Crimes do Bloco Central das Negociatas
O assassinato da SOREFAME ou a reescrita da história recente
Fernando Sequeira
Membro da Comissão para os Assuntos Económicos (CAE)
Nos últimos anos, de quando em vez alguns articulistas utilizam o tema do encerramento,
ou, melhor dizendo, do lento processo que conduziu ao verdadeiro assassinato de uma
muito importante empresa nacional do ramo da metalomecânica pesada, com o nome de
registo SOREFAME, projectista e fabricante, seja de equipamentos pesados para a
produção hidroeléctrica, seja de material circulante ferroviário, e que à data da sua morte
se chamava Bombardier Transportation Portugal, SA, para reescrever a nossa história
económica recente.
A tese que serve de base à reescrita da História é de uma simplicidade tosca, contudo
capaz de influenciar cidadãos que, pelo seu afastamento geracional ou geográfico ou
profissional dos acontecimentos coevos respeitantes a esta empresa, são susceptíveis de
acreditar na patranha de que o enfraquecimento e por fim a extinção da SOREFAME,
assim como de muitas outras empresas básicas e estratégicas, é fruto do 25 de Abril, das
lutas dos trabalhadores, dos sindicatos, e sobretudo do PCP.
Mas a questão não está tanto na reaccionária tese e na sua utilização, porque não nova,
mas mais no porquê da sua recorrente utilização, dando o exemplo da SOREFAME?
A explicação, porventura discutível, tem a ver, no nosso entendimento, com a associação
que ainda hoje bastantes pessoas, sobretudo as mais velhas, fazem ou podem fazer,
entre o estado de catástrofe a que chegou a rede pública de transportes, particularmente
o ferroviário nos seus diferentes modos, e o desaparecimento da SOREFAME, embora tal
nexo seja claramente forçado.
A propósito deste mesmo tema é muito interessante recordar aqui o conteúdo de um já
antigo artigo de opinião do economista Nicolau Santos sobre a SOREFAME, no jornal
Expresso, onde este, a propósito dos lamentos de alguns membros do governo de então
– do PS – sobre a falta que fazia a extinta SOREFAME para produzir os comboios que já
então o país tanto necessitava, afirmava que tais lamúrias não passavam de «lágrimas de
crocodilo», pois quem as produzia eram exactamente os mesmos que tinham criado o
caldo de cultura que conduziu à extinção da empresa. E que tal caldo de cultura se
chamava e chama de privatizações, quaisquer que fossem os contornos jurídicos que
estas configuraram.
O propósito do presente artigo é, naturalmente, o de tentar desmontar a tese que suporta
tal reescrita da história económica recente.
O arranque de uma política de substituição de importações
por produção nacional
A empresa SOREFAME – Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas, SA (SARL) foi
criada há quase oitenta anos, em 1943, e resultou da aglomeração de diversas pequenas
empresas de metalomecânica que existiam à data na zona do que veio a ser o actual
concelho da Amadora, e cuja fusão foi alavancada pela entrada de capital de uma
empresa francesa do sector.
Relativamente à criação desta nova e importante unidade económica industrial, desde já
uma primeira e importante observação.
Embora tal tenha tido lugar no quadro das condições políticas, sociais e económicas do
fascismo e dos seus objectivos estratégicos últimos, ou seja, a acumulação, concentração
e centralização de capital através da exploração dos trabalhadores e dos pequenos
empresários, a criação da SOREFAME assentou em três pilares claramente estratégicos,
e com ulterior consequências muito positivas para a economia nacional, a saber:
– o primeiro, o Plano Estratégico de Industrialização para Portugal, da responsabilidade
do conhecido eng.º Ferreira Dias, então Sub-Secretário de Estado do Comércio e da
Indústria;
– o segundo, o Programa de Construção de Grandes Empreendimentos Hidroeléctricos
(1), cujos primeiros começaram a entrar em funcionamento no início da década de 50 do
século passado;
– o terceiro, o Programa de Modernização dos caminhos de ferro nacionais, insere-se
claramente numa política de substituição de importações por produção nacional, o que em
si mesmo devemos valorizar, substituição ainda por cima acentuada pela elevada
incorporação tecnológica e elevado valor acrescentado.
Esta conjugação estratégica permitiu também, no quadro de parcerias com empresas
estrangeiras operando nas mesmas áreas produtivas da SOREFAME, a transferência de
tecnologias e a formação especializada de trabalhadores, particularmente de engenheiros
e técnicos, o que lhe permitiu começar a desenvolver a fabricação de uma vasta gama de
componentes mecânicos e electromecânicos para grandes empreendimentos
hidroeléctricos – comportas, turbinas, válvulas, tubagens, etc..
Esta experiência permitiu assentar em produção nacional a construção de um vasto
programa de barragens, cujo desenvolvimento durou quase meio século.
No domínio de equipamentos pesados para a produção hidroeléctrica, para além de dar
plena resposta às necessidades nacionais, a SOREFAME também adquiriu e
desenvolveu capacidade de projecto e de produção cada vez mais autónoma e de
elevado nível, o que lhe permitiu participar em grandes obras em várias geografias, de
que destacamos, pela sua importância, Cahora Bassa.
Numa segunda fase, iniciada poucos anos após o seu arranque, a empresa começou a
especializar-se no projecto e fabrico de material circulante ferroviário, designadamente
locomotivas (Diesel e eléctricas) e carruagens, no quadro de parcerias tecnológicas
importantes.
Nesta vertente produtiva, a SOREFAME foi a projectista e fabricante, a partir do
início/meados dos anos 50, e praticamente até à sua extinção no início deste século, de
quase todas as composições de transporte ferroviário em Portugal, enquanto fornecedor
exclusivo da CP e dos metropolitanos de Lisboa e Porto.
No plano externo foi fornecedora de importantes operadores americanos, nomeadamente
dos metropolitanos de Chicago, Los Angeles e Filadélfia, bem como do fabrico de
carruagens de dois pisos para o Departamento de Transportes da Califórnia.
Embora trabalhando inicialmente sob licenças diversas fornecidas pelas mais avançadas
empresas mundiais dos sectores onde intervinha, a SOREFAME foi adquirindo uma
crescente e mesmo brilhante capacidade tecnológica, desde logo no plano do projecto,
mas também naturalmente no da produção.
Alguns dos momentos e acontecimentos
que estiveram na génese da decadência e extinção da SOREFAME
É de ter em atenção, pelo menos os momentos e factos seguintes, directa ou
indirectamente associados ao processo que conduziu à extinção da empresa, a saber:
Na sequência do profundo processo de nacionalizações ocorrido em 1975, a
SOREFAME passou a fazer parte do então designado «universo estabilizado de
participações do IPE (2)».
Em 1989, a empresa de direito suíço (embora resultante da fusão em 1988 de uma
empresa sueca com uma empresa suíça), Asea Brown Bovery (ABB),
especializada nas áreas da energia e da automação, adquire ao IPE 50% da
SOREFAME. Trata-se, inequivocamente, da primeira etapa do processo que
conduziu à sua ulterior extinção.
Em 1990, no quadro do desenvolvimento do designado Programa de
Reestruturação da Indústria Metalomecânica, programa público aparentemente
bem intencionado, mas geneticamente inquinado, é criado o Grupo SENETE
(Sistemas de Energia, Transportes e Equipamentos), cujos accionistas eram: IPE,
ABB e MAGUE (3), e cujo escopo era dinamizar ou redinamizar o sector da
metalomecânica pesada.
Em 1994, a IPE, subvertendo completamente os objectivos subjacentes à criação
do Grupo SENETE, vende a sua participação à ABB, que fica a partir daí como
accionista dominante. A retirada do instituto público da SENETE abriu uma das
portas para o ulterior enfraquecimento e destruição da empresa: uma primeira
consequência é o empobrecimento da cadeia de valor da empresa, dado ter
começado a trabalhar quase exclusivamente a partir da montagem de
componentes oriundos de fábricas da ABB sediadas em Espanha. Estamos
perante a segunda etapa do processo que conduziu à extinção e era então
Governo o PSD.
Em 1995, o Estado, no quadro da sua política de alienação de património público,
via IPE vendeu as participações deste em diversas e importantes empresas
estratégicas do ramo da metalurgia e da metalo e electromecânicas médias e
pesada à ABB, designadamente as empresas Metal Sines, MSET-Metalomecânica
de Setúbal, MAGUE, SERMAGUE e SMM-Sociedade de Montagens
Metalomecânicas, para além da própria SOMAGUE. Com esta alienação entregou
a quase totalidade de tão importante sector industrial ao grande capital estrangeiro,
dando assim um passo importante para o seu desaparecimento. Em cerca de 10
anos, entre 85 e 95, o sector perdeu mais de 15 mil trabalhadores. Estava dado
assim o terceiro passo do processo para a extinção da SOREFAME.
Em 1996 a ABB funde-se com a Daimler-Benz, criando-se a partir daí o novo e
poderoso grupo ADTranz-ABB Daimler-Benz Transportation, que ficou então a ser
o maior produtor mundial de material circulante ferroviário, cobrindo todo o
espectro de produtos. Acentua-se a componente montagem e a redução de
pessoal.
Com a longa paragem do programa de construção de grandes empreendimentos
hidroeléctricos (4) após a privatização da EDP, a SOREFAME perde o seu mercado
nacional e a divisão energética começa a definhar e morre. Já antes tinha
praticamente ficado sem a componente de exportação devido ao fim dos
financiamentos por parte do Banco Mundial. Estava dado o quarto passo para a
extinção da empresa.
Em 1998 a ABB/AdTranz vende a SOREFAME à Daimler-Chrysler.
Em Maio de 2001 é dado o penúltimo passo para a extinção da empresa: o grupo
Ad-Tranz é adquirido pela empresa canadiana Bombardier Transportation, e a
SOREFAME passa a chamar-se, como já atrás referimos, Bombardier
Transportation Portugal, SA.
Finalmente em 2004, e no quadro de uma reestruturação mundial do grupo
Bombardier, a SOREFAME encerra definitivamente (5) as suas portas.
Em conclusão, o desaparecimento da SOREFAME, bem como de todo o sector da
metalomecânica pesada de/ou com capitais públicos, ou mesmo de capitais privados (6),
com a entrega ao capital estrangeiro de activos estratégicos para o país, com a perda de
saberes e competências acumuladas ao longo de dezenas de anos por trabalhadores a
todos os níveis, constitui um crime exemplar da política de direita na sua vertente anti-
patriótica.
Neste como noutros casos, não ocorreu nenhum IDE, mas antes aquilo que podemos
designar de um IDE negativo e mesmo destruidor, com um desfecho dramático:
empobrecimento do perfil de especialização industrial e redução simultânea da
produtividade e competitividade da economia nacional.
As vulnerabilidades estratégicas resultantes da extinção da SOREFAME
A extinção da SOREFAME potenciou um vasto conjunto de vulnerabilidades estratégicas
com reflexos no plano da economia, designadamente das contas externas, mas também e
sobretudo do aumento da nossa dependência de bens de equipamento e infra-estruturais
face ao exterior, isto é, de perda de soberania.
Como é evidente, as duas grandes vertentes que ficaram órfãs da SOREFAME são:
– a falta de resposta nacional à componente metalomecânica e electromecânica (7) de
projecto e construção de empreendimentos hidroeléctricos;
– a total incapacidade de resposta na construção de material circulante ferroviário.
Vejamos cada uma destas componentes com algum detalhe.
Relativamente à primeira, o problema é tanto mais grave quanto o país,
independentemente das consequências de posturas e modas seguramente conjunturais,
necessita de aproveitar o seu potencial hídrico ainda ocioso em quase 50%, e para o
fazer necessita de concretizar todos aqueles empreendimentos que tenham valia
eléctrica, o que significa importar quase todos os componentes mecânicos e
electromecânicos.
Por exemplo, relativamente aos últimos grandes empreendimentos hidroeléctricos
construídos no país – Alqueva, Foz Tua, Baixo Sabor –, ou em construção como a
cascata do Tâmega, todos os componentes foram importados, ou irão ser, exactamente
através das mesmas empresas estrangeiras que, pelas mãos de sucessivos governos
portugueses, foram os coveiros do sector das metalo e electromecânicas pesada, de
fábricas suas, quaisquer que sejam as geografias onde estas se encontrem.
Relativamente à segunda vertente, publicamente muito mais conhecida, o último material
ferroviário circulante produzido pela SOREFAME foi entregue ao metro do Porto e à CP
durante o ano de 2004.
Na ocasião, o Governo PSD de então nada fez, bem ao contrário, ao não fazer avançar
qualquer encomenda de material ferroviário circulante por parte das empresas públicas de
transporte ferroviário médio e pesado.
A partir daí o fabrico de material circulante ferroviário em Portugal já era História.
E, no entretanto, já passaram 16 anos.
Face à indiscutível necessidade de uma resposta nacional de longo prazo à renovação,
modernização e profundo aumento da capacidade de todo o material ferroviário circulante
– comboios, metropolitanos pesados e ligeiros, eléctricos rápidos, etc. – é fundamental
que este sector seja urgentemente recriado, naturalmente que quase de raiz.
Mas não se trata somente de substituir ou recuperar o que foi deixado, de forma
absolutamente criminosa, desgastar-se até ao limite.
Trata-se sim de encetar um muito forte e continuado investimento em todos os modos de
transporte colectivo com tracção eléctrica, dado o seu papel ímpar no transporte de
massas (8), seja por razões associadas ao ordenamento do território, seja pela
preservação e crescimento da produtividade da economia, seja finalmente por razões
energéticas e ambientais.
Trata-se de fundar uma empresa de raiz, pois que a EMEF (9), importante empresa/sector
de reparação de material ferroviário, não tem nem deverá ter vocação para responder a
tal escopo estratégico.
Contudo, a EMEF pode e deve constituir o ninho a partir do qual podem sair valências e
experiências para o arranque da nova ou das novas unidades.
E relativamente ao desiderato estratégico de recriar uma empresa de projeto e fabrico de
material ferroviário circulante, é de ter em atenção uma variável absolutamente crítica,
que é a do paulatino desaparecimento de competências técnicas altamente
especializadas construídas ao longo de muitas décadas e entretanto definhadas ou
mesmo extintas, e que urge reanimar e desenvolver.
Mas muito mais importante do que adquirir equipamentos por muito especializados e
caros que sejam, é conseguir reconstruir o mais importante factor de produção, a saber, a
força-de-trabalho altamente especializada, qualquer que seja o nível de preparação e
responsabilidade associados.
Não nos esqueçamos que muitas e importantes actividades industriais que tiveram lugar
no passado, e que actualmente ainda eram importantes, actualmente são simplesmente,
na melhor das hipóteses, arqueologia industrial.
O papel do PCP na defesa da SOREFAME e do sector
Ao longo dos anos o PCP sempre esteve na primeira linha de defesa da SOREFAME e
das outras empresas do sector.
Seja na frente legislativa apresentando projectos de resoluções na Assembleia da
República, seja numa intervenção pública muito diversificada, seja no apoio directo aos
trabalhadores e às suas organizações.
Relativamente à reanimação e relançamento actualizado dos sectores industriais
destruídos pela política de direita, o PCP, em várias frentes, de que julgamos de destacar
os programas eleitorais para as eleições legislativas, tem vindo reiteradamente a
apresentar propostas.
Por exemplo, do programa eleitoral apresentado no ano passado às últimas eleições
legislativas, no capítulo 2, ponto 2.2.4 – «A defesa e desenvolvimento da produção
nacional e da superação dos principais défices estruturais – A indústria como alicerce
nuclear do desenvolvimento económico», propõe-se, entre muitos outros aspectos, «...o
desenvolvimento das indústrias básicas e estratégicas pelo seu lugar central no aparelho
produtivo, devendo ser privilegiados sectores tais como […] a fileira do material
ferroviário...» […] bem como «a construção de equipamentos para todas as tecnologias
de produção energética...» […], bem ainda como «...promover uma urgente, renovada e
ampliada intervenção do Estado na esfera produtiva...» […] «...em pelo menos os
sectores transformadores entretanto definhados ou mesmo destruídos...».
Finalmente, a necessidade de enfatizar que a única forma de recriar, proteger e
desenvolver tais sectores é que eles nasçam e se desenvolvam na esfera pública. De
facto, só assim estarão protegidos da gula do grande capital, nomeadamente do
estrangeiro. A triste história do desaparecimento de tão importante sector industrial dá
muita força a esta orientação.
E terminamos de alguma forma como começámos.
Contrariamente ao que escrevem algumas almas cheias de veneno e ódio, pelo menos
aparentemente coordenadas na sua intervenção, a curta história que passámos em
revista demonstra à saciedade que não são os trabalhadores, que não são os sindicatos,
que não é o PCP e ainda menos que não é o 25 de Abril que destruíram a SOREFAME e
outras importantes empresas do sector da metalomecânica pesada.
Bem ao contrário, quem as destruiu foram e são os políticos e os agentes económicos
nacionais e estrangeiros do costume, ou seja, aqueles que conceberam e levam à prática
no plano económico a política de direita.
Notas
(1) Programa que, para além de ter permitido a criação da SOREFAME, mas não só,
também esteve muito associado à fundação do LNEC.
(2) IPE-Instituto de Participações do Estado, criado em 1975 para gerir as participações
públicas das empresas não directamente nacionalizadas, como era o caso da
SOREFAME e de outras empresas do sector.
(3) MAGUE-Construções Metalomecânicas Mague, SA: grande empresa de
metalomecânica pesada, projectista e construtora de grandes equipamentos para
movimentação de cargas, todos os equipamentos para centrais térmicas (estruturas,
caldeiras, turbinas, condensadores, tubagens, etc.), bem como turbinas para centrais
hidroeléctricas,etc.).
(4) Acresce a completa e definitiva paragem do empreendimento do Côa.
(5) À data tinha ficado a promessa da continuidade de um importante Centro de
Competências de Sistemas Ferroviários, que não se concretizou.
(6) Recorde-se o recente encerramento da TAGOPI, importante empresa de
metalomecânica pesada.
(7) A actualmente perigosa situação da EFACEC pode vir a configurar, se não forem
entretanto tomadas medidas estratégicas, um exemplo semelhante.
(8) A que deve ser adicionado o transporte de mercadorias.
(9) Empresa de manutenção do material circulante da CP.
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