“Na revista Megáfono (abril 1934), Jorge Luis Borges responde a Alberto Hidalgo, poeta peruano diretor da revista Crisol (publicação argentina das primeiras décadas do século XX agressivamente identificada com o nazismo), que insistia em que Borges escondia sua ascendência judaica.
Por JORGE LUIS BORGES*
Quem nunca brincou com seus antepassados, com as pré-histórias de sua carne e de seu sangue?
Como os drusos, como a lua, como a morte, como a semana que vem, o passado remoto é uma daquelas coisas que a ignorância pode enriquecer – que se alimentam principalmente da ignorância. É infinitamente plástico e agradável, muito mais prestativo que o futuro e exige muito menos esforço. É a estação famosa preferida das mitologias.
Quem nunca brincou com seus antepassados, com as pré-histórias de sua carne e de seu sangue? Faço isso muitas vezes, e em muitas não me desagradou pensar em mim mesmo como judeu. Trata-se de uma hipótese preguiçosa, de uma aventura sedentária e frugal que não prejudica ninguém – nem mesmo a fama de Israel, já que meu judaísmo era sem palavras, como as canções de Mendelssohn. Crisol, em seu número de 30 de janeiro, quis elogiar essa esperança retrospectiva e fala de minha “ascendência judaica, maliciosamente ocultada”.[1] (O particípio e o advérbio me deixam maravilhado).[2]
Borges Acevedo é meu nome. Ramos Mejía, em certa nota do quinto capítulo de Rosas y su tiempo, enumera os sobrenomes portenhos daquela época, para demonstrar que todos, ou quase todos, “procediam de linhagem hebraico-portuguesa”. Acevedo figura nessa lista: único documento de minhas pretensões judaicas, até a confirmação da Crisol. No entanto, o capitão Honorio Acevedo fez pesquisas precisas que não posso ignorar. Elas me indicam o primeiro Acevedo que desembarcou nesta terra, o catalão dom Pedro de Azevedo, mestre de campo, já povoador do “Pago de los Arroyos” em 1728, pai e antepassado de estancieiros desta província, homem de que dão notícia os Anales del Rosario de Santa Fe e os Documentos para la historia del Virreinato – avô, enfim, quase irremediavelmente espanhol.
Duzentos anos e eu não dou com o israelita, duzentos anos e o antepassado me escapa. Agradeço o estímulo da Crisol, mas minha esperança de me entroncar com a Mesa dos Pães e com o Mar de Bronze, com Heine, Gleizer e os dez Sefirot, com o Eclesiastes e com Chaplin está enfraquecendo.
Estatisticamente os hebreus eram muito reduzidos. Que pensaríamos de um homem do ano quatro mil que descobrisse sanjuaninos[3] por todo lado? Nossos inquisidores buscam hebreus, nunca fenícios, garamantes, citas, babilônios, persas, egípcios, hunos, vândalos, ostrogodos, etíopes, dardânios, plafagônios, sármatas, medos, otomanos, berberes, bretões, líbios, ciclopes e lapitas. As noites de Alexandria, da Babilônia, de Cartago, de Mênfis, nunca puderam gerar um avô; somente para as tribos do betuminoso Mar Morto foi concedido esse dom.
*Jorge Luis Borges (1899-1986) foi escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. Autor, entre outros livros, de Ficções (Companhia das Letras). [https://amzn.to/3R7pV8n]
Tradução: Josely Vianna Baptista.
Notas da tradutora
[1] “Ao responder a umas acusações da revista Crisol, abertamente antissemita, Borges escreveu esta peça satírica sobre seus supostos antepassados. Em sua lista de tribos extintas inclui até os mitológicos centauros. Esta piada serve para atenuar as implicações mais desagradáveis do tema. Se ser judeu significa ter tido algum antepassado judeu, por mais remoto que este possa ser, então, quem pode estar seguro em Espanha ou Portugal, de não ter pelo menos um tataravô(ó) dessa origem? Ao levar o argumento até o absurdo, Borges denuncia às gargalhadas a estupidez dos seus adversários. Há, no entanto, uma ironia factual nessa busca inútil. Pelo lado materno dos Acevedo (a mais católica e reacionária família, segundo Borges contou), assim como pela paterna dos Borges Ramalho, lhe chegaria o mítico sangue hebraico. Talvez por esta razão, em seus últimos anos ele tenha dedicado mais tempo para estudar a cultura e as letras desta origem.” (Emir Rodríguez Monegal, Ficcionario. México: Fondo de Cultura Económica, 1981, p. 443).
[2] Comentário de Jorge Schwartz: “Na revista Megáfono (abril 1934), Jorge Luis Borges responde a Alberto Hidalgo, poeta peruano diretor da revista Crisol (publicação argentina das primeiras décadas do século XX agressivamente identificada com o nazismo), que insistia em que Borges escondia sua ascendência judaica. Entre outras pérolas de Alberto Hidalgo: “Conhecemos o valor literário de Borges, que ninguém pode lhe negar, sua sordidez moral, também pública e sua ascendência judaica, maliciosamente oculta, mas mal dissimulada, pois até seus poemas tem esse acento sálmico característico da poesia hebraica.”
[3] Da província argentina de San Juan.
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