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11 de maio de 2021

O Imperialismo com Biden

 

Imperialismo norte-americano

Continuidade estratégica


André Levy



A eleição de Joe Biden para a presidência dos EUA foi recebida por vários líderes políticos na Europa com suspiros de alívio. A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, regozijou-se afirmando que este «novo amanhecer na América é o momento que há muito esperávamos.» Seria o regresso à ‘normalidade’ da diplomacia dos EUA, ao multilateralismo. No seu primeiro discurso presidencial sobre a política internacional dos EUA, Biden proclamou: «A América está de volta. A diplomacia está de volta ao centro da nossa política externa.»

Logo nos primeiros dias, a Administração Biden anunciou alguns passos positivos em termos internacionais, revertendo decisões de Trump, como o regresso à Organização Mundial de Saúde (de importância redobrada considerando a actual pandemia) e ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas; a reentrada dos EUA no Acordo Climático de Paris; e a extensão do tratado New Start com a Rússia. 

No entanto, considerando as posições de Biden ao longo da sua longa carreira política, tudo faria prever a continuação das linhas fundamentais da política externa dos EUA: a defesa da sua hegemonia e interesses no mundo através da pressão diplomática, chantagem e sanções económicas, do apoio a forças golpistas, da ingerência e agressão imperialista, e da guerra. Recorde-se que durante a presidência de Bill Clinton, Biden – então membro da Comissão de Relações Exteriores do Senado – defendeu os bombardeamentos da NATO na Jugoslávia, referindo-se mais tarde à sua influência na política dos Balcãs como «o momento de maior orgulho na sua vida pública». Já sob a presidência de George W. Bush, e como presidente da referida Comissão, Biden apoiou a invasão do Afeganistão e depois o uso de força militar no Iraque, sabendo não existirem quaisquer provas de armas de destruição massiva naquele país. Já como vice-presidente de Barack Obama, Biden declarou que «a NATO fez bem» em atacar a Líbia e assassinar Muammar Kadhafi, concluindo que «neste caso, a América gastou 2 mil milhões de dólares e não perdeu uma única vida. Caminhando para a frente e mais que no passado, este é o modelo de como lidar com o mundo.» Face à Síria, Biden voltou a defender o apoio a forças de oposição (mesmo que reconhecidos braços armados terroristas), ataques militares e mudança de regime. Defensor de longa data da expansão da NATO a leste, Biden foi também o ponta de lança de Obama na Ucrânia, tendo defendido uma acção ‘mais robusta’ dos EUA contra a Rússia após a reintegração da Crimeia. 

Este apanhado de exemplos, mais que ilustrar posicionamentos do novo presidente, demonstra a continuidade estratégica da política externa ‘normal’ dos EUA, transversal aos partidos democrata e republicano, que assenta não nos traços de personalidade de um qualquer líder mas na natureza do sistema imperialista dos EUA. A continuação de gigantescos gastos militares é disso exemplo. Em finais de Março, o Pentágono já dava indicação que o orçamento para 2022 será cerca de 698 mil milhões de dólares, equivalente aos últimos orçamentos de Trump. Os EUA vão também continuar os planos de renovação do seu arsenal nuclear, estando prevista a produção de 600 novos mísseis terrestres até 2070, vinte vezes mais poderosos do que a bomba atómica sobre Hiroshima, um programa que custará 238 mil milhões de dólares. 

O novo Secretário de Defesa, Lloyd Austin III, foi general do exército e chefe do Comando Central dos EUA no Médio Oriente, durante a administração de Obama. À data da nomeação, Austin era também membro do Conselho de Administração da Raytheon, uma das maiores empresas produtoras de armas e também responsável pela tecnologia RIOT de rastreamento de informação no ciberespaço. Aliás, um terço da equipa de transição no Pentágono provém de organizações financiadas pela indústria armamentista, dando continuidade à porta giratória entre o Pentágono e os produtores de armas. 

Alguns exemplos proeminentes incluem Avril Haines – a nova Directora de Inteligência Nacional – e Anthony Blinken – o novo Secretário de Estado. Enquanto vice-directora da CIA sob Obama, Haines foi responsável pelo programa de assassinatos usando drones, contribuindo para normalizar esta táctica. Após sair da Casa Branca trabalhou para a WestExec, empresa fundada por Blinken, que presta consultoria a empresas de armamentos e mercenários por todo o mundo, dos EUA à Arábia Saudita e Israel. 

Blinken é conselheiro de longa data de Biden, tendo estado ao seu lado no Senado e Casa Branca aquando das guerras no Iraque, Líbia e Síria. Em 2020, numa entrevista à CBS, indicou que uma presidência Biden manteria as tropas dos EUA na Síria e via como ’virtualmente impossível’ imaginar a normalização de relações com Assad. A administração Biden não tardou a dar expressão à acção militar na região e sua intenção de prosseguir com a ocupação ilegal de territórios no norte e sul da Síria. Em Fevereiro, a pretexto de ataques contra as suas forças de ocupação no Iraque, Biden mandou bombardear instalações do grupo xiita Kataeb Hezbollah, na Síria, junto à fronteira com o Iraque. Os EUA contam com mais de dez bases e campos militares nas regiões fronteiriças da Síria, a partir das quais os EUA e forças da NATO treinam e dirigem grupos do Isis e das chamadas Forças Democráticas Sírias, grupos terroristas opostos ao governo de Assad. Os ataques de Fevereiro dos EUA foram coordenados com Israel, cujos aviões de guerra atacaram mais uma vez a região de Damasco, numa clara demonstração de alinhamento entre os dois países. O Presidente Biden cedo reafirmou o seu apoio a Israel, e embora tenha indicado oposição verbal à expansão dos colonatos, afirmou que a Embaixada dos EUA irá permanecer em Jerusalém e não será revertido o reconhecimento da soberania de Israel sobre os Montes Golã. 

Os ataques na Síria foram também uma forma adicional de pressão sobre o Irão. Embora Biden tenha admitido regressar ao acordo nuclear multilateral com o Irão (Plano de Acção Integral Conjunto, PAIC), mantém as sanções impostas por Trump. Assinado em 2015 pelo Irão e seis potências mundiais (EUA, Grã-Bretanha, França, Alemanha, China e Rússia), o PAIC impôs limitações ao programa nuclear do Irão em troca do levantamento das sanções internacionais. Alegando – sem provas – que o Irão continuaria a desenvolver armas nucleares, os EUA saíram unilateralmente do acordo em Maio de 2018, e retomaram as sanções unilaterais contra o Irão. Será de estranhar que o Irão tenha recusado o convite para voltar à mesa de negociações, quando os EUA mantêm o mesmo nível de sanções? Wendy Sherman, a principal negociadora dos EUA para o PAIC, e nomeada por Biden para Subsecretária de Estado, admitiu em 2019: «Eu ficaria chocada que o Irão aceitasse uma reunião sem qualquer alívio de sanções.» No entanto, a nova administração optou por vir a jogo com «máxima pressão», colocando «a bola no corte do Irão», exigindo que o Irão demonstre o cumprimento do PAIC. Biden recusa-se até a permitir que o Irão aceda a 7 mil milhões de dólares, detidos em bancos na Coreia do Sul, para comprar material médico e combater o COVID-19, um bloqueio que previamente havia criticado.

A política de sanções irá também prosseguir contra a Venezuela, sanções iniciadas por Obama em 2014 e agravadas por Trump. Biden já reconheceu Juan Guaidó como Presidente da Venezuela e o novo conselheiro de Biden para os assuntos do Hemisfério Ocidental, Juan Gonzalez, caracterizou Nicolás Maduro como «ditador», culpabilizando-o pela fome e pobreza que o país atravessa. Em contraste, a relatora especial da ONU, Alena Douhan, criticou o impacto «devastador» das sanções na economia e população da Venezuela, descrevendo as sanções como uma «violação do direito internacional» e uma «intervenção nos assuntos domésticos da Venezuela», e apelou ao seu levantamento, em particular ao descongelamento de fundos bancários soberanos da Venezuela em bancos dos EUA, Reino Unido e Portugal, permitindo a compra de medicamentos, vacinas,comida e outros bens. Gonzalez descreveu a expansão do Estatuto Temporário de Protecção para cidadãos Venezuelanos nos EUA, aprovada em Março, como fomentando uma «mais robusta resposta internacional à crise humanitária». Na verdade, a medida destinou-se a oferecer condições para que golpistas como Henrique Capriles e Carlos Vecchio tenham presença estável nos EUA para, nas palavras do próprio Vecchio, «trazer mais pessoas, congressistas, senadores e a instituição dos EUA a colocar mais pressão para encontrar uma solução política na Venezuela». 

Em relação a Cuba, Biden prometeu durante a campanha reverter as novas medidas de Trump, regressando às modestas aberturas encetadas por Obama. A Administração Trump aprovou mais de 242 medidas para endurecer as sanções, incluindo o bloqueio de medicamentos e materiais médicos em plena pandemia, e a meros nove dias da saída da Casa Branca adicionou Cuba à lista dos Estados «patrocinadores de terrorismo», juntamente com o Irão, RP da Coreia e Síria. Com a nova administração abria-se a perspectiva de abertura nas remessas financeiras e viagens de familiares dos EUA para Cuba. Mas a Casa Branca já declarou que «uma mudança de política face a Cuba não se encontra actualmente entre as principais prioridades do Presidente Biden, mas estamos comprometidos em fazer que os Direitos Humanos sejam um pilar básico da política dos EUA». Indica com isto que pouco ou nada irá mudar nos próximos tempos, e repete a táctica já antiga de sob o pretexto de direitos humanos dar continuidade às políticas de ingerência e agressão contra os países que não se submetem aos seus ditames.

A administração Biden já usou desta arma de arremesso nas suas relações com a China. Na véspera da cimeira bilateral, no Alaska, em Março, o novo de Departamento de Estado alargou sanções a vários responsáveis políticos chineses e Blinken acusou a China de «usar coerção e agressão para erodir a autonomia de Hong Kong, limitar a democracia em Taiwan, abusar os direitos humanos no Xinjiang e Tibet». No primeiro telefonema entre os presidentes dos dois países, em Fevereiro, Xi Jinping já havia exigido prudência na referência ao que entende serem questões internas da China e relativas à sua soberania e independência nacional. O chefe da delegação diplomática chinesa ao Alaska, Yang Jiechi, respondeu à letra: «Os Estados Unidos usam a sua força militar e a hegemonia financeira para exercerem uma jurisdição extensa e suprimir os outros países. Esperamos que os EUA melhorem em termos de direitos humanos. O facto é que há muitos problemas internos nos EUA em relação a direitos humanos, e que já foram admitidos pelos próprios EUA.» Às sanções sobre responsáveis chineses acrescem as sanções comerciais a produtos chineses, que Biden também pretende continuar e usar como arma de pressão. Face à China, em palavras e acções, os EUA vão abandonando tentativas de estreitamento económico para assumir posturas de confronto.

Antes da cimeira com a China decorreu uma cimeira virtual entre os líderes dos EUA, Japão, Austrália e Índia (o Diálogo Quadrilateral de Segurança, conhecido como Quad), uma aliança avivada por Trump e agora aprofundada por Biden, e vista como eixo da sua estratégia Indo-Pacífica, em particular no Mar do Sul e Mar Oriental. O estreitamento de relações entre estes quatro países foi descrito pelo Conselheiro de Segurança Nacional de Biden, Jake Sullivan, como permitindo abordar a China a partir de uma posição de força. Não é pois surpreendente que diplomatas chineses já tenham descrito esta aliança como a ‘NATO asiática’ ou uma tentativa de construir um ‘muro de Berlim’ contra a China. 

Embora a ascensão económica e militar da China seja uma preocupação crescente dos EUA, não é de esperar que haja um desinvestimento dos EUA na NATO. Por um lado, a aliança atlântica pode vir a ter um papel face à China, por outro a NATO tem ainda um papel relevante face à Rússia e países vizinhos. Numa conferência sobre segurança, em Fevereiro, Biden assegurou que «os EUA estão totalmente comprometidos com a NATO». O fortalecimento da China e a deterioração das relações com a Rússia deverão estar no centro do novo conceito estratégico da NATO, a ser discutido na próxima cimeira ainda este ano.

Após a eleição de Biden, o vice-ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Serguei Riabkov, responsável pelas relações com as Américas e pela não-proliferação de armas, afirmou: «É claro que não esperamos nada de bom. Seria estranho esperar algo de bom de pessoas que, muitas delas, construíram a sua carreira com a russofobia, lançando fel sobre o meu país». Entre eles encontra-se Victoria Nuland, cuja carreira em múltiplas administrações democráticas e republicanas é exemplo da continuidade estratégica dos EUA. Foi sub-directora das relações com as ex-repúblicas soviéticas, sob o Presidente Clinton, quando os EUA abriram as portas NATO para Leste e integraram a Polónia, Hungria e Checoslováquia. Entre 2003-2005 foi conselheira do Vice-Presidente Cheney, contribuindo para espalhar as mentiras sobre armas de destruição massiva que conduziram à guerra no Iraque. Como Subsecretária de Estado para Assuntos Euroasiáticos de Obama, geriu o apoio dos EUA ao ‘levantamentos populares’ contra a Rússia das ‘revoluções coloridas’ na Sérvia (2000), Geórgia (2003), Quirguistão (2005), Bielorrúsia (2006) e depois na Ucrânia (2014). Nuland admitiu que os EUA haviam «investido mais de 5 mil milhões de dólares», incluindo apoio aos partidos fascistas Svoboda e Sector de Direita. Num artigo em meados de 2020, Nuland elegeu a Rússia como uma ameaça crescente ao ‘mundo liberal’ e apela a que Washington e os seus aliados mantenham «orçamentos militares robustos, modernizem os sistemas de armamento nuclear, empreguem novos mísseis convencionais para proteger contra os novos armamentos Russos» e «estabeleçam bases permanentes da NATO na sua fronteira oriental». 

Biden também tem continuado as sanções de Trump contra a Rússia e, a pretexto do ‘caso Navalny’, impôs novas sanções sobre quatro altos funcionários russos, assim como restrições comerciais e de vistos. Em Março, numa entrevista televisiva, quando lhe perguntaram se achava que Vladimir Putin era «um assassino», Biden concordou com a caracterização, acrescentando que Putin «iria pagar» pela alegada interferência da Rússia nas eleições de 2020. Em resposta, a Rússia convocou seu embaixador nos EUA de volta a Moscovo para consultas sobre as relações entre os dois países, alertando para a possibilidade de deterioração irreversível de relações». Putin respondeu aludindo à hipocrisia dos EUA, que há décadas interfere na vida política na Rússia: «Quando caracterizamos outras pessoas, ou mesmo outros estados, é sempre como se estivéssemos a olhar ao espelho». Dias mais tarde, a porta voz da Casa Branca, Jen Psaki, acrescentou que novas sanções e outras acções contra a Rússia virão «nas próximas semanas, não meses» e que «existe um leque de outros instrumentos ao dispor de qualquer presidente, visíveis e não visíveis». 

Este breve e incompleto apanhado de declarações, medidas, e não-medidas da nova Administração dos EUA torna claro que, em termos de relações internacionais, não se perspectivam grandes mudanças. Repete-se o padrão de sanções, acusações, exigências, ingerências e ameaças. A tão louvada ‘normalização’ da diplomacia dos EUA não representa senão a continuação de décadas de colossal investimento militar, com mais de 500 bases militares espalhadas por todos os continentes; uma diplomacia prepotente e hipócrita; e a permanente ameaça de conflito e guerra. Face ao declínio do poder hegemónico dos EUA, no plano económico e militar, e ao ascenso de novas potências como a China e a Rússia, tal estratégia faz antever uma escalada de agressão e novas ameaças à paz.





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