Williams e Segal, acrescenta Forster:
«[…]
as forças armadas estão a ser reformuladas por amplas mudanças
societais às quais os militares não podem manter-se imunes […] a
escalada das mudanças é tal que leva a uma nova era “pós-moderna” no
desenvolvimento das forças armadas com papéis cada vez mais dominados
por operações não tradicionais e frequentemente multinacionais […] e os
militares, eles próprios cada vez mais internacionalizados […]» (p. 75)
Todas
estas transformações que se traduziram neste modelo pós-moderno de
forças armadas profissionais complementadas com o novo mercenariato e a
privatização, inscrevia-se, afinal, na dinâmica desencadeada nos EUA com
a revolução nos assuntos militares que abordei assiduamente em algumas
instâncias e publicações e
acabei por compilar na
última parte do meu livro mais recente sobre matéria militar, Guerra e
sociedade 7 . Aí desenvolvo como, em substituição do SMO, se introduziu o
modelo de forças armadas profissionais que são o reflexo da era da
globalização em que se tende a valorizar a tecnocracia e pretensos
ganhos e eficácia, baseados no recrutamento voluntário com os
tendenciais e perversos desvios para a mercenarização,
internacionalização e privatização. Forças armadas que não estão
prioritariamente
vocacionadas para a proteção das
sociedades de que emanam ou para o cumprimento de missões visando
objetivos nacionalmente definidos, mas para atuação além-fronteiras no
cumprimento de missões da ONU ou de outras potências ou instâncias
internacionais. Referia-me, obviamente à OTAN e UE.
Recordo
que, exatamente neste contexto, Nuno Severiano Teixeira, ministro da
Defesa Nacional do XVII Governo Constitucional, declarava ao Diário de
Notícias de 21 de julho de 2006 quando qualificava de “histórica” a
reforma do Exército em curso:
«Passámos de um
Exército de base territorial para outro de base operacional. Quer isto
dizer que se muda de um Exército que estava fundamentalmente voltado
para a missões no território português para outro de missões no
exterior.» O que era
corroborado e complementado
pelo ministro da Administração Interna do mesmo governo, António Costa,
em entrevista ao Expresso de 10 de março de 2007: «O que justifica a
distinção da natureza civil e da militar da PSP e da GNR não tem a ver
com
as missões do dia-a-dia mas com a eventualidade
de uma crise na segurança nacional, o facto de o Exército ter deixado
de ser territorial e estar sobretudo concebido para a sua projeção
internacional faz com que a única força militar capaz de assegurar a
cobertura da quadrícula nacional seja a GNR.»
É
aqui que reside a grande questão quando se recoloca o eventual regresso
de Portugal ao SMO. As forças armadas atuais, numa sociedade em que
predomina uma ideologia neoliberal que aposta no esvaziamento do papel
do Estado e das instituições públicas, que incentiva o egoísmo e recusa
exigir dos cidadãos contributos cívicos em tarefas de interesse
nacional, geoestrategicamente sujeita a decisões tomadas em fóruns
supranacionais, estão preparadas e orientadas para enquadrar forças
multinacionais, no
cumprimento de missões definidas
em instâncias supranacionais, atuando no exterior e não para garantirem
a defesa do espaço e dos interesses nacionais. O modelo de forças
armadas e o tipo de sociedade atuais justificam-se mutuamente. Daí que
só tenha
sentido reequacionar o modelo das forças
armadas se enquadrado num grande desígnio estratégico global, enquanto
instrumento de uma política que se liberte da imposição de modelos e
modas do exterior e tenha verdadeiramente em conta os valores e
interesses
do povo português. Não é razoável que à
juventude portuguesa seja imposto um SMO para atuar no estrangeiro,
integrada em forças estrangeiras, no cumprimento de missões alheias ao
que justifica a sua incorporação. O SMO só se justifica como um serviço
de cidadãos prestado à sociedade e que se inscreva nesse modelo de
sociedade, que recupere o ideal republicano do povo em armas que está na
sua origem. Que, entendida num sentido amplo e alargado da defesa
nacional, não aliene a solidariedade com outros
povos
e outras regiões quando estão em causa os valores da paz e dos direitos
humanos, mas recuse intervenções abusivas e não solicitadas noutros
Estados soberanos.
Será
interessante um debate sobre esta matéria. O universo de recrutamento de
um eventual SMO ultrapassaria hoje o dobro do anterior, já que deixaria
de haver discriminação de género e deveria contar com as comunidades de
imigrantes. O total excederá o contingente anual necessário às Forças
Armadas. Já vi – e parece-me uma boa abordagem – a sugestão de enquadrar
o SMO num serviço cívico obrigatório e universal, aliás, acolhido na
Constituição (Art. 276), nos mesmos termos na sua versão original de
1976 e na atual. Um serviço cívico com a participação de todos os jovens
num
período localizado da sua formação, em tarefas de interesse público
relacionadas com a proteção civil, com o serviço nacional de saúde, com a
preservação do ambiente, com a assistência social, com a ordem pública,
com a defesa nacional. É de uma sociedade solidária, inclusiva,
cosmopolita que falamos. Que seja determinada pela vontade dos seus
cidadãos.
Setembro de 2018
PPC
1 CORREIA, Pedro Pezarat – Centuriões ou pretorianos?, O Jornal, Lisboa 1988
2 Id – “Das ‘Forças Armadas’ à ‘força armada’, Época n.º 0, 8 set 1982, p. 26
3 Instituto de Altos Estudos Militares, atual Instituto Universitário Militar (IUM)
4 CORREIA, Pedro Pezarat – “Instituição militar, modelo de sociedade, interesses vitais e defesa do
espaço nacional”, “Visão prospetiva do serviço militar em Portugal”, IAEM, Lisboa, 1996 e Revista
Militar n.º 10, Lisboa, out 1996
5 MOSKOS, Charles, WILLIAMS, John Allen, SEGAL, David R. – “Armed forces after the cold war”,
The postmodern military, Oxford University Press, New York, 2000
6 FORSTER, Anthony – Armed forces and society in Europe, Palgrave Macmillan, London, 2006
7 CORREIA, Pedro Pezarat – Guerra e sociedade, Edições 70, Lisboa, 2017
1 comentário:
SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO
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Nativos, não-nativos naturalizados e mercenários:
-> a BlackRock (e etc) precisa de carne para canhão para os seus negócios no caos: vide Ucrânia.
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Já está prevista uma substituição populacional:
- «Se necesita capital humano para reconstruir el país y para la inversión, ¿quién va a abrir una nueva empresa o un nuevo banco en un país con tan poca población?", observó.
Cualquier gobierno de posguerra tendrá que abrir de par en par sus fronteras para que entren nuevos inmigrantes si quiere que el país se recupere, afirmó.
Políticamente, Ucrania tiene que estar dispuesta a aceptar esta realidad y ser muy inteligente en su política migratoria. Tendremos que atraer a muchos emigrantes de otros países».
---> Os ucranianos lutam pela salvaguarda daquilo que venderam ('ao preço da banana') à BlackRock (e etc).
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Ucranianos: UM POVO QUE SE VENDEU DUMA FORMA ABSOLUTAMENTE MISERÁVEL:
- os ucranianos NÃO SÓ (a quando do fim da ditadura dos sovietes) não falaram na devolução das regiões russófonas que a ditadura dos sovietes haviam integrado na Ucrânia... COMO TAMBÉM (ainda por cima)... ambicionaram fazer uma limpeza étnica de russófonos (no estilo Faixa de Gaza)!!!
--->>> Financiados pelos (a soldo dos) ocidentais mainstream os ucranianos bombardearam, massacraram, queimaram vivos (Odessa 2 de maio de 2014) russófonos das regiões que a ditadura dos sovietes haviam integrado na Ucrânia.
--->>> Mais; Fevereiro 2022: o Donbass estava sendo alvo de um intenso bombardeamento, e 120 mil soldados ucranianos junto ao Donbass:
- sim: estava na forja uma limpeza étnica do tipo Faixa de Gaza.
E... o ocidente mainstream a assobiar para o lado!...
E MAIS: não só assobiou para o lado, como também, o ocidente mainstream andou a pavonear-se/vangloriar-se de esperteza Sun Tsu!?!?!?!?!
{«os acordos de paz Minsk1 e Minsk2 foram um golpe de esperteza Sun Tsu que enganou os parvos dos russos»}
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P.S.
Nove, em cada dez, dos mais variados analistas ocidentais garantiam:
- «é muito provável que a Rússia vá socorrer os russófonos
...e...
armas da NATO na Ucrânia, juntamente com sanções económicas à Russia,
...e...
a Russia seria conduzida ao caos: tal seria uma oportunidade de ouro: iria proporcionar um saque de riquezas da Russia muito muito superior ao saque de riquezas que ocorreu no 'caos-Ieltsin' na década de 1990».
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