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15 de abril de 2021

Ah! Agora é que querem fabricar comboios e carruagens

 Crimes do Bloco Central das Negociatas

O assassinato da SOREFAME ou a reescrita da história recente

Fernando Sequeira

Membro da Comissão para os Assuntos Económicos (CAE) 

Nos últimos anos, de quando em vez alguns articulistas utilizam o tema do encerramento,

ou, melhor dizendo, do lento processo que conduziu ao verdadeiro assassinato de uma

muito importante empresa nacional do ramo da metalomecânica pesada, com o nome de

registo SOREFAME, projectista e fabricante, seja de equipamentos pesados para a

produção hidroeléctrica, seja de material circulante ferroviário, e que à data da sua morte

se chamava Bombardier Transportation Portugal, SA, para reescrever a nossa história

económica recente.

A tese que serve de base à reescrita da História é de uma simplicidade tosca, contudo

capaz de influenciar cidadãos que, pelo seu afastamento geracional ou geográfico ou

profissional dos acontecimentos coevos respeitantes a esta empresa, são susceptíveis de

acreditar na patranha de que o enfraquecimento e por fim a extinção da SOREFAME,

assim como de muitas outras empresas básicas e estratégicas, é fruto do 25 de Abril, das

lutas dos trabalhadores, dos sindicatos, e sobretudo do PCP.

Mas a questão não está tanto na reaccionária tese e na sua utilização, porque não nova,

mas mais no porquê da sua recorrente utilização, dando o exemplo da SOREFAME?

A explicação, porventura discutível, tem a ver, no nosso entendimento, com a associação

que ainda hoje bastantes pessoas, sobretudo as mais velhas, fazem ou podem fazer,

entre o estado de catástrofe a que chegou a rede pública de transportes, particularmente

o ferroviário nos seus diferentes modos, e o desaparecimento da SOREFAME, embora tal

nexo seja claramente forçado.

A propósito deste mesmo tema é muito interessante recordar aqui o conteúdo de um já

antigo artigo de opinião do economista Nicolau Santos sobre a SOREFAME, no jornal

Expresso, onde este, a propósito dos lamentos de alguns membros do governo de então

– do PS – sobre a falta que fazia a extinta SOREFAME para produzir os comboios que já

então o país tanto necessitava, afirmava que tais lamúrias não passavam de «lágrimas de

crocodilo», pois quem as produzia eram exactamente os mesmos que tinham criado o

caldo de cultura que conduziu à extinção da empresa. E que tal caldo de cultura se

chamava e chama de privatizações, quaisquer que fossem os contornos jurídicos que

estas configuraram.

O propósito do presente artigo é, naturalmente, o de tentar desmontar a tese que suporta

tal reescrita da história económica recente.


O arranque de uma política de substituição de importações

por produção nacional

A empresa SOREFAME – Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas, SA (SARL) foi

criada há quase oitenta anos, em 1943, e resultou da aglomeração de diversas pequenas

empresas de metalomecânica que existiam à data na zona do que veio a ser o actual

concelho da Amadora, e cuja fusão foi alavancada pela entrada de capital de uma

empresa francesa do sector.

Relativamente à criação desta nova e importante unidade económica industrial, desde já

uma primeira e importante observação.

Embora tal tenha tido lugar no quadro das condições políticas, sociais e económicas do

fascismo e dos seus objectivos estratégicos últimos, ou seja, a acumulação, concentração

e centralização de capital através da exploração dos trabalhadores e dos pequenos


empresários, a criação da SOREFAME assentou em três pilares claramente estratégicos,

e com ulterior consequências muito positivas para a economia nacional, a saber:

– o primeiro, o Plano Estratégico de Industrialização para Portugal, da responsabilidade

do conhecido eng.º Ferreira Dias, então Sub-Secretário de Estado do Comércio e da

Indústria;

– o segundo, o Programa de Construção de Grandes Empreendimentos Hidroeléctricos

(1), cujos primeiros começaram a entrar em funcionamento no início da década de 50 do

século passado;

– o terceiro, o Programa de Modernização dos caminhos de ferro nacionais, insere-se

claramente numa política de substituição de importações por produção nacional, o que em

si mesmo devemos valorizar, substituição ainda por cima acentuada pela elevada

incorporação tecnológica e elevado valor acrescentado.

Esta conjugação estratégica permitiu também, no quadro de parcerias com empresas

estrangeiras operando nas mesmas áreas produtivas da SOREFAME, a transferência de

tecnologias e a formação especializada de trabalhadores, particularmente de engenheiros

e técnicos, o que lhe permitiu começar a desenvolver a fabricação de uma vasta gama de

componentes mecânicos e electromecânicos para grandes empreendimentos

hidroeléctricos – comportas, turbinas, válvulas, tubagens, etc..

Esta experiência permitiu assentar em produção nacional a construção de um vasto

programa de barragens, cujo desenvolvimento durou quase meio século.

No domínio de equipamentos pesados para a produção hidroeléctrica, para além de dar

plena resposta às necessidades nacionais, a SOREFAME também adquiriu e

desenvolveu capacidade de projecto e de produção cada vez mais autónoma e de

elevado nível, o que lhe permitiu participar em grandes obras em várias geografias, de

que destacamos, pela sua importância, Cahora Bassa.

Numa segunda fase, iniciada poucos anos após o seu arranque, a empresa começou a

especializar-se no projecto e fabrico de material circulante ferroviário, designadamente

locomotivas (Diesel e eléctricas) e carruagens, no quadro de parcerias tecnológicas

importantes.

Nesta vertente produtiva, a SOREFAME foi a projectista e fabricante, a partir do

início/meados dos anos 50, e praticamente até à sua extinção no início deste século, de

quase todas as composições de transporte ferroviário em Portugal, enquanto fornecedor

exclusivo da CP e dos metropolitanos de Lisboa e Porto.

No plano externo foi fornecedora de importantes operadores americanos, nomeadamente

dos metropolitanos de Chicago, Los Angeles e Filadélfia, bem como do fabrico de

carruagens de dois pisos para o Departamento de Transportes da Califórnia.

Embora trabalhando inicialmente sob licenças diversas fornecidas pelas mais avançadas

empresas mundiais dos sectores onde intervinha, a SOREFAME foi adquirindo uma

crescente e mesmo brilhante capacidade tecnológica, desde logo no plano do projecto,

mas também naturalmente no da produção.

Alguns dos momentos e acontecimentos

que estiveram na génese da decadência e extinção da SOREFAME

É de ter em atenção, pelo menos os momentos e factos seguintes, directa ou

indirectamente associados ao processo que conduziu à extinção da empresa, a saber:

 Na sequência do profundo processo de nacionalizações ocorrido em 1975, a

SOREFAME passou a fazer parte do então designado «universo estabilizado de

participações do IPE (2)».

 Em 1989, a empresa de direito suíço (embora resultante da fusão em 1988 de uma

empresa sueca com uma empresa suíça), Asea Brown Bovery (ABB),


especializada nas áreas da energia e da automação, adquire ao IPE 50% da

SOREFAME. Trata-se, inequivocamente, da primeira etapa do processo que

conduziu à sua ulterior extinção.

 Em 1990, no quadro do desenvolvimento do designado Programa de

Reestruturação da Indústria Metalomecânica, programa público aparentemente

bem intencionado, mas geneticamente inquinado, é criado o Grupo SENETE

(Sistemas de Energia, Transportes e Equipamentos), cujos accionistas eram: IPE,

ABB e MAGUE (3), e cujo escopo era dinamizar ou redinamizar o sector da

metalomecânica pesada.

 Em 1994, a IPE, subvertendo completamente os objectivos subjacentes à criação

do Grupo SENETE, vende a sua participação à ABB, que fica a partir daí como

accionista dominante. A retirada do instituto público da SENETE abriu uma das

portas para o ulterior enfraquecimento e destruição da empresa: uma primeira

consequência é o empobrecimento da cadeia de valor da empresa, dado ter

começado a trabalhar quase exclusivamente a partir da montagem de

componentes oriundos de fábricas da ABB sediadas em Espanha. Estamos

perante a segunda etapa do processo que conduziu à extinção e era então

Governo o PSD.

 Em 1995, o Estado, no quadro da sua política de alienação de património público,

via IPE vendeu as participações deste em diversas e importantes empresas

estratégicas do ramo da metalurgia e da metalo e electromecânicas médias e

pesada à ABB, designadamente as empresas Metal Sines, MSET-Metalomecânica

de Setúbal, MAGUE, SERMAGUE e SMM-Sociedade de Montagens

Metalomecânicas, para além da própria SOMAGUE. Com esta alienação entregou

a quase totalidade de tão importante sector industrial ao grande capital estrangeiro,

dando assim um passo importante para o seu desaparecimento. Em cerca de 10

anos, entre 85 e 95, o sector perdeu mais de 15 mil trabalhadores. Estava dado

assim o terceiro passo do processo para a extinção da SOREFAME.

 Em 1996 a ABB funde-se com a Daimler-Benz, criando-se a partir daí o novo e

poderoso grupo ADTranz-ABB Daimler-Benz Transportation, que ficou então a ser

o maior produtor mundial de material circulante ferroviário, cobrindo todo o

espectro de produtos. Acentua-se a componente montagem e a redução de

pessoal.

 Com a longa paragem do programa de construção de grandes empreendimentos

hidroeléctricos (4) após a privatização da EDP, a SOREFAME perde o seu mercado

nacional e a divisão energética começa a definhar e morre. Já antes tinha

praticamente ficado sem a componente de exportação devido ao fim dos

financiamentos por parte do Banco Mundial. Estava dado o quarto passo para a

extinção da empresa.

 Em 1998 a ABB/AdTranz vende a SOREFAME à Daimler-Chrysler.

 Em Maio de 2001 é dado o penúltimo passo para a extinção da empresa: o grupo

Ad-Tranz é adquirido pela empresa canadiana Bombardier Transportation, e a

SOREFAME passa a chamar-se, como já atrás referimos, Bombardier

Transportation Portugal, SA.

 Finalmente em 2004, e no quadro de uma reestruturação mundial do grupo

Bombardier, a SOREFAME encerra definitivamente (5) as suas portas.

Em conclusão, o desaparecimento da SOREFAME, bem como de todo o sector da

metalomecânica pesada de/ou com capitais públicos, ou mesmo de capitais privados (6),

com a entrega ao capital estrangeiro de activos estratégicos para o país, com a perda de

saberes e competências acumuladas ao longo de dezenas de anos por trabalhadores a


todos os níveis, constitui um crime exemplar da política de direita na sua vertente anti-

patriótica.

Neste como noutros casos, não ocorreu nenhum IDE, mas antes aquilo que podemos

designar de um IDE negativo e mesmo destruidor, com um desfecho dramático:

empobrecimento do perfil de especialização industrial e redução simultânea da

produtividade e competitividade da economia nacional.


As vulnerabilidades estratégicas resultantes da extinção da SOREFAME

A extinção da SOREFAME potenciou um vasto conjunto de vulnerabilidades estratégicas

com reflexos no plano da economia, designadamente das contas externas, mas também e

sobretudo do aumento da nossa dependência de bens de equipamento e infra-estruturais

face ao exterior, isto é, de perda de soberania.

Como é evidente, as duas grandes vertentes que ficaram órfãs da SOREFAME são:

– a falta de resposta nacional à componente metalomecânica e electromecânica (7) de

projecto e construção de empreendimentos hidroeléctricos;

– a total incapacidade de resposta na construção de material circulante ferroviário.

Vejamos cada uma destas componentes com algum detalhe.

Relativamente à primeira, o problema é tanto mais grave quanto o país,

independentemente das consequências de posturas e modas seguramente conjunturais,

necessita de aproveitar o seu potencial hídrico ainda ocioso em quase 50%, e para o

fazer necessita de concretizar todos aqueles empreendimentos que tenham valia

eléctrica, o que significa importar quase todos os componentes mecânicos e

electromecânicos.

Por exemplo, relativamente aos últimos grandes empreendimentos hidroeléctricos

construídos no país – Alqueva, Foz Tua, Baixo Sabor –, ou em construção como a

cascata do Tâmega, todos os componentes foram importados, ou irão ser, exactamente

através das mesmas empresas estrangeiras que, pelas mãos de sucessivos governos

portugueses, foram os coveiros do sector das metalo e electromecânicas pesada, de

fábricas suas, quaisquer que sejam as geografias onde estas se encontrem.

Relativamente à segunda vertente, publicamente muito mais conhecida, o último material

ferroviário circulante produzido pela SOREFAME foi entregue ao metro do Porto e à CP

durante o ano de 2004.

Na ocasião, o Governo PSD de então nada fez, bem ao contrário, ao não fazer avançar

qualquer encomenda de material ferroviário circulante por parte das empresas públicas de

transporte ferroviário médio e pesado.

A partir daí o fabrico de material circulante ferroviário em Portugal já era História.

E, no entretanto, já passaram 16 anos.

Face à indiscutível necessidade de uma resposta nacional de longo prazo à renovação,

modernização e profundo aumento da capacidade de todo o material ferroviário circulante

– comboios, metropolitanos pesados e ligeiros, eléctricos rápidos, etc. – é fundamental

que este sector seja urgentemente recriado, naturalmente que quase de raiz.

Mas não se trata somente de substituir ou recuperar o que foi deixado, de forma

absolutamente criminosa, desgastar-se até ao limite.

Trata-se sim de encetar um muito forte e continuado investimento em todos os modos de

transporte colectivo com tracção eléctrica, dado o seu papel ímpar no transporte de

massas (8), seja por razões associadas ao ordenamento do território, seja pela

preservação e crescimento da produtividade da economia, seja finalmente por razões

energéticas e ambientais.


Trata-se de fundar uma empresa de raiz, pois que a EMEF (9), importante empresa/sector

de reparação de material ferroviário, não tem nem deverá ter vocação para responder a

tal escopo estratégico.

Contudo, a EMEF pode e deve constituir o ninho a partir do qual podem sair valências e

experiências para o arranque da nova ou das novas unidades.

E relativamente ao desiderato estratégico de recriar uma empresa de projeto e fabrico de

material ferroviário circulante, é de ter em atenção uma variável absolutamente crítica,

que é a do paulatino desaparecimento de competências técnicas altamente

especializadas construídas ao longo de muitas décadas e entretanto definhadas ou

mesmo extintas, e que urge reanimar e desenvolver.

Mas muito mais importante do que adquirir equipamentos por muito especializados e

caros que sejam, é conseguir reconstruir o mais importante factor de produção, a saber, a

força-de-trabalho altamente especializada, qualquer que seja o nível de preparação e

responsabilidade associados.

Não nos esqueçamos que muitas e importantes actividades industriais que tiveram lugar

no passado, e que actualmente ainda eram importantes, actualmente são simplesmente,

na melhor das hipóteses, arqueologia industrial.


O papel do PCP na defesa da SOREFAME e do sector

Ao longo dos anos o PCP sempre esteve na primeira linha de defesa da SOREFAME e

das outras empresas do sector.

Seja na frente legislativa apresentando projectos de resoluções na Assembleia da

República, seja numa intervenção pública muito diversificada, seja no apoio directo aos

trabalhadores e às suas organizações.

Relativamente à reanimação e relançamento actualizado dos sectores industriais

destruídos pela política de direita, o PCP, em várias frentes, de que julgamos de destacar

os programas eleitorais para as eleições legislativas, tem vindo reiteradamente a

apresentar propostas.

Por exemplo, do programa eleitoral apresentado no ano passado às últimas eleições

legislativas, no capítulo 2, ponto 2.2.4 – «A defesa e desenvolvimento da produção

nacional e da superação dos principais défices estruturais – A indústria como alicerce

nuclear do desenvolvimento económico», propõe-se, entre muitos outros aspectos, «...o

desenvolvimento das indústrias básicas e estratégicas pelo seu lugar central no aparelho

produtivo, devendo ser privilegiados sectores tais como […] a fileira do material

ferroviário...» […] bem como «a construção de equipamentos para todas as tecnologias

de produção energética...» […], bem ainda como «...promover uma urgente, renovada e

ampliada intervenção do Estado na esfera produtiva...» […] «...em pelo menos os

sectores transformadores entretanto definhados ou mesmo destruídos...».

Finalmente, a necessidade de enfatizar que a única forma de recriar, proteger e

desenvolver tais sectores é que eles nasçam e se desenvolvam na esfera pública. De

facto, só assim estarão protegidos da gula do grande capital, nomeadamente do

estrangeiro. A triste história do desaparecimento de tão importante sector industrial dá

muita força a esta orientação.

E terminamos de alguma forma como começámos.

Contrariamente ao que escrevem algumas almas cheias de veneno e ódio, pelo menos

aparentemente coordenadas na sua intervenção, a curta história que passámos em

revista demonstra à saciedade que não são os trabalhadores, que não são os sindicatos,

que não é o PCP e ainda menos que não é o 25 de Abril que destruíram a SOREFAME e

outras importantes empresas do sector da metalomecânica pesada.


Bem ao contrário, quem as destruiu foram e são os políticos e os agentes económicos

nacionais e estrangeiros do costume, ou seja, aqueles que conceberam e levam à prática

no plano económico a política de direita.

Notas

(1) Programa que, para além de ter permitido a criação da SOREFAME, mas não só,

também esteve muito associado à fundação do LNEC.

(2) IPE-Instituto de Participações do Estado, criado em 1975 para gerir as participações

públicas das empresas não directamente nacionalizadas, como era o caso da

SOREFAME e de outras empresas do sector.

(3) MAGUE-Construções Metalomecânicas Mague, SA: grande empresa de

metalomecânica pesada, projectista e construtora de grandes equipamentos para

movimentação de cargas, todos os equipamentos para centrais térmicas (estruturas,

caldeiras, turbinas, condensadores, tubagens, etc.), bem como turbinas para centrais

hidroeléctricas,etc.).

(4) Acresce a completa e definitiva paragem do empreendimento do Côa.

(5) À data tinha ficado a promessa da continuidade de um importante Centro de

Competências de Sistemas Ferroviários, que não se concretizou.

(6) Recorde-se o recente encerramento da TAGOPI, importante empresa de

metalomecânica pesada.

(7) A actualmente perigosa situação da EFACEC pode vir a configurar, se não forem

entretanto tomadas medidas estratégicas, um exemplo semelhante.

(8) A que deve ser adicionado o transporte de mercadorias.

(9) Empresa de manutenção do material circulante da CP.

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