Viriato Soromenho Marques
Kipling publicou o seu famoso poema – The White Man’s burden – exaltando a anexação colonial das Filipinas pelos EUA, a autoconfiança imperial do Ocidente estava no seu auge. Pelo contrário, a atual deriva de Washington, enredada na perigosa teia de guerras que julgava poder controlar – na Europa e Médio Oriente –, reconduz-nos ao tema, também vetusto, do declínio do Ocidente.
Mesmo antes de, após o fim da guerra-fria, a hegemonia unipolar dos EUA ter iniciado o seu errático trajeto de intervencionismo bélico e incompetência estratégica, que nos conduziu à beira do abismo onde nos encontramos hoje, vozes sensatas, como a de Samuel Huntington, denunciavam o perigo da hubris norte-americana e ocidental, dessa arrogância de tentar impor uma cultura unidimensional a um mundo com múltiplas vozes e civilizações. Em 1996, aconselhava Huntington: “Uma postura prudente para o Ocidente seria não tentar suster a deslocação do poder, mas aprender a navegar em baixios, a suportar tormentas, a moderar as apostas e a preservar a sua cultura”. A mensagem não passou. O narcisismo imperial, o apoucamento do Outro, a ilusão de omnipotência, com muitos milhões de mortos e refugiados à mistura, povoaram estes trinta últimos anos. O genocídio praticado por Israel em Gaza, assistido pelo Ocidente, sinaliza um ponto de não retorno.Será
possível inverter esta rota de catástrofe para onde caminhamos? Para
escolher o caminho da vida e reconhecer humildemente que o mundo
pertence a toda a humanidade, e não só ao Ocidente, é necessária uma
desintoxicação dos preconceitos e das opiniões arbitrárias. Sabemos bem
que os factos permitem sempre diversas interpretações. Contudo, nos
últimos três anos, no Ocidente, as interpretações sem substância
escorraçaram toda a matéria de facto.
Contra
o império das convicções, gostaria de partilhar com o leitor alguns
indicadores essenciais do mundo concreto e mais vasto, além das
fronteiras banhadas pelo Atlântico Norte. Faço-o em apoio duma dupla
tese: já vivemos num mundo multipolar; o Ocidente já não constitui o
principal motor portador de futuro.
Sabemos
que a reorganização do sistema internacional se está a efetuar através
de uma cooperação de países conhecidos como BRICS, com muitas
divergências entre si, mas unidos pela recusa da atual definição das
regras do jogo do poder mundial, ditadas pelo Ocidente, reunido no G7.
Aliás, o chefe da diplomacia de Nova Deli, S. Jaishankar, acusa esse
grupo de ser um clube encerrado sobre o seu umbigo… Recordemos que o G7 é
formado pelos EUA, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Japão e
Canadá. Por seu turno, os BRICS começaram com 4 países (Brasil, Rússia,
Índia e China). Em 2011, a África do Sul foi admitida. No final de
outubro, na 16.ª conferência anual da organização, a realizar em Kazan,
Rússia, terão entrada oficial mais 5 países: Arábia Saudita, Irão,
Emiratos Árabes Unidos, Egipto e Etiópia. É curioso referir que a Rússia
durante vários anos pertenceu aos dois “clubes”, pois entre 1998 e 2014
foi também membro do G8, até ser expulsa quando a Crimeia regressou à
soberania de Moscovo.
Se
compararmos o peso do G7 e dos BRICS no PIB mundial (por paridade do
poder de compra) verificamos uma mudança dramática entre 2000 e 2024. Em
2000, o G7 representava 43, 28% do PIB global contra 21, 37% dos BRICS.
Em 2018 deu-se a inversão: 31, 84% contra 32, 33%. Estima-se este ano
um recuo do G7 para 29,64% contra 35, 43% dos BRICS (dados da empresa
alemã, Statista).
No
plano mais fino da ciência e tecnologia (C&T), os resultados são
ainda mais surpreendentes. Em agosto foi publicado um relatório do
Australian Strategic Policy Institute, um think-tank ligado ao governo
de Camberra, sobre os países que lideram a C&T em 64 áreas críticas
para o futuro: a defesa, o espaço, a energia, o ambiente, a inteligência
artificial (IA), biotecnologia, robótica, cibernética, computação,
materiais avançados e áreas-chave da tecnologia quântica. Estuda-se o
período de 2003 a 2023. Também na C&T, o Ocidente regride. Em 2003,
os EUA lideravam em 60 das 64 tecnologias. Em 2023, lideram apenas em
sete. A China, pelo contrário, passou do lugar da frente em três
tecnologias (2003) para 57 das 64 tecnologias em 2023. Se a UE contasse
como país, lideraria apenas em duas tecnologias (sensores de força
gravitacional e pequenos satélites). Outros países dos BRICS têm lugar
destacado: a Índia está entre os cinco primeiros países em 45 das 64
tecnologias, o Irão em oito, a Arábia Saudita em quatro.
E
que faz o Ocidente – os EUA e a mimética EU – perante essa explosão de
disciplina, criatividade e inteligência de povos que antes, por si foram
colonizados e subjugados? Rearma-se, decreta estratégias de contenção,
promulga sanções, instaura políticas protecionistas, que no passado não
consentia aos outros. Será que o Ocidente desconhece estar a humanidade
inteira perante desafios existenciais, que exigem cooperação obrigatória
para termos alguma possibilidade de sucesso? Poderemos contar apenas
com a nossa comprovada declinante imaginação para dar conta da brutal
crise ambiental e climática, das pandemias emergentes, dos riscos de
descontrolo tecnológico, como é o caso da IA ou das biotecnologias?
O
imperialismo civilizador de Kipling desaguou num niilismo cru e nu, que
reprime pela força o direito de todos os povos e indivíduos habitarem a
Terra como sua pátria.
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