por Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 11/12/2022
A globalização correu mal, voltemos aos nossos redis! — Este é o ponto da situação da ordem mundial.
A
globalização é uma das causas da guerra na Ucrânia e a sua desmontagem
uma das consequências. O puzzle de um planisfério com as peças ajustadas
e ligadas desfez-se. Esse puzzle finou-se. As peças estão a ajustar-se e
a constituir outros grupos. Começa a surgir um pensamento que reconhece
a necessidade de derrubar os velhos ícones e pensar como sair da
armadilha da globalização. É o caso de uma entrevista de um antigo
banqueiro do Goldman Sachs à revista liberal francesa L’ Express.
O
neoliberalismo resultou do processo de evolução do globalismo. As novas
tecnologias e a implosão da União Soviética criaram no Ocidente ilusões
sobre a possibilidade de êxito do imperialismo como fase superior do
capitalismo, a tese de Lenine, de consolidação de um imperialismo global
e mundial com uma moeda, um exército, uma língua, um centro a dominar
uma constelação de colónias.
O
neoliberalismo teve uma época primordial, a de Frederich HayecK, da
Escola Austríaca do «Individualismo e Ordem Económica», seguida da
operação de sucesso da escola de Chicago, de Milton Friedman e os
Chicago Boys, que utilizou o Chile de Pinochet como laboratório, tendo
Ronald Reagan e Margareth Tatcher como promotores políticos e o papa
João Paulo II como caucionador moral. A época de glória!
O
neoliberalismo como filosofia assenta no individualismo — não existe
sociedade, mas indivíduos — a conhecida definição de Margareth Tatcher;
nos resultados financeiros como único elemento de avaliação das
atividades económicos — o lucro a todo o custo e sem qualquer requisito
de ética (e até de senso); e na globalização — o universo como um
mercado.
O neoliberalismo
produziu um conceito: O fim da História! (titulo de uma obra de
Fukuyama). A leitura preconceituosa da História decretou a morte do
socialismo com a implosão da União Soviética, que afinal nada mais era
do que o regime de uma superpotência militar concorrente dos EUA, e o
mundo neoliberal descobriu o seu casal bíblico resgatado da maldade do
socialismo: Reagan e Tatcher, que substituíram não já Adão e Eva, mas
Noé e a mulher Noéma, os justos da sua geração que iriam refundar a
humanidade após o dilúvio. Tratava-se de mais uma versão do milenarismo
que é recorrente na História ocidental e no islamismo.
A
globalização, com a admissão da China na Organização Mundial do
Comércio (2001), passou a constituir a resposta para todas as questões.
Com a globalização não haveria mais questões. As empresas de trabalho
intensivo europeias e americanas deslocalizaram-se para espaços de
baixos custos de produção (China e Ásia), conseguidos através do
trabalho quase-escravo, de desrespeito absoluto por direitos humanos e
de desprezo por consequências ambientais.
O
neoliberalismo, na realidade um neoimperalismo, assentou em três
fatores: globalização (o planeta como um mercado e os humanos como
consumidores); domínio das fontes de energia e de matérias-primas
através de um exército imperial (o dos Estados Unidos); a imposição de
uma moeda de troca universal, o dólar, com um valor determinado pelo seu
emissor. Era o Fim da História! Uma gigantesca operação de manipulação
das consciências foi desenvolvida para impingir a nova verdade.
As
redes de televisão, os satélites, a publicidade, as plataformas
digitais, encarregaram-se de difundir o que corresponde a duas das mais
determinantes mensagens do pensamento ocidental, uma vinda do Antigo
Testamento: o discurso de Moisés aos judeus depois de ter recebido a
tábua dos mandamentos no Monte Sinai, e outra já do Novo Testamento
cristão, do Sermão da Montanha, de Cristo aos “simples e pobres de
espirito.” Um Deus único, uma lei única, um paraíso para os crentes e
obedientes: os mansos do sermão.
O
picante da proclamação do filósofo Francis Fukuyama é que ele pode ter
tido razão quanto ao fim da História, mas não pela causa que aponta: a
humanidade haver chegado ao ponto em que, como as águas de um longo rio
após um percurso acidentado, as suas tentativas para encontrar a
satisfação haverem desaguado no lago final das democracias liberais, mas
sim porque a humanidade se encarregou de destruir o frágil equilíbrio
dos quatros elementos definidos pelos antigos gregos — a Terra, a Água, o
Fogo e o Ar — que lhe permitia viver. O fim da História por suicídio da
humanidade! (E andam uns excitados a discutir a eutanásia e o direito
ao aborto, dois direitos individuais!)
Na
realidade basta escutar um homem tão sereno, crente na bondade humana e
na providência divina como António Guterres, o secretário-geral da ONU,
sobre a reduzida esperança de vida humana no planeta como resultado da
sobrexploração dos recursos para obtenção de lucros custe o que custar.
O
fim da História pode ser o fim da humanidade como a conhecemos, morta
às mãos dos seus seres, de fome, de sede, queimados numa explosão
nuclear ou sufocados pela poluição. Mortos às mãos dos que entendem que
cada individuo apenas tem como objetivo a sua riqueza e está liberto de
responsabilidades sociais. Salve-se quem puder! Os mais fortes vencerão,
a lógica suicida do neoliberalismo.
Perante
a evidência da catástrofe, os sacerdotes neoliberais têm vindo a
apresentar duas linhas de fuga para os seus clientes privados. Uma
representada por Elon Musk e os neocons americanos, que recorrem às
possibilidades tecnológicas para garantir a sua sobrevivência durante o
inevitável e previsível tempo do caos (que eles causaram), seja
construindo abrigos com vida autónoma, ou de fuga para outros planetas. A
outra saída defendida pelos liberais europeus mais esclarecidos, que
defendem uma “desmundialização” ou “desglobalização”. Reconhecem que
“Isto deu errado!”
É o
ponto de vista de Thomas Friedberger, antigo diretor do banco Goldman
Sachs, a instituição que tem empregado a elite dos cardeais do
neoliberalismo. Thomas Friedberger concedeu uma entrevista ao semanário
francês liberal «L’ Express» (10/12/22) onde afirma: «É necessário
refundar um capitalismo mundializado que até aqui tem suscitado
demasiadas angústias e sofrimentos.»
A
esta refundação ele deu o nome de “remundialização”, que tem já um novo
Graal com uma apelativa sigla promocional: “ESG” (preocupações
ambientais — Environement, Sociais e de bom governo — Governance). Para
que os especuladores das oligarquias não se assustem, o antigo banqueiro
afirma que estas novas preocupações não visam somente preservar o
ambiente e promover o bem-estar humano, a sua finalidade é assegurar os
melhores retornos financeiros a longo prazo num mundo inflacionista e
tendencialmente “desmundializado”.
Estamos,
pois, já muito afastados da doutrina predadora de Milton Friedman
(Prémio Nobel da Economia 1976), para quem a “responsabilidade social”
era um custo e tinha um impacto negativo nos resultados das sacrossantas
empresas. A História não acabou e as preocupações com o ambiente e as
reações sociais passaram a ser um fator importante nas decisões dos
investidores.
A nova vaga
de neoliberais europeus, aqui representada por Thomas Friedberger,
chegou finalmente à conclusão de que a busca do crescimento infinito se
tornou disfuncional a ponto de ameaçar a vida humana no planeta. «Este
modelo — esta doutrina — degradou a biodiversidade, o clima, acentuou
desigualdades e criou bolhas de mau emprego do capital (crise do
subprime)». Ele prevê que os próximos 20 anos serão de
“desglobalização”, de um processo semelhante ao que ocorreu na Europa
das sociedades mais desenvolvidas com a Reforma Protestante do século
XVI para salvar o essencial de uma religião ao serviço da luxúria dos
papas de Roma, ver aqui.
«Critérios
extra-financeiros serão determinantes na decisão de performances
financeiras. Este novo modelo de capitalismo passa pela criação de
ecossistemas localizados, da recolocação da produção de bens e serviços
próximos do consumidor, da tributação nos países onde as empresas
exercem as suas atividades. » Garante o antigo banqueiro e ainda: «A
imposição do PIB como único indicador económico e de desenvolvimento é
apenas um truque que permite ao atual sistema de ditadura do lucro sem
qualquer preocupação social se perpetuar.»
Será,
ao que parece, num mundo “desglobalizado” que as próximas gerações vão
viver. Num mundo com vários polos de poder, várias moedas de troca, com
múltiplos conflitos, desregulado, atomizado, com o reforço de
nacionalismos, de muros e barreiras, de deliberadas incompatibilidades
tecnológicas. O Ocidente deu o pontapé de saída para esta nova era. E
deu-o deliberada e conscientemente. “Isto” não começou com a traiçoeira
invasão da Ucrânia pela Rússia!
A
guerra na Ucrânia, independentemente do que for acordado para o fim das
ações militares, marcou a inevitabilidade deste novo modelo de
organização planetária, de vários blocos em tensão e competição. Os
tristes líderes da União Europeia e os mordomos ingleses optaram por
fazer do continente Europeu um beco americano, entre os velhos e novos
bairros que se estão a organizar no planeta, levantando muros dentro dos
quais cada grupo procurará abrigo ,
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