Os Fundos Comunitários e a perda de soberania nacional
José Alberto Lourenço
Economista
Agora que um novo quadro financeiro plurianual para o período 2021-2027 e um quadro específico extraordinário para apoio à recuperação das economias europeias da actual crise pandémica foram aprovados, e no momento em que o quadro comunitário Portugal 2020 está a terminar, vale a pena fazermos um balanço dos impactos dos fundos comunitários sobre a nossa economia.
Com a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1 de Janeiro de 1986 Portugal passou a ter acesso a apoios financeiros ao desenvolvimento dos países e regiões menos desenvolvidas de território europeu.
Nos últimos trinta e quatro anos o nosso país beneficiou de um período inicial de três anos de apoio a projectos individuais (1986-1988) apresentados aos três Fundos Estruturais (FEDER, FSE e FEOGA) e de uma linha orçamental específica do Programa Específico de Desenvolvimento da Indústria Portuguesa (PEDIP) e de cinco períodos de programação plurianual dos Fundos Estruturais: os três quadros comunitários de apoio (QCA I – 1989-1993; QCA II – 1994-1999; QCA III – 2000-2006), o Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN 2007-2013) e o Acordo de Parceria (Portugal 2020 – 2014-2020).
Nestes anos o nosso país recebeu da Comunidade Europeia 117 mil milhões de euros, a preços correntes, de apoios em fundos comunitários e contribuiu para a mesma Comunidade Europeia com 45 mil milhões de euros. Em termos líquidos Portugal beneficiou, desde 1986, de 72 mil milhões de euros para apoio ao investimento, o que representou anualmente um apoio equivalente a cerca de 1,6% do PIB e 7,5% do Investimento Total.
Se é verdade que o nosso país beneficiou destes fundos comunitários nas últimas três décadas, com o objectivo expresso de incentivar a coesão económica, social e territorial no espaço europeu, é agora importante que analisemos os seus impactos macroeconómicos quer na evolução do investimento, público e privado, do PIB, do emprego, da estrutura produtiva nacional, da nossa balança corrente e em particular da balança de rendimentos.
Em suma, trinta e quatro anos depois da nossa adesão à CEE e criação do Mercado Único, vinte oito anos depois da assinatura do Tratado de Maastricht e da criação da União Económica e Monetária e vinte e dois anos após a criação do Euro, até que ponto os milhares de milhões de euros de apoios financeiros recebidos de fundos comunitários contribuíram para a resolução dos nossos crónicos défices estruturais, para o nosso desenvolvimento e a nossa coesão económica e social, ou foram apenas uma contrapartida pela soberania nacional que paulatinamente nos foram retirando de tratado em tratado?
A convergência real entre os países da União Europeia, para cujo objectivo aos fundos comunitários estaria reservado um papel fundamental, três décadas depois não é mais do que uma miragem.
A análise da evolução do nível de rendimento per capita em paridades de poder de compra (PPS) em Portugal, comparativamente à média da União Europeia, mostra que não houve convergência real da economia portuguesa nos últimos vinte e cinco anos, como mostram os dados do Eurostat, apenas disponíveis para a comparação entre os países da União Europeia a 27 para o período posterior a 1995.
Se em 1995 o nosso PIB per capita em paridades de poder de compra se situava 19 pontos percentuais abaixo do valor médio da União Europeia a 27, em 2019 esse mesmo indicador é ainda mais baixo situando-se 22 pontos percentuais abaixo.
A criação da União Económica e Monetária e a adesão ao Euro, apresentadas como instrumentos destinados a facilitar as trocas comerciais dentro da União Europeia e que trariam desenvolvimento ao nosso país, representaram um passo gigante no nosso processo de integração capitalista, e fizeram com que Portugal seja hoje um país mais pobre, desigual e dependente e que, em vez de convergir, divirja da União Europeia.
Muitos outros indicadores ajudam a mostrar esta triste realidade com que nos confrontamos após a adesão à CEE e Mercado Único, agravada pela posterior participação na UEM e pela adesão ao Euro.
Portugal neste período passou de um dos países da Zona Euro com maior peso do investimento no PIB para um dos países em que esse rácio é mais baixo. Se na década de oitenta ele representava cerca de 29%, a sua queda contínua nas décadas seguintes faz com que na segunda década do século XXI esse peso ronde os 16,5%. Desde a adesão à CEE o peso do investimento no PIB caiu para quase metade. Só o Chipre e a Grécia registaram neste período quedas do investimento superiores à nossa.
Nos últimos vinte anos o PIB praticamente estagnou (crescemos a uma taxa média anual de 1% entre 1999 e 2019) e em particular desde a entrada em circulação da moeda única em 2002, crescemos à taxa média anual de 0,7%. Neste período Portugal cresceu muito menos do que o resto dos países da Zona Euro e em vez de convergir, divergiu.
A queda no investimento e estagnação na evolução do PIB são o reflexo da fragilização registada no nosso aparelho produtivo, que conheceu uma clara terciarização. Sectores eminentemente produtivos, o sector primário (agricultura, silvicultura e pesca) e dentro do sector secundário, a indústria, viram a sua produção estagnar em termos reais nas últimas décadas, com o VAB da Agricultura, Silvicultura e Pesca e da Indústria a crescerem apenas 0,5% ao ano, metade do muito pouco que cresceu o PIB anual neste período.
Desde que aderimos ao Euro o peso da Agricultura no PIB caiu de 3,8% em 1999 para apenas 2,4% em 2019 e a Indústria de 18,5% para 13,8%, ao mesmo tempo que o sector terciário, que representava 67,6% do PIB, é hoje responsável por ¾ do PIB nacional. Para a terciarização da nossa economia muito contribuiu o forte crescimento das actividades turísticas, que representam agora cerca de 11,3% do PIB e a actividade imobiliária que atinge os 12,2%. Sendo claro que se o crescimento do sector do turismo pode ter tido um impacto positivo sobre o emprego e o consumo de produção nacional, já o crescimento das actividades imobiliárias, financeiras e serviços de empresas resultou em muitos casos do desenvolvimento de actividades especulativas e da externalização e precarização de muitas das funções até agora desenvolvidas no interior das empresas.
A fragilização do nosso aparelho produtivo reflectiu-se na nossa balança de mercadorias de tal forma que se em 1999 as importações do sector agrícola tinham um peso relativo equivalente a 31% da produção nacional deste sector, de acordo com o INE em 2017 elas já representam o equivalente a 43% dessa produção. Mas se é assim na Agricultura, na Indústria Transformadora a situação é ainda muito mais grave, já que em 1999 as importações representavam 55% da produção da Indústria Transformadora e em 2017 elas representam já 65% da sua produção. Dos 13 subsectores que constituem a nossa indústria transformadora, em seis deles as importações superam já a produção base (representam já mais de 100% da produção nacional). São esses subsectores: os produtos farmacêuticos de base e preparações farmacêuticas, os equipamentos informáticos e produtos electrónicos e ópticos, as máquinas e equipamentos, o equipamento de transporte, os produtos químicos e as máquinas e equipamentos. Os subsectores que contribuem com maior valor acrescentado para a nossa indústria transformadora acabam por ser aqueles que menos dependem relativamente das importações.
5. A nossa dependência das importações espelha-se também na composição das componentes da Procura Final – Consumo Privado, Consumo Público, Investimento, Exportações e PIB –, cada vez mais dependentes da produção importada.
5.1. Por cada euro consumido por uma família, 23 cêntimos correspondem a aumento das importações e 77 cêntimos acréscimo do PIB;
5.2. Por cada euro consumido pelo Estado, 10 cêntimos são acréscimo de importações e 90 cêntimos aumento do PIB;
5.3. Por cada euro investido por uma Empresa, Estado ou Família, 37 cêntimos correspondem a acréscimo de importações e 63 cêntimos acréscimo do PIB;
Cada euro de acréscimo de exportações traduz-se na necessidade de acréscimo das importações em 44 cêntimos e de acréscimo do PIB em 56 cêntimos.
6. Exportações e Investimento são as componentes da nossa Procura Final que mais dependem das Importações.
7. Para agravar ainda mais a situação do nosso aparelho produtivo, a crise do sector imobiliário, aliada aos cortes cegos nos investimentos públicos, fizeram com que o sector da construção caísse 50% neste período.
Só os chamados sectores não produtivos e não transaccionáveis, em particular o comércio – as redes da grande distribuição –, alojamento e restauração e o sector financeiro e segurador tiveram contributos positivos para o crescimento do PIB.
O baixo crescimento económico, a estagnação e a recessão que vivemos nos últimos 21 anos, acompanhados pela destruição de muito do nosso aparelho produtivo, tiveram um duro impacto na evolução do emprego, do desemprego e da emigração. Foi assim que Portugal viu neste período reduzir-se o emprego em mais de 100 mil postos de trabalho, o desemprego quase duplicar e a emigração só desde 2011 até 2015 atingir cerca de 600 mil portugueses.
A perda de soberania do nosso país, para a qual a adesão à CEE/União Europeia e em particular a liberalização da circulação de capitais muito contribuíram, conheceu com a adesão à UEM e ao Euro um nível nunca antes visto.
A partir de 1999 o processo de privatizações, iniciado formalmente dez anos antes com o Governo de Cavaco Silva, conheceu uma nova e decisiva fase na qual empresas estratégicas do nosso país, alguns monopólios naturais, passaram integralmente para as mãos do grande capital privado fundamentalmente estrangeiro. Foi assim que nos últimos 18 anos, a Siderurgia Nacional, a Quimigal, a Cimpor, a Soporcel, a Portucel, a Portugal Telecom, a Galp, a Brisa, a EDP, a REN, a Fidelidade e a ANA , viram o seu processo de alienação integral concluído. E foi assim que na sequência da crise financeira de 2007/2008 e após a injecção de milhares de milhões de euros no nosso sector financeiro, com excepção da CGD, ele está hoje nas mãos da banca espanhola e nas mãos de um fundo abutre, a Lone Star.
Ao mesmo tempo que o processo de privatizações acelerava, a livre circulação de capitais a adesão à UEM e ao Euro permitiram que o número de filiais de empresas estrangeiras nas últimas décadas crescesse a ritmo muito elevado. Se em 2007 existiam em Portugal 5075 filiais de empresas estrangeiras, no último ano esse número era de 8275, empregando cerca de 553 mil trabalhadores, o que representa 17% do pessoal ao serviço das sociedades não financeiras. Estas filiais de empresas estrangeiras, de acordo com os últimos dados, são responsáveis por 40% do total das nossas exportações de bens, representam 26,3% do VAB do total do sector empresarial e 75% deste VAB gerado por filiais de empresas estrangeiras diz respeito a sociedades de entidades sediadas em países da União Europeia. A presença de capital estrangeiro, que domina ainda mais de 50% das grandes empresas, estende-se muito para lá da titularidade directa, designadamente com a integração de muitas delas nas cadeias de valor de transnacionais; a subcontratração; a presença de fundos de investimento, como a BlackRock (o maior grupo financeiro mundial com posições em seis das grandes empresas do PSI-20).
O reverso da medalha da liberalização da circulação de capitais, da criação da UEM e da adesão ao Euro, reflecte-se no cada vez maior saldo negativo da nossa balança de rendimentos primários, que espelha fundamentalmente os lucros e dividendos e juros que os investidores privados estrangeiros arrecadam anualmente e que transferem para os seus países – entre 1997 e 2020 o saldo negativo desta balança foi em média de 3,3 mil milhões de euros/ano (1,6% do PIB em 2019).
Se em termos líquidos, como é dito no início, Portugal recebeu da União Europeia, desde 1986, cerca de 72 mil milhões de euros de apoios em fundos comunitários, também em termos líquidos o nosso país viu sair, em parte desse período para o qual há informação do Banco de Portugal, entre 1995 e 2019, de lucros distribuídos, dividendos e juros cerca de 104,5 mil milhões de euros. É este o resultado das centenas de operações de privatização que três anos depois da nossa adesão à CEE tiveram o seu início e que colocaram em mãos estrangeiras a maioria do capital dos nossos grandes grupos económicos e financeiros e que agora se reflecte na cada vez maior saída de dividendos e lucros distribuídos e juros, neste caso como resultado do endividamento do nosso sistema financeiro.
É neste contexto de uma crescente perda de soberania, resultante não apenas das implicações directas da adesão à UEM e ao Euro mas também de opções de política económica e em particular no condicionamento da política orçamental (PEC, Pacto Orçamental, etc.) com graves consequências no investimento no plano nacional e ao longo dos vários anos, opções que em vez de servirem as necessidades do povo e do país satisfizeram interesses privados nacionais e internacionais, que se discutiu uma vez mais um novo Quadro Financeiro Plurianual, desta vez reforçado com medidas extraordinárias para apoio à recuperação das economias europeias afectadas pela actual crise pandémica.
Se é verdade, e como tem sido dito, que Portugal nos anos mais próximos vai receber da União Europeia muito dinheiro, o que é bem perceptível na movimentação dos representantes dos grandes interesses económicos, nomeadamente das grandes confederações patronais, é importante que se perceba que a dimensão da crise que vivemos não tem precedentes pela sua dimensão económica e sanitária e que se quisermos minimizar os seus impactos vai ser necessário muito investimento público. Muito mais do que tem sido realizado nos últimos anos e basta comparar esse nível de investimento com a média comunitária dos últimos anos para verificarmos que os 15,3 mil milhões de euros previstos pelo Fundo de Recuperação e Resiliência para Portugal não chegam para compensar o muito pouco que se investiu nestes anos. Desde 2012 até 2019 a redução do investimento público foi tal que o montante de entrada de fundos comunitários foi superior à totalidade do investimento público. Não existem elementos para aferir com rigor qual o montante de fundos comunitários que é absorvido pelo investimento público, mas não há dúvida de que o investimento público nos últimos anos se reduziu, na sua quase totalidade, ao mínimo indispensável para complementar a entrada de fundos comunitários.
É, pois, importante que esse dinheiro para investimento público chegue e venha liberto de quaisquer formas de condicionalidade económica e política que pretendam interferir em decisões soberanas dos Estados, designadamente ao nível das opções, programação e execução dos fundos.
É ainda mais importante que sejam adoptadas medidas que garantam que as verbas a mobilizar nos próximos anos sejam colocadas ao serviço da valorização do trabalho e dos trabalhadores, da defesa e promoção da produção nacional, da recuperação para o sector público dos sectores básicos e estratégicos da economia, da garantia de uma administração e serviços públicos ao serviço do povo e do país e do desenvolvimento soberano de Portugal.
Só a afirmação de uma política soberana, que faça prevalecer os interesses dos trabalhadores e do povo português sobre as imposições e constrangimentos que emanam da UE, pode responder adequadamente às necessidades com que o país se confronta.
Sem comentários:
Enviar um comentário