Maj General Carlos Branco
Haverá seguramente melhores oportunidades para lucubrar sobre o tema. Não obstante, não nos devemos esquivar a fazê-lo quanto antes. Apesar de não serem ainda evidentes os termos em que a guerra na Ucrânia irá terminar, o status quo ante não será seguramente a solução final. O futuro desta guerra ditará o futuro da segurança europeia assim como da arquitetura de segurança no velho continente. Em causa está, acima de tudo, o relacionamento da Europa com a Federação Russa (Rússia) e o papel desta nessa arquitetura.Nesse debate deve introduzir-se também a presente incerteza quanto ao futuro da política externa dos EUA e o que isso poderá representar para a dependência da Europa dessa mesma política para a sua segurança. Se é relativamente claro qual será a posição de Washington, caso vença o candidato Donald Trump, começam a surgir algumas pistas sobre o que poderá ser, caso vença Kamala Harris. Dois artigos publicados recentemente na “Foreign Affairs”, a revista do Council on Foreign Relations, habitat da elite norte-americana que se dedica a questões de segurança e defesa, dão-nos algumas indicações sobre a futura política externa norte-americana, ganhe um ou outro candidato.
O primeiro artigo, com o título “A Post-American Europe: It’s Time for Washington to Europeanize NATO and Give Up Responsibility for the Continent’s Security“, da autoria de Justin Logan e Joshua Shifrinson, próximos de Trump, propõe deixar a defesa europeia para os europeus, por ter deixado de ser do interesse norte-americano fazer o trabalho deles, uma vez que têm os recursos económicos e demográficos para tal. Segundo eles, desapareceu o perigo de emergir na Europa um polo de poder hegemónico que possa desafiar o poder americano. A Rússia não representa essa ameaça. Concluindo que “sem nenhum candidato à hegemonia europeia à espreita, já não há necessidade de os Estados Unidos assumirem um papel dominante na região.”
O segundo, com o título “A Foreign Policy for the World as it is“, da autoria do Ben Rhodes, antigo vice Conselheiro para a Segurança Nacional do Presidente Barack Obama, vem propor um afastamento da política externa norte-americana seguida até agora, sugerindo o abandono da ideia da primazia americana. Não procurar recuperar uma hegemonia perdida, mas adaptar-se ao “mundo tal como ele é”, em que os EUA coexistem com as outras potências e não como a potência que precisa de dominar o resto do mundo. Ben Rhodes vai mais longe e chama à atenção para a insanidade de “enquadrar o confronto entre adversários geopolíticos como uma batalha entre democracias e autocracias”, sugerindo que se evite interferir na mudança dos sistemas políticos de outros países.
Apesar de distintas, estas duas abordagens apresentam algumas premissas não muito distantes. A Alemanha, o putativo embrião de um projeto hegemónico no velho continente, isoladamente ou em parceria com a França, está de rastos e tornou-se num Estado vassalo dos EUA, com tendência a aumentar. A Europa não será um polo de poder autónomo, um par entre pares no núcleo restrito das grandes potências. Está condenada a um papel secundário subordinada aos interesses dos EUA, independentemente do presidente que se sentar na Casa Branca.
Apesar dos arrufos e das bravatas do presidente Macron, a situação da França não difere essencialmente da alemã. E com o Reino Unido não se pode contar para colaborar no levantamento de um projeto securitário europeu. Corre sempre em carril próprio. Se os líderes europeus tivessem rasgo poderiam explorar alguma margem de manobra que ainda têm e que poderá aumentar.
Qualquer que venha a ser a futura arquitetura da segurança europeia no pós-guerra na Ucrânia contará sempre com a NATO e a manutenção da relação transatlântica, mas esta última adornada com outros matizes em que os europeus terão de assumir maiores responsabilidades, o que poderá ser interessante para quem fala de autonomia estratégica, mas que até agora não deu passos consistentes para a sua concretização. Os apelos plasmados nos dois últimos conceitos de uma grande estratégia de segurança europeia – a Estratégia Global da União Europeia (UE) e o Compasso estratégico –, que visavam estabelecer um roteiro para converter a UE num ator estratégico chave tiveram uma concretização desprezível.
O debate sobre a segurança na Europa deve ainda incluir a sua dependência de recursos energéticos e de matérias-primas cuja abundância noutras latitudes limita as suas pretensões autonómicas, sobretudo se incluirmos na agenda a ambição de acompanhar a transição energética e industrial em curso. O pensamento europeu em matéria de segurança deverá levar estas dependências em consideração.
O comportamento da Europa em matéria de segurança tem sido irresponsável e contraditório. Ao mesmo tempo que desinvestia em segurança contribuía para o aumento da tensão ao participar na expansão da NATO até às fronteiras da Rússia, dois movimentos de direção oposta, dada a hostilidade da Rússia a esse projeto por não ter em conta as suas preocupações securitárias. Como se não bastasse, o ambiente de elevada volatilidade em que nos encontramos, provocado por uma medida que não interessa à Europa, somos agora confrontados com dirigentes políticos e militares europeus a falar irresponsavelmente na necessidade do continente se preparar para uma guerra contra a Rússia dentro de 3 a 5 anos.
Em oposição a estas tiradas belicistas, a Europa deveria aproveitar os sinais que emergem sobre o pensamento em curso nos EUA e substituir os discursos beligerantes por propostas de cooperação e entendimento. A linguagem belicista que promove jogos de soma nula será prejudicial à Europa, como sempre o foi no passado. A arquitetura securitária europeia que vier a ser desenhada terá necessariamente de incluir a Rússia como um igual. Tratá-la como um ator secundário não será a forma mais correta para se conseguir estabelecer com Moscovo uma relação de coexistência pacífica e de longo prazo.
As ideias atrás avançadas são cruciais para moldar o exercício prospetivo que se propõe fazer. As ferramentas e as instituições existem. Em matéria de possíveis soluções não se está a partir do zero. Pode recorrer-se a fórmulas testadas, algumas delas durante a guerra fria, que apesar de bem-sucedidas foram sendo progressivamente abandonadas. Refiro-me, por exemplo, à recuperação de medidas de construção de confiança, adaptadas às novas circunstâncias, como o Tratado sobre Forças Convencionais na Europa (1990), o Tratado sobre os Céus Abertos (2002), e o Documento de Viena (1990 e atualizações subsequentes).
Falamos de medidas assentes a montante no conceito de Defesa não Ofensiva (non offensive defence), uma forma de defesa dissuasora que exclui a opção de ataque armado contra outros Estados, com origem nos círculos de investigação sobre a paz, intimamente ligado ao conceito de segurança comum e que subverte o argumento realista do dilema de segurança.
A arquitetura a criar será sempre o reflexo do que for a evolução do pensamento norte-americano para a segurança na Europa, e estará sempre ligada à política externa norte-americana e o papel que os EUA vieram a ter no mundo, seja de nação excecional ou de par entre pares. Mas terá sempre de refletir a nova correlação de forças mundial e europeia e considerar a Rússia como um ator de primeira ordem. O facto de isso não ter acontecido no passado teve como consequência o dilema em que a Europa se encontra.
Seria interessante revisitar o conceito de Ostpolitik, independentemente das adaptações de que se possa vir a revestir. Sem virar as costas ao parceiro transatlântico, a UE deveria considerar uma política de reconciliação, o desenvolvimento de uma política realista de coexistência com a Rússia, e o estabelecimento de um pacto de não ingerência na política interna dos Estados, que termine com operações de mudança de regime na vizinhança geoestratégica das grandes potências, promova o controlo de armamento, nomeadamente do nuclear, e o estabelecimento de medidas de verificação.
Fará sentido que os europeus revisitem a proposta russa de 2008, do então presidente Dmitri Medvedev, de um tratado de segurança europeia que tornaria juridicamente vinculativo o princípio da indivisibilidade da segurança e do princípio do não reforço da segurança à custa dos outros, a qual nem sequer obteve resposta dos Estados-membros da Aliança. Essa revisitação não significaria a sua adoção total e completa, mas teria subjacente, de certo modo, o alargamento do conceito da indivisibilidade da segurança vigente no seio da NATO, a um universo mais alargado, em moldes a negociar. Seria no fundo montar um sistema de garantias multilaterais de segurança que até agora só estão disponíveis para os membros de NATO.
Isto implicaria um reforço do papel da Rússia em assuntos de segurança na Europa, que nos parece difícil de contornar, sobretudo se vier a prevalecer no conflito em curso na Ucrânia. A busca dessa solução cooperativa poderia desenvolver-se no seio da OSCE, ajustando-lhe a missão. Seria fácil reativar as moribundas medidas de construção de confiança levadas a cabo no seu seio, onde existe experiência acumulada. Isso teria como resultado o aumento de importância da OSCE na nova arquitetura de segurança europeia.
Uma arquitetura de segurança assente nas ideias acima referidas tornaria a Europa um lugar mais seguro. Dramaticamente, a Europa não tem um pensamento estratégico para a Rússia e não vê para além do ciclo político, independentemente das lideranças que se encontram num determinado momento no Kremlin.
Os europeus terão de perceber de uma vez por todas que terão mais a beneficiar em relacionar-se numa base cooperativa do que com acrimónia. Não aprenderam com o passado. Afinal, vivem no mesmo espaço geográfico e isso não vai alterar-se. A hubris impede-os de ver, como diz Rhodes “o mundo tal como ele é”. A nova correlação de forças mundial terá inevitavelmente de se refletir na futura arquitetura de segurança europeia a criar, goste-se ou não dessa opção. O não entendimento desta realidade terá consequências imprevisíveis para o continente.
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