Um testemunho a não perder
No 25 de Novembro, o Carlos Matos Gomes não está em Portugal....
Eu no dia 25 de Novembro de 1975 estava na Alemanha. Tinha sido convidado por uma instituição, que se chama Socialist Bureau, que é uma associação ligada ao Partido Social Democrata ao SPD alemão, que integrava vários núcleos de estudos sociais e políticos das grandes universidades, como a Universidade de Frankfurt, a Universidade de Estugarda, a Universidade Edilberg e depois a Universidade de Munique e eu fui convidado, juntamente, aliás, com um grande jornalista, o Adelino Gomes, para darmos uma visão do processo político português na Alemanha, que estava a ser muito condicionado com a narrativa, que vem a ser a narrativa do 25 de Novembro, que era a narrativa do Partido Socialista: de que Portugal corria o risco de cair numa ditadura comunista; de virem a ser impedidas as liberdades; de Portugal passar para outro bloco. E havia também caso República, que tinha sido muito empolado e muito manipulado pelo Partido Socialista. ...
Agora, eu conhecia e sabia da
existência do 25 de Novembro desde agosto de 1975, quando eu era oficial
nos comandos e quando o 25 de Novembro começa a ser preparado aqui, em
Portugal. Em parte, através da Constituição ainda clandestina da
associação de comandos, em parte também com as visitas que eram feitas
ao Regimento pelo então coronel Soares Carneiro, que esteve também
depois envolvido e da relação pessoal que eu tinha com o José Neves. Eu
era o representante do Regimento de Comandos na Assembleia do MFA e era
também o representante da Região Militar de Lisboa na Assembleia.
E,
portanto, estava dentro deste processo e fui-me apercebendo das
movimentações que iam ocorrendo à margem de todo esse processo e que vão
culminar, em parte, na Assembleia de Tancos. Que é uma Assembleia onde
estou presente, porque eu sou ainda, oficialmente, o delegado do
Regimento de Comandos e também o delegado da região militar de Lisboa.
Nisto
aparece o Jaime Neves, com um outro oficial dos Comandos, como
representantes do Regimento. Não houve nenhum conflito entre nós porque
não era o local para se haver conflito desse género. Mas levou quando
nós regressámos à Amadora, aquilo que era comum fazemos, era debriefing
das reuniões que normalmente era eu que fazia. Apresentava a situação
aos meus camaradas, cada um deles pronunciava-se e discutíamos os
assuntos democraticamente nas chamadas assembleias de unidade.
Nessa
reunião, o Jaime Neves diz: 'Não, eu é que vou falar e depois fala aqui
o Arnaldo Cruz.' Eu assisti, ele falou, disse o que tinha para dizer.
Eu já não disse mais nada porque entendi que não devia dizer mais nada.
Quando saímos da reunião, fui ao meu gabinete, depois fui ao gabinete do
Jaime Neves e disse: 'Olha, fazes favor de me passar a guia de marcha
para o Estado Maior do Exército, porque eu vou-me já embora. Já!'
E é assim que sai dos comandos?
Saí dos comandos. Arrumei os meus pertences, que também eram poucos, sempre poucos. Porque sabia que era este um golpe que estava a ser montado e sabia também de outras movimentações que estavam ligadas ao Grupo dos Nove.
Mas esta preparação militar não é feita em consonância com os Nove?
A preparação militar do golpe é feita, do meu ponto de vista, à margem dos Nove. E é feita sob o comando do Ramalho Eanes. Isto é, para entendermos o que é o 25 de Novembro, é um golpe conduzido do exterior, um golpe dos Estados Unidos e é um golpe dentro da sequência - da estratégia - que os Estados Unidos tinham.
Nos anos 70, debaixo da designação geral da détente, em que se procurou um equilíbrio e uma convivência entre os Estados Unidos e a NATO, por um lado, e por outro a União Soviética e o Pacto de Varsóvia. Isto culminou nos Acordos de Helsínquia de controlo de determinado tipo de armamento.
Aquilo que a revolução portuguesa introduz como fator de perturbação é o surgimento de um movimento popular, num Estado da NATO, e que punha em causa o equilíbrio de forças e fundamentalmente enfraquecia estrategicamente o flanco sul da NATO. Em [19]74, temos na Grécia uma agitação social já profunda de contestação à chamada ditadura dos coronéis. Além disso, havia uma tradição - que vem desde a Segunda Guerra Mundial - de um Partido Comunista grego forte e autónomo. Havia um movimento fortíssimo e considerado pelos Estados Unidos perigoso de compromisso histórico em Itália entre a Democracia Cristã de Aldo Moro e o Partido Comunista de Berlinger, que levou ao assassino do Aldo Moro. Havia uma agitação social grave e profunda em França, com a aproximação dos socialistas ao poder. Havia a ideia, que se veio a comprovar, do final da ditadura de Franco, que estava já prestes a morrer, vai morrer em novembro de 1975, no dia 22.
Portugal era uma pedra não controlável que poderia, por um lado, animar as contestações em toda esta margem norte do Mediterrâneo e fundamentalmente podia prejudicar a transição que se queria muito pacífica da Espanha para a democracia. E é isto que faz com que os Estados Unidos tenham de intervir. Os Estados Unidos, em termos estratégicos, eu era militar, era?! Não sei se ainda sou, mas enquanto militar tinha estudado estratégia e percebia isto.
Os
Estados Unidos orientam toda a sua ação em termos internacionais até
hoje por dois vetores: a teoria do alinhamento ou da lealdade. Isto é,
em que medida é que cada um dos Estados é leal e está alinhado com a
política dos Estados Unidos? Este é um ponto. O outro é o da contenção.
Eu tenho de estar onde o inimigo quer estar e tenho de o impedir. É com
estes dois vetores que os Estados Unidos interveem em Portugal. A
primeira ação em que os Estados Unidos revelam as grandes preocupações
têm com Portugal aconteceu em outubro de 1974. Quinze dias depois da
demissão de Spínola. É uma reunião que é realizada em Washington, onde
está o Henry Kissinger, de um lado, e do outro o Presidente Costa Gomes,
acompanhado por Mário Soares enquanto ministro dos Negócios
Estrangeiros. É a célebre conversa em que o Kissinger diz a Mário
Soares: 'O senhor vai ser o Kerensky português' e Mário Soares responde:
'Mas eu não quero ser o Kerensky.' E o Kissinger volta responder: 'Mas
o Kerensky também não queria ser o Kerensky.'
E é a partir daí que
as antenas dos Estados Unidos se viram aqui para Portugal, com as
preocupações sempre a aumentar. O que faz com que, em janeiro, logo no
início do ano, venha para Portugal um especialista em contra-golpes no
terreno: Frank Carlucci. Ele tinha estado envolvido no golpe do Brasil.
Tinha estado também no Congo...
No Congo e, além disso, já era o patrão do golpe do Pinochet no Chile. É muito interessante nós repararmos que os padrinhos do 25 de Novembro, da defesa, da democracia e do anticomunismo são os chefes do golpe do Pinochet, que não tem nada que ver nem com a democracia, nem com os Direitos do Homem. E vemos um agente da CIA dublê em embaixador, que já tinha estado no golpe do Congo - a primeira grande intervenção dos Estados Unidos em África e que está no golpe dos generais do Brasil.
E
esses é que vão ser então os patronos do golpe e aquilo que é muito
conversado, que é a divergência entre Carlucci e o Kissinger. Tudo isto
está publicado num livro muito interessante. “Os Americanos na Revolução
Portuguesa” do Bernardo Gomes e do Tiago Moreira de Sá, onde isto está
lá tudo explicado.
Kissinger é sempre adepto de um golpe de cortar.
O Carlucci é adepto de fazer uma negociação. E essa negociação é feita
entre os Estados Unidos e a Europa, através de um grupo da Internacional
Socialista, que é constituído pelo Willy Brandt, pelo Bruno Kreisky,
Giscard d'Estaing, que não era socialista mas também está, e pelo James
Callaghan da Inglaterra.
E é através deste grupo que são
transferidos milhões de dólares dos Estados Unidos para a Europa através
da Internacional Socialista e que permitem investir fortemente nas
eleições do 25 de Abril de 1975, que o Partido Socialista ganha. Eu
sabia desta história e penso que esta ideia dos Estados Unidos
intervirem aqui em Portugal é aquilo que é decisivo.
Faz pôr o golpe em marcha?
Sim
e o homem que é a chave deste processo é o Melo Antunes. Isto é, o Melo
Antunes é escolhido por Carlucci para ser o seu homem aqui em Portugal.
E tem como primeiro objetivo o derrube do V Governo provisório. Vasco
Gonçalves é que é o diabo deste processo e a questão é colocada em
termos de chantagem: ou o Vasco Gonçalves sai do Governo ou não há
aviões americanos para fazer a ponte aérea de Angola para Portugal. E
Melo Antunes escolhe Ramalho Eanes para chefe do Grupo Militar. E é este
grupo militar que vai ter depois como força de manobra principal o
Regimento de comandos.
O golpe em si mesmo é um corte com um
processo revolucionário que tinha ultrapassado os compromissos que
haviam sido estabelecidos porque quer o Partido Socialista quer o
Partido Comunista não controlavam as massas. Esta é uma das grandes
questões que o próprio Partido Comunista tem: não ter o controle sobre
os seus militantes e sobre os seus aderentes. Aquilo que é específico no
processo político português e que causa o alarme é a força do movimento
popular e é a sua inorganicidade. Ou seja, quem é que era responsável
por isto? Podemos dizer, era o Otelo, mas o Otelo nunca se assumiu como
um salvador da pátria, nem como um condottiero, nem como o profeta que
vai à frente da multidão. Nunca assumiu isso e daí que fosse necessário
fazer esse corte radical com a desordem.
Aquilo que se fala,
aquilo que é apresentado como razão para o 25 de Novembro... Há uma que é
a chamada justificação para os pobres de espírito e crentes em toda a
verdade que é: havia o papão do Partido Comunista e, portanto, nós íamos
trocar a águapé pela vodka e passávamos todos aqui a dançar a kalinka
em vez do vira e há muita gente que acreditou nisso. A Igreja Católica
assumiu esse tipo de discurso. A outra questão real, que está, aliás,
muito expressa no documento dos Nove é que é necessário que o Estado
seja forte. Que haja um Estado que imponha a ordem e um Estado que
represente a sociedade portuguesa em termos internacionais. E isto era
decisivo para os Estados Unidos, na medida em que se estava no limite da
independência de Angola. E era necessário um Estado para assumir.
Mas, curiosamente, era necessário que esse Estado não fosse o Estado responsável pela descolonização, porque era previsível que a descolonização criasse, como criou em todas as descolonizações mundiais, movimentos de culpabilização de revanche. E o que vai acontecer? Curiosamente é que a independência de Angola se vai dar em 11 de novembro e o 25 de Novembro vai ocorrer 14 dias depois. O que quer dizer que o novo regime já não pode ser acusado das questões que vão ficar com a descolonização de Angola. Porque a descolonização e o poder em vão ser dirimidos entre os Estados Unidos e a União Soviética. E é isto que é o 25 de Novembro.
Tudo o resto depois é a implantação, aqui em Portugal, de um modelo uniformizado, padronizado de regime de representação parlamentar, que é idêntico ao de todos os outros países europeus que vêm desde a Segunda Guerra Mundial.
Voltemos a setembro e à Assembleia de Tancos. Depois dessa Assembleia e depois da esquerda militar perder poder ainda se justificava? Ainda era necessário o golpe?
O golpe era necessário porque é necessária uma representação do corte. E era necessário haver sangue. E é por isso que o Regimento de Comandos vai assaltar um quartel que está de prevenção. O que é normal estar fechado e arromba a porta com a chaimite do comandante. E há disparos porquê? Porque era fundamental haver sangue e estava previsto que, se não houvesse ...
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