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21 de setembro de 2024

 Façamos um exercício : se os pagers tivessem rebentado em Israel por obra do Hamas ou do Irão quantos dias as nossas televisões  o estariam a referir com  imagens , notícias e comentários . Quantos dias e mesmo semanas teriam o assunto na ordem do dia ?

A guerra e o mundo acabam de mudar. Não travar Israel vai explodir-nos nas mãos

WAEL HAMZEH/EPA

1. Não sei o que pode explodir entre começar e acabar esta crónica, e escrevo-a mais cedo do que o habitual. Mas sobre terça e quarta-feira — quando milhares de aparelhos explodiram por todo o Líbano (e também na Síria), ferindo milhares de pessoas, muitas com gravidade, e matando mais de 40, incluindo crianças e pessoal médico —, destaco duas coisas.

A primeira é que neste atentado inédito, claramente atribuído a Israel, a guerra acaba de mudar. A guerra de Israel contra os palestinianos, quem os defende e pela anexação de mais território; mas também qualquer guerra, e, portanto, o mundo. Ficou provado, para seja quem for que se inspire nisto, que é possível matar assim, atingindo milhares.

A segunda coisa é que, se as negociações de cessar-fogo têm sido uma farsa, esta nova era já faz parte de um novo género, em que por trás da máscara (por vezes) compungida dos EUA está o Joker israelita a rir, enquanto carrega no botão, e milhares de bombas rebentam em escolas, mercados, hospitais, motas, ruas. Até nos funerais das vítimas da véspera.

Depois, aviões de Israel rugiram sobre uma Beirute em choque, bombardearam o Sul do Líbano. E continuei a ver títulos como: EUA correm a travar escalada da guerra. Será isso na Lua? Em Marte? Ou é mesmo aquela guerra que os americanos continuam a armar? Ao fim de quase um ano, e de nunca se ter visto tanto horror em directo com tanta lata. E tanta troça.

Estamos a assistir à piada diabólica da nossa própria extinção.

Incluindo partes da plateia embasbacadas de admiração pela audácia da Mossad, como li/ouvi a comentadores de serviço. A morte sempre teve serviços eficazes.

2. Referi-me a milhares de feridos. Eram sobretudo membros do Hezbollah, e o líder, Hassan Nasrallah, considerou o atentado “uma declaração de guerra”, prometendo uma resposta “dura”.

Há muitas outras vítimas, porque era impossível prever onde os pagers e walkie-talkies explodiriam, ou nas mãos de quem. Um atentado terrorista, atingindo civis de forma indiscriminada, crime contra a humanidade segundo a lei internacional (e por isso o responsável da diplomacia europeia, Josep Borrell, o condenou).

Mas quero falar do Hezbollah, esse aparentemente arqui-inimigo de Israel. Fui ao Líbano em 2006 (a seguir à guerra com Israel); 2019 (auge da revolta jovem nas ruas); e em 2020 (com as cinzas da explosão no porto). Nas três vezes, visitei os campos onde os palestinianos continuam num limbo escandaloso há décadas, como Sabra e Chatila. Estive no Sul arrasado por Israel, e em Bekaa, bastião Hezbollah. Escrevi sobre isso neste jornal e em livros, não cabe aqui, mas pode ser útil partilhar algo.

O Hezbollah é talvez o maior exército não estatal do mundo. Um movimento xiita, financiado pelo Irão, nascido das redes de apoio aos desamparados xiitas do Líbano no fim dos anos 1970, e fortalecido na invasão israelita de 1982. É longa a lista de países e grupos que têm interferido dramaticamente na vida dos libaneses. Inclui Israel, os EUA, a Arábia Saudita ou a Rússia, tal como a Síria e o Irão. Um dos problemas dos libaneses — e de todos os povos do Médio Oriente, sem excepção — é a forma como as vidas deles não têm o mesmo valor para um Norte Global, chamemos-lhe Ocidente, cujos dirigentes se estão nas tintas, de facto, para haver lá liberdade, ou não. Um Ocidente que elege os seus aliados (por exemplo, a Arábia Saudita) e os seus inimigos (o Irão), como se uns e outros não fossem carrascos dos seus próprios cidadãos, e de outros. Muitos líderes ocidentais alimentam a miséria moral da tirania boa e da tirania má, com puro menosprezo por aqueles povos. Uma forma de racismo ou islamofobia. E escudam-se cobardemente com o Hamas para não condenar Israel. Mas é também pelo que condenam no Hamas que tinham de ser muito mais duros com Israel. Idem quanto a Israel-Hezbollah.

O Hezbollah não é o Hamas (há diferenças relevantes, como o Hamas ser um movimento só nacional). Mas o facto de o Ocidente ter abandonado obscenamente os palestinianos deu força ao Hezbollah, tal como ao Hamas. Claro que o Hezbollah é popular nos campos de refugiados do Líbano. Quem se opõe ao Estado que lhes deu cabo da vida? Não os EUA ou a Europa.

Do ponto de vista do Líbano, o Hezbollah não é alternativa ao sistema, tornou-se também alicerce de um sistema podre. E do ponto de vista regional está numa dança com Israel, vive de Israel tanto quanto Israel vive do Hezbollah. Netanyahu e Nasrallah são o inimigo de que cada um precisa, fortalecem-se mutuamente. Por que haveriam os jovens libaneses de escolher entre eles? Grande parte não escolhe, eu também não.

3. Sabe-se já que o sofisticado atentado dos dias 17-18 de Setembro (um cavalo de Tróia, nas palavras do The New York Times) exigiu preparação de anos, incluindo a Mossad montar uma empresa falsa na Hungria. No Haaretz, Yossi Melman diz que Netanyahu terá antecipado carregar no botão (e ainda plantou umas notícias a dizer que Israel agiu agora porque o Hezbollah estava a descobrir o plano). Explica Melman que o minucioso plano dos pagers seria um ataque-surpresa no contexto de uma guerra, como em 1967, quando Israel destruiu a aviação egípcia, e tomou o Sinai por terra.

Porque é que Netanyahu carregou no botão agora? Para ter mais guerra, fugindo dos mandados de captura, incluindo o do tribunal da ONU: Mister Joker, o seu nome também é Bond. Além de que as habilidades da Mossad reforçam votos (o Likud de Netanyahu continua a ser o mais votado nas sondagens). E enquanto as pessoas, dentro ou fora de Israel, estão entretidas, deixam de chatear Netanyahu com os reféns; a morte em Gaza; o declínio na economia de Israel; o recrutamento de ortodoxos ou de asilados políticos. Ou a guerra de Israel contra a Cisjordânia, onde está em curso a maior destruição dos últimos 20 anos, além da anexação já na prática.

Ao mesmo tempo que os fascistas Ben-Gvir e Smotrich lançam colonos no pátio da Al Aqsa/Monte do Templo, e hordas de colonos queimam, matam, roubam, protegidos pelo Exército. De vez em quando um é sancionado, e pronto. Israel continua a troçar do mundo.

Há pouco mais de 15 dias vi em directo uma hora de Netanyahu para a imprensa estrangeira, mostrando mapas: entre o rio e o mar, não existia a Cisjordânia. Para explicar a nova fábula do Corredor de Filadélfia, existia Gaza, que Bibi garantia que não queria governar. Enquanto os seus aliados pregam o repovoamento de Gaza com judeus. Desta vez, exilando ou espremendo os palestinianos.

Tudo somado, para onde aponta o que tem acontecido desde 7 de Outubro? Para a Grande Israel. Incluindo uma porção do Sul do Líbano.

4. Há sinais de outro futuro, porém. O fogo-de-artifício dos pagers também roubou atenção ao voto histórico na ONU, mas ele aconteceu. Pela primeira vez em 42 anos, uma grande maioria de países (124) votou pelo fim da ocupação ilegal da Palestina, com o prazo de um ano para Israel se retirar. E também pelo embargo de armas e por sanções (de produtos, instituições, academia, etc). Isto, após 50 dias da sentença do Tribunal Internacional de Justiça, que condenou a ocupação, para que os Estados se comprometam com o que este tribunal da ONU decidiu. É sempre interessante ver os 14 votos contra (além de Israel, EUA, mas também Hungria, República Checa), e as 43 abstenções (Reino Unido, Canadá, Áustria, Austrália, Alemanha, Itália, Países Baixos, Índia, Suécia, Suíça, Dinamarca, Ucrânia...).

Portugal votou bem. Espero que quando esta crónica sair o ministro Rangel já tenha feito tudo para retirar a bandeira do navio que transporta munições para Israel, depois de confirmar o que já fora revelado há semanas, e foi mantido à tona com o trabalho de organizações internacionais, partidos e jornalistas.

Porque é que Netanyahu carregou no botão agora? Para ter mais guerra, fugindo dos mandados de captura, incluindo o do tribunal da ONU

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