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16 de abril de 2021

A propósito da «bazuca»

Os Fundos Comunitários e a perda de soberania nacional


José Alberto Lourenço

Economista


Agora que um novo quadro financeiro plurianual para o período 2021-2027 e um quadro específico extraordinário para apoio à recuperação das economias europeias da actual crise pandémica foram aprovados, e no momento em que o quadro comunitário Portugal 2020 está a terminar, vale a pena fazermos um balanço dos impactos dos fundos comunitários sobre a nossa economia.

Com a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1 de Janeiro de 1986 Portugal passou a ter acesso a apoios financeiros ao desenvolvimento dos países e regiões menos desenvolvidas de território europeu.

Nos últimos trinta e quatro anos o nosso país beneficiou de um período inicial de três anos de apoio a projectos individuais (1986-1988) apresentados aos três Fundos Estruturais (FEDER, FSE e FEOGA) e de uma linha orçamental específica do Programa Específico de Desenvolvimento da Indústria Portuguesa (PEDIP) e de cinco períodos de programação plurianual dos Fundos Estruturais: os três quadros comunitários de apoio (QCA I – 1989-1993; QCA II – 1994-1999; QCA III – 2000-2006), o Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN 2007-2013) e o Acordo de Parceria (Portugal 2020 – 2014-2020). 

Nestes anos o nosso país recebeu da Comunidade Europeia 117 mil milhões de euros, a preços correntes, de apoios em fundos comunitários e contribuiu para a mesma Comunidade Europeia com 45 mil milhões de euros. Em termos líquidos Portugal beneficiou, desde 1986, de 72 mil milhões de euros para apoio ao investimento, o que representou anualmente um apoio equivalente a cerca de 1,6% do PIB e 7,5% do Investimento Total.

Se é verdade que o nosso país beneficiou destes fundos comunitários nas últimas três décadas, com o objectivo expresso de incentivar a coesão económica, social e territorial no espaço europeu, é agora importante que analisemos os seus impactos macroeconómicos quer na evolução do investimento, público e privado, do PIB, do emprego, da estrutura produtiva nacional, da nossa balança corrente e em particular da balança de rendimentos.

Em suma, trinta e quatro anos depois da nossa adesão à CEE e criação do Mercado Único, vinte oito anos depois da assinatura do Tratado de Maastricht e da criação da União Económica e Monetária e vinte e dois anos após a criação do Euro, até que ponto os milhares de milhões de euros de apoios financeiros recebidos de fundos comunitários contribuíram para a resolução dos nossos crónicos défices estruturais, para o nosso desenvolvimento e a nossa coesão económica e social, ou foram apenas uma contrapartida pela soberania nacional que paulatinamente nos foram retirando de tratado em tratado?

A convergência real entre os países da União Europeia, para cujo objectivo aos fundos comunitários estaria reservado um papel fundamental, três décadas depois não é mais do que uma miragem.

A análise da evolução do nível de rendimento per capita em paridades de poder de compra (PPS) em Portugal, comparativamente à média da União Europeia, mostra que não houve convergência real da economia portuguesa nos últimos vinte e cinco anos, como mostram os dados do Eurostat, apenas disponíveis para a comparação entre os países da União Europeia a 27 para o período posterior a 1995.

Se em 1995 o nosso PIB per capita em paridades de poder de compra se situava 19 pontos percentuais abaixo do valor médio da União Europeia a 27, em 2019 esse mesmo indicador é ainda mais baixo situando-se 22 pontos percentuais abaixo.

A criação da União Económica e Monetária e a adesão ao Euro, apresentadas como instrumentos destinados a facilitar as trocas comerciais dentro da União Europeia e que trariam desenvolvimento ao nosso país, representaram um passo gigante no nosso processo de integração capitalista, e fizeram com que Portugal seja hoje um país mais pobre, desigual e dependente e que, em vez de convergir, divirja da União Europeia.

Muitos outros indicadores ajudam a mostrar esta triste realidade com que nos confrontamos após a adesão à CEE e Mercado Único, agravada pela posterior participação na UEM e pela adesão ao Euro.


  1. Portugal neste período passou de um dos países da Zona Euro com maior peso do investimento no PIB para um dos países em que esse rácio é mais baixo. Se na década de oitenta ele representava cerca de 29%, a sua queda contínua nas décadas seguintes faz com que na segunda década do século XXI esse peso ronde os 16,5%. Desde a adesão à CEE o peso do investimento no PIB caiu para quase metade. Só o Chipre e a Grécia registaram neste período quedas do investimento superiores à nossa.


  1. Nos últimos vinte anos o PIB praticamente estagnou (crescemos a uma taxa média anual de 1% entre 1999 e 2019) e em particular desde a entrada em circulação da moeda única em 2002, crescemos à taxa média anual de 0,7%. Neste período Portugal cresceu muito menos do que o resto dos países da Zona Euro e em vez de convergir, divergiu. 


  1. A queda no investimento e estagnação na evolução do PIB são o reflexo da fragilização registada no nosso aparelho produtivo, que conheceu uma clara terciarização. Sectores eminentemente produtivos, o sector primário (agricultura, silvicultura e pesca) e dentro do sector secundário, a indústria, viram a sua produção estagnar em termos reais nas últimas décadas, com o VAB da Agricultura, Silvicultura e Pesca e da Indústria a crescerem apenas 0,5% ao ano, metade do muito pouco que cresceu o PIB anual neste período.  

Desde que aderimos ao Euro o peso da Agricultura no PIB caiu de 3,8% em 1999 para apenas 2,4% em 2019 e a Indústria de 18,5% para 13,8%, ao mesmo tempo que o sector terciário, que representava 67,6% do PIB, é hoje responsável por ¾ do PIB nacional. Para a terciarização da nossa economia muito contribuiu o forte crescimento das actividades turísticas, que representam agora cerca de 11,3% do PIB e a actividade imobiliária que atinge os 12,2%. Sendo claro que se o crescimento do sector do turismo pode ter tido um impacto positivo sobre o emprego e o consumo de produção nacional, já o crescimento das actividades imobiliárias, financeiras e serviços de empresas resultou em muitos casos do desenvolvimento de actividades especulativas e da externalização e precarização de muitas das funções até agora desenvolvidas no interior das empresas.

  1. A fragilização do nosso aparelho produtivo reflectiu-se na nossa balança de mercadorias de tal forma que se em 1999 as importações do sector agrícola tinham um peso relativo equivalente a 31% da produção nacional deste sector, de acordo com o INE em 2017 elas já representam o equivalente a 43% dessa produção. Mas se é assim na Agricultura, na Indústria Transformadora a situação é ainda muito mais grave, já que em 1999 as importações representavam 55% da produção da Indústria Transformadora e em 2017 elas representam já 65% da sua produção. Dos 13 subsectores que constituem a nossa indústria transformadora, em seis deles as importações superam já a produção base (representam já mais de 100% da produção nacional). São esses subsectores: os produtos farmacêuticos de base e preparações farmacêuticas, os equipamentos informáticos e produtos electrónicos e ópticos, as máquinas e equipamentos, o equipamento de transporte, os produtos químicos e as máquinas e equipamentos. Os subsectores que contribuem com maior valor acrescentado para a nossa indústria transformadora acabam por ser aqueles que menos dependem relativamente das importações.

5. A nossa dependência das importações espelha-se também na composição das componentes da Procura Final – Consumo Privado, Consumo Público, Investimento, Exportações e PIB –, cada vez mais dependentes da produção importada.

5.1. Por cada euro consumido por uma família, 23 cêntimos correspondem a aumento das importações e 77 cêntimos acréscimo do PIB;

5.2. Por cada euro consumido pelo Estado, 10 cêntimos são acréscimo de importações e 90 cêntimos aumento do PIB;

5.3. Por cada euro investido por uma Empresa, Estado ou Família, 37 cêntimos correspondem a acréscimo de importações e 63 cêntimos acréscimo do PIB;

  1. Cada euro de acréscimo de exportações traduz-se na necessidade de acréscimo das importações em 44 cêntimos e de acréscimo do PIB em 56 cêntimos.

6. Exportações e Investimento são as componentes da nossa Procura Final que mais dependem das Importações.

7. Para agravar ainda mais a situação do nosso aparelho produtivo, a crise do sector imobiliário, aliada aos cortes cegos nos investimentos públicos, fizeram com que o sector da construção caísse 50% neste período.

Só os chamados sectores não produtivos e não transaccionáveis, em particular o comércio – as redes da grande distribuição –, alojamento e restauração e o sector financeiro e segurador tiveram contributos positivos para o crescimento do PIB.

O baixo crescimento económico, a estagnação e a recessão que vivemos nos últimos 21 anos, acompanhados pela destruição de muito do nosso aparelho produtivo, tiveram um duro impacto na evolução do emprego, do desemprego e da emigração. Foi assim que Portugal viu neste período reduzir-se o emprego em mais de 100 mil postos de trabalho, o desemprego quase duplicar e a emigração só desde 2011 até 2015 atingir cerca de 600 mil portugueses. 

A perda de soberania do nosso país, para a qual a adesão à CEE/União Europeia e em particular a liberalização da circulação de capitais muito contribuíram, conheceu com a adesão à UEM e ao Euro um nível nunca antes visto.

A partir de 1999 o processo de privatizações, iniciado formalmente dez anos antes com o Governo de Cavaco Silva, conheceu uma nova e decisiva fase na qual empresas estratégicas do nosso país, alguns monopólios naturais,  passaram integralmente para as mãos do grande capital privado fundamentalmente estrangeiro. Foi assim que nos últimos 18 anos, a Siderurgia Nacional, a Quimigal, a Cimpor, a Soporcel, a Portucel, a Portugal Telecom, a Galp, a Brisa, a EDP, a REN, a Fidelidade e a ANA , viram o seu processo de alienação integral concluído. E foi assim que na sequência da crise financeira de 2007/2008 e após a injecção de milhares de milhões de euros no nosso sector financeiro, com excepção da CGD, ele está hoje nas mãos da banca espanhola e nas mãos de um fundo abutre, a Lone Star.

Ao mesmo tempo que o processo de privatizações acelerava, a livre circulação de capitais a adesão à UEM e ao Euro permitiram que o número de filiais de empresas estrangeiras nas últimas décadas crescesse a ritmo muito elevado. Se em 2007 existiam em Portugal 5075 filiais de empresas estrangeiras, no último ano esse número era de 8275, empregando cerca de 553 mil trabalhadores, o que representa 17% do pessoal ao serviço das sociedades não financeiras. Estas filiais de empresas estrangeiras, de acordo com os últimos dados, são responsáveis por 40% do total das nossas exportações de bens, representam 26,3% do VAB do total do sector empresarial e 75% deste VAB gerado por filiais de empresas estrangeiras diz respeito a sociedades de entidades sediadas em países da União Europeia. A presença de capital estrangeiro, que domina ainda mais de 50% das grandes empresas, estende-se muito para lá da titularidade directa, designadamente com a integração de muitas delas nas cadeias de valor de transnacionais; a subcontratração; a presença de fundos de investimento, como a BlackRock (o maior grupo financeiro mundial com posições em seis das grandes empresas do PSI-20).

O reverso da medalha da liberalização da circulação de capitais, da criação da UEM e da adesão ao Euro, reflecte-se no cada vez maior saldo negativo da nossa balança de rendimentos primários, que espelha fundamentalmente os lucros e dividendos e juros que os investidores privados estrangeiros arrecadam anualmente e que transferem para os seus países – entre 1997 e 2020 o saldo negativo desta balança foi em média de 3,3 mil milhões de euros/ano (1,6% do PIB em 2019).

Se em termos líquidos, como é dito no início, Portugal recebeu da União Europeia, desde 1986, cerca de 72 mil milhões de euros de apoios em fundos comunitários, também em termos líquidos o nosso país viu sair, em parte desse período para o qual há informação do Banco de Portugal, entre 1995 e 2019, de lucros distribuídos, dividendos e juros cerca de 104,5 mil milhões de euros. É este o resultado das centenas de operações de privatização que três anos depois da nossa adesão à CEE tiveram o seu início e que colocaram em mãos estrangeiras a maioria do capital dos nossos grandes grupos económicos e financeiros e que agora se reflecte na cada vez maior saída de dividendos e lucros distribuídos e juros, neste caso como resultado do endividamento do nosso sistema financeiro.

É neste contexto de uma crescente perda de soberania, resultante não apenas das implicações directas da adesão à UEM e ao Euro mas também de opções de política económica e em particular no condicionamento da política orçamental (PEC, Pacto Orçamental, etc.) com graves consequências no investimento no plano nacional e ao longo dos vários anos, opções que em vez de servirem as necessidades do povo e do país satisfizeram interesses privados nacionais e internacionais, que se discutiu uma vez mais um novo Quadro Financeiro Plurianual, desta vez reforçado com medidas extraordinárias para apoio à recuperação das economias europeias afectadas pela actual crise pandémica.

Se é verdade, e como tem sido dito, que Portugal nos anos mais próximos vai receber da União Europeia muito dinheiro, o que é bem perceptível na movimentação dos representantes dos grandes interesses económicos, nomeadamente das grandes confederações patronais, é importante que se perceba que a dimensão da crise que vivemos não tem precedentes pela sua dimensão económica e sanitária e que se quisermos minimizar os seus impactos vai ser necessário muito investimento público. Muito mais do que tem sido realizado nos últimos anos e basta comparar esse nível de investimento com a média comunitária dos últimos anos para verificarmos que os 15,3 mil milhões de euros previstos pelo Fundo de Recuperação e Resiliência para Portugal não chegam para compensar o muito pouco que se investiu nestes anos. Desde 2012 até 2019 a redução do investimento público foi tal que o montante de entrada de fundos comunitários foi superior à totalidade do investimento público. Não existem elementos para aferir com rigor qual o montante de fundos comunitários que é absorvido pelo investimento público, mas não há dúvida de que o investimento público nos últimos anos se reduziu, na sua quase totalidade, ao mínimo indispensável para complementar a entrada de fundos comunitários.

É, pois, importante que esse dinheiro para investimento público chegue e venha liberto de quaisquer formas de condicionalidade económica e política que pretendam interferir em decisões soberanas dos Estados, designadamente ao nível das opções, programação e execução dos fundos.

É ainda mais importante que sejam adoptadas medidas que garantam que as verbas a mobilizar nos próximos anos sejam colocadas ao serviço da valorização do trabalho e dos trabalhadores, da defesa e promoção da produção nacional, da recuperação para o sector público dos sectores básicos e estratégicos da economia, da garantia de uma administração e serviços públicos ao serviço do povo e do país e do desenvolvimento soberano de Portugal.

Só a afirmação de uma política soberana, que faça prevalecer os interesses dos trabalhadores e do povo português sobre as imposições e constrangimentos que emanam da UE, pode responder adequadamente às necessidades com que o país se confronta.


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