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11 de março de 2022

Transição energética

 

Transição Energética 

Rui Namorado Rosa 

Professor Universitário


O planeta Terra: Clima e Energia


A Terra tem um sistema climático complexo em cujo metabolismo o teor de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera é um entre muitos outros elementos de apreciação em jogo. A temperatura na atmosfera é determinada pelo balanço entre a radiação solar incidente e a radiação reflectida e reemitida para o espaço exterior; a fracção da radiação solar incidente que é devolvida é designada por albedo. O albedo da superfície da Terra e a do próprio planeta no topo da atmosfera determinam a temperatura para que tendem. Nesse respeito o teor de CO2 na atmosfera não é mais relevante do que outros factores como sejam o teor de demais gases e aerossóis, a formação e cobertura de nuvens, a extensão dos oceanos da cobertura de gelo dos desertos e de florestas. A presença do carbono na atmosfera enquanto dióxido CO2 ou metano CH4 é uma pequeníssima parte da sua presença na composição de todo o planeta: na crusta rochosa e solos, nos oceanos e na biosfera, no manto e núcleo que são reservatórios de carbono muito maiores e intercomunicantes. 

  

As fontes de energia podem ser ou reservatórios ou fluxos de energia. Por exemplo: reservatórios de energia térmica como o calor retido nos materiais constituintes do interior da Terra (energia geotérmica) ou a energia nuclear dos elementos mais ligeiros (como o lítio) e os mais pesados (como o urânio) presentes na crusta e no oceano; ou os fluxos de massa dos fluidos planetários (eólicos ou hídricos») ou o fluxo de radiação solar, energia radiante (electro-magnética) emitida pelo sol que incide e penetra a atmosfera terrestre. 

Assim, o calor geotérmico à superfície do solo e o vento na atmosfera são fluxos de energia há muito captados e aproveitados. A água acumulada numa albufeira em montanha e a madeira num bosque são reservatórios de que correntemente se retira proveito também. Em qualquer caso, como regra precisamos de engenhos que captem da fonte de energia um fluxo de energia que produza um trabalho útil ou uma transformação desejada. 

As energias renováveis são apregoadas como o futuro do aprovisionamento de energia «limpa». Não será assim tão simples. As «energias renováveis» requerem mais pesados investimentos em capital fixo por unidade de potência instalada, quando comparadas com fontes não renováveis convencionais. Por outro lado, os fluxos de energia ambientais têm em geral baixa densidade, pelo que exigem amplas áreas de captação por unidade de potência, implicando custos de oportunidade no uso do solo. Quando fluxos intermitentes, exigem apoio de ampla capacidade de armazenamento. Os equipamentos de captação e armazenamento não são renováveis, são em geral complexos e incorporam materiais especiais cuja extracção e reciclagem são exigentes em meios e impactos. A disponibilidade desses materiais escassos tem um horizonte tão finito quanto o dos combustíveis fósseis foi. Tal que, por enquanto, comparando período de recuperação de investimento ou taxa interna de rendibilidade, projectos de energia renovável tendem a ser menos interessantes. O que explica os mecanismos financeiros utilizados para apoiar ou forçar a opção política de «transição energética» em curso, mesmo quando contra a racionalidade económica. 



Fontes de  Energia e sua exploração económica 


O sector industrial petrolífero é igualmente responsável pelo gás natural, cuja origem geológica e ocorrência são semelhantes às do petróleo. 

Nos complexos petroquímicos onde esses hidrocarbonetos naturais são separados e convertidos em muitos produtos de base carbónica (álcoois, éteres, cetonas, olefinas, aromáticos…), azotada ou mista (amónia, hidrazina, ureia, aminas,…), também hidrogénio (H2) e outros, a indústria petrolífera concorre simbioticamente com várias indústrias químicas. 

Nesse quadro existem condições favoráveis à evolução para novo tipo de empresa polivalente no sector energia.

No final do século XX, quando a extracção de petróleo e gás natural sinalizou o futuro declínio mundial de disponibilidade dos respectivos recursos, a Shell, a Chevron e outras grandes petrolíferas ensaiaram cultivar a imagem de empresas de energia polivalentes. A Shell criou uma joint venture de electricidade chamada InterGen; a BP assumiu não mais ser British Petroleum para ser antes Beyond Petroleum; a Exxon Mobil optou por incorporar o negócio dos biocombustíveis. Passaram a investir em energias renováveis, então um negócio menor e muito dependente de subsídios públicos. 

Essa transfiguração da imagem de marca continua a acontecer. Total Energies e Qatar Energy, por exemplo, são recentes mudanças de nome. Grandes petrolíferas passaram a explorar também energias solar e eólica, redes de carregamento de veículos, serviços de inspecção e certificação. Sem prejuízo de prosseguirem activamente o desenvolvimento dos recursos naturais de hidrocarbonetos, que continuam sendo ainda de longe a maior fonte de seus proveitos, porém não alardeando tanto como no passado.

As grandes internacionais petrolíferas norte-americanas, como Exxon Mobil e Chevron, começaram por evitar as energias renováveis, excepto os biocombustíveis que enquadraram no negócio de distribuição de combustíveis. Diferentemente, as grandes petrolíferas nacionais como a Saudi Aramco, National Iranian Oil ou Petro China, são administradoras de recursos nacionais com mandato focado no sector dos hidrocarbonetos.

Outras empresas do legado petrolífero procuram assimilar experiências e manter vantagem sobre competidoras que emergem na base da exploração de energias renováveis, caso da Engie, Iberdrola ou Enel. 

Por exemplo, a experiência da dinamarquesa Ørsted, especializada na produção eólica offshore, é um exemplo que poderá ser replicado pelas petrolíferas que já operam no Mar do Norte.

No entretanto, a capacidade de armazenamento geológico de dióxido de carbono e de hidrogénio, bem como o fabrico de combustíveis sintéticos deles derivados com energia eléctrica renovável, eólica ou solar, excedentária ou dedicada, vão sendo assumidos como activos de promissora importância. No longo prazo, apoiada tanto na capacidade de armazenamento geológico liberada pela exaustão de combustíveis fósseis quanto constrangida por premente escassez de recursos de materiais especiais e seus potenciais impactos ambientais, a gestão do legado da época dos hidrocarbonetos fósseis focar-se-à então na gestão técnica e económica de um renovado complexo fundado sobre os mesmos dois elementos hidrogénio e carbono.

Por esta via, por volta de meados deste século, a produção e manipulação do hidrogénio e do carbono poderão integrar o complexo energético, gerando receita adicional comparável aos milhões de milhões de euros anuais do actual negócio petrolífero (petróleo e gás). Entretanto, grandes petrolíferas são já grandes energéticas, integrando activos e valências também nas energias renováveis e na electricidade (produção, transporte, comercialização), tirando partido de sua experiência em gerir projectos integrados e em mobilizar capital.



Para além das renováveis e não renováveis



O hidrogénio (H2) é proposto como um combustível virtuoso: vector (transportador) de energia supostamente limpa para a indústria, e até mesmo preconizado como (improvável) combustível para transportes naval e aéreo. É obtido a partir de gás natural e oxigénio atmosférico com captura e armazenamento do carbono (hidrogénio «azul») ou por de via de electrólise da água com electricidade de origem renovável (hidrogénio «verde»). O hidrogénio é há muito um importante produto intermédio nas indústrias químicas e petroquímica, designadamente no fabrico de amónia, metanol, combustíveis e polímeros; e é um redutor (promissor) na metalurgia extractiva. Todavia, enquanto combustível, o seu armazenamento e transporte carecem de infraestrutura especializada e exigente (muito baixa temperatura ou muita alta pressão).

O carbono libertado enquanto dióxido de carbono CO2 na queima de petróleo, gás natural e seus derivados, nos transportes e indústrias, suscita outros problemas e oportunidades também. Por um lado, existe a preocupação em reduzir a sua emissão por grandes instalações estacionárias, como centrais termoeléctricas, refinarias, cimenteiras e indústria pesada. Por outro, o dióxido de carbono tem valor económico. Por exemplo captado e exportado por países industrializados que carecem de geologia adequada para sequestrá-lo, caso de Coreia do Sul, Japão e Alemanha. As petrolíferas Shell, Total Energies e Equinor são actores destacados no sequestro de CO2 que está sendo desenvolvido nas margens do Mar do Norte, tirando partido da disponibilidade de reservatórios geológicos que, após a extracção do petróleo e gás, se tornam em repositórios expeditos para sequestro de CO2 ou outros fluidos.

Por outro lado, no quadro da futura redução de emissões de CO2, seja por força da exaustão de recursos acessíveis de combustíveis fósseis, seja por força das negociações climáticas visando restringir essas emissões no quadro do IPCC, prevê-se vir a ser necessário captar grandes fluxos de dióxido de carbono directamente da atmosfera (DAC), quer para conter a sua concentração no ar quer para dispor dele como matéria-prima industrial. Ora o CO2 captado da atmosfera, tal como o carbono captado da biosfera (notar que a biomassa quando queimada fornece essencialmente carbono e água) e ainda, e sobretudo, o CO2 sequestrado em reservatórios geológicos, é evidente matéria-prima para a indústria.

Partindo do H2 e CO2, uma renovada indústria termo-mecano-electro-química terá a oportunidade de produzir combustíveis sintéticos, idênticos ou análogos aos actualmente utilizados, porém climaticamente neutros, imediatamente integráveis nas actuais infraestruturas de transporte e distribuição de petróleo e gás natural, e utilizáveis pelos actuais equipamentos de utilização final de energia, incluindo transportes terrestres, marítimos e aéreos. Notar que o carbono circulará então entre a atmosfera e a econosfera, à semelhança da sua circulação entre a atmosfera e a biosfera; a diferença estando em o carbono fóssil ser substituído por carbono captado na própria econosfera, atmosfera ou biosfera.

O gás natural, manipulado cautelosamente dado o seu potente efeito de estufa, é uma fonte e vector de energia muito atraente. Gás natural sintético, isto é, metano obtido a partir de H2 e CO2 renováveis por via de processo de metanação eficiente, é uma opção interessante como vector de energia climaticamente neutro. De momento, a metanação é um processo termoquímico dispendioso; inovações técnicas (como catálise fotoquímica com luz solar ou reacção de Sabatier em leito fixo adiabático) poderão vir a equiparar o metano sintético ao ainda abundantemente disponível gás natural. O metano beneficia evidentemente da já existente capacidade de armazenamento, transporte, distribuição e utilização final.

A anunciada progressão no recurso a fontes de energia renováveis remete para futura maior dependência de capacidade de armazenamento de energia na rede eléctrica; e partindo de diversas formas para diferentes formas de energia, mediante mecanismos de conversão adequados. A questão da capacidade de armazenamento de energia nas redes de distribuição (seja de combustíveis seja de electricidade) tem grande relevância que não é valorizada o bastante. O armazenamento de energia na rede eléctrica, capaz de acomodar quer a geração intermitente e aleatória (sol ou vento) quer a geração de base constante (nuclear ou carvão), tornar-se-à um sector em expansão com renovada importância, apelando a e oferecendo elevado potencial de desenvolvimento tecnológico.

A capacidade de produção de energia de origem nuclear, baseada no urânio e tório, tem grande potencial de crescimento, quer em centrais térmicas e eléctricas estacionárias, quer em mobilidade naval de elevada capacidade e autonomia, como demonstrado pela experiência mantida por vários países. É justo e urgente que o conhecimento e os meios actualmente disponibilizados para fins militares revertam para fins pacíficos. Sabendo que, à escala planetária, a base de aprovisionamento de energia nuclear excede largamente a base de aprovisionamento de energia fóssil.



Alterações climáticas ou transição energética


No quadro do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) constituído em 1988 (por World Meteorological Organization e United Nations Environment Program), foi iniciado um percurso de concertação política intergovernamental focada nas «Alterações Climáticas» que, a partir do Protocolo de Kyoto (1997) passou a incorporar metas e mecanismos de monitoração e implementação. A partir da abordagem técnica seguida e das opções políticas tomadas, o clima do planeta Terra foi relevado como questão central do futuro da Humanidade, um cenário acarinhado por poderes políticos e interesses financeiros para imporem suas estratégias globais, não já através de fronteiras mas agora através do espaço comum que é a atmosfera.

A mensagem das Alterações Climáticas foca-se no teor de CO2 na atmosfera, para chegar à indelével relação entre o consumo de combustíveis fósseis e o crescimento económico operado desde o início da revolução industrial dois séculos atrás. Porém simplificando, como se a emissão antropogénica prosseguisse ilimitada e conduzindo linearmente conduzisse linearmente a acumulação do CO2 em vaso fechado. Quando, todavia, o CO2 flui entre os vários reservatórios planetários (atmosfera, biosfera, oceano, solo, o próprio interior manto-núcleo), o seu teor na atmosfera oscila com a estação do ano, e o tempo da sua residência na atmosfera é cerca de uma década.

A mensagem simplificada procura ser eficaz no objectivo de alcançar maior impacto na opinião pública alargada. Apropriada por poderes financeiro e político, é transmutada em «Transição Energética» instrumento para realização de seus proveitos: polarização da opinião pública, teorização de operações especulativas (como o comercio do carbono), apropriação de bens naturais, promoção de grandes corporações, finalmente ganhos financeiros e políticos. São então preconizadas a destruição antecipada de capital produtivo e a renovação técnica de meios de produção, enquanto prometendo ardilosamente a salvaguarda de bens naturais universais.

Como solução que nos é oferecida, centrais a carvão são encerradas, a que é contraposto o incremento da captação de fluxos de energia renováveis em larga escala, enfaticamente solar e eólica. Isto é, abrindo caminho para disponibilizar recursos acessíveis de carbono a par da produção acelerada de electricidade renovável e de hidrogénio verde. Deste modo progredindo também no sentido da adopção de combustíveis sintéticos em larga escala. A transição energética será então indissociável da retracção precoce das tradicionais indústrias carbonífera e petrolífera, para que fique salvaguardada a disponibilidade doméstica de carbono essencial ao novo paradigma energético e as energias renováveis progridam sem constrangimento.

Os governos de Alemanha e França, entre outros, visam e promovem uma grande indústria termo-mecano-electro-química ascendente, em que se consideram líderes, através da qual pretendem assumir ainda maior centralidade na evolução técnico-económica do continente europeu. Esse potencial tecnológico visa fabricar equipamentos para captação de fluxos solares, eólicos, hídricos; também a produção de diversificados equipamentos de conversão e de armazenamento de energia destinados à rede eléctrica, a veículos de transporte e a robots; etc. 

A baixa densidade dos fluxos energéticos primários, solares e eólicos, implicam vastas áreas dedicadas à sua captação – o que ficará destinado a países da periferia europeia, ao offshore e ao norte de África – com equipamentos fabricados no núcleo europeu mais industrializado. Os impactos dessa geoengenharia são silenciados. Quer os impactos sobre as comunidades residentes e as oportunidades económicas descartadas, quer os impactos sobre o balanço energético da própria atmosfera. Depois, os impactos atribuíveis ao fabrico massivo de colectores solares e eólicos e de dispositivos de conversão e armazenamento de energia, que requerem inúmeros materiais especiais escassos a importar dos cinco continentes, para cujo aprovisionamento a indústria mineira e os países da periferia são chamados a contribuir. Os custos e os benefícios de oportunidade estão marcados. E as interdependências não se extinguem, pelo contrário ampliam, posto que os leques de matérias-primas e de tecnologias de que necessitam em muito se alargam.



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