Opinião |José Goulão
Catorze certezas da vitória terrorista em Damasco
Por José Goulão
Segunda, 09 de Dezembro de 2024
A
nova situação criada em Damasco proporciona condições para que seja
dado mais um passo importante na estratégia sionista, dos Estados
Unidos, da NATO e da União Europeia, para desmembramento dos grandes
Estados seculares do Médio Oriente.
CréditosBilal Alhammoud / EPA
Uma
primeira advertência ao leitor. Esta é uma leitura ainda a quente do
que está a passar-se na Síria, e as leituras a quente são um risco,
principalmente quando se fazem a partir do exterior e sob uma enxurrada
de dislates mediáticos que factualmente dizem o mesmo, lugares comuns, e
depois espremem a imaginação num combate imbecil travado nos campos do
atrevimento, da mentira e, sobretudo, da ignorância.
Por
tudo isto, os leitores que me perdoem algumas imprecisões em relação ao
futuro próximo, porque entre as certezas possíveis há muitos elementos
factuais em falta.
Uma
primeira certeza: o presidente Bashar Assad caiu, essencialmente, porque
agravou a situação nos últimos tempos, desde 2015, ao não capacitar o
exército nacional para resistir ao crescimento e reforço da capacidade
militar, que não eram segredo, da al-Qaida (renomeada Hayat Tharir
al-Sham – HTS – por recomendação das forças estrangeiras de intervenção,
ocidentais, desejando assim disfarçar o seu apoio directo ao terrorismo
da organização fundada por Bin Laden). Além disso, Bashar Assad e os
seus comandos militares minimizaram uma situação de guerra que apenas
baixou de intensidade a partir de 2017 e num quadro onde 30% do
território permanecia em mãos de grupos armados ao serviço de interesses
estrangeiros e do objectivo de derrubar o regime.
Assad
fragilizou igualmente a sua posição ao rejeitar um projecto de
Constituição proposto pela Rússia, na sequência do processo de Astana
(participação de Moscovo, Ancara e Teerão), elaborado com respeito
estrito pelo direito internacional e as normas da ONU.
Uma
segunda certeza: os terroristas da al-Qaida ou HTS, chefiados pelo
encartado seguidor de Bin Laden chamado Abu Mohammad al-Julani, deitaram
as mãos a Damasco para se apoderarem dos instrumentos do Estado – o
mais antigo do mundo – e tentarem assim estender, quando sentirem
chegada a altura (se chegar), a sua «lei islâmica» a todo o país.
Terceira
certeza: al-Julani e o seu grupo são ainda considerados terroristas
pelos Estados Unidos da América (e também pela União Europeia); todas as
tentativas de sectores do Estado profundo norte-americano para retirar a
al-Qaida, al-Nusra ou HTS, os seus heterónimos, da lista de grupos
terroristas foram vetadas pelos próprios órgãos legislativos dos Estados
Unidos: Congresso e Senado.
Isso
não impediu, contudo, que um al-Julani com a barba bem aparada, um
penteado e uma indumentária ao estilo ocidental tenha sido amigavelmente
entrevistado pela Voz da América, porta-voz da CIA e do regime
norte-americano, para expor o seu novo linguajar e simular distanciar-se
– no visual e no discurso – da sua essência terrorista. A biografia
deste capo fascista explica que tanto a al-Qaida como o ISIS ou Estado
Islâmico lutaram para recrutar o então jovem e prometedor al-Julani,
optando este pela agremiação de Bin Laden. E a população da região de
Idlib, permanentemente ocupada pela al-Qaida desde o início da
intervenção estrangeira, pode muito bem explicar, por experiência
própria, o terror que é ser governado por al-Julani.
«Os
terroristas da al-Qaida ou HTS, chefiados pelo encartado seguidor de
Bin Laden chamado Abu Mohammad al-Julani, deitaram as mãos a Damasco
para se apoderarem dos instrumentos do Estado – o mais antigo do mundo –
e tentarem assim estender, quando sentirem chegada a altura (se
chegar), a sua "lei islâmica" a todo o país.»
Quarta
certeza: a queda de Bashar Assad e a tomada do poder por al-Julani –
foi isto que aconteceu, por muito que a rede mundial de propaganda tente
garantir que não é bem assim – significa uma vitória da intervenção
militar dos Estados Unidos, da União Europeia e da NATO, por interpostos
grupos terroristas, iniciada em 2011 na Síria. Por outro lado, traduz
uma derrota da Rússia, que foi forçada a deixar cair Assad quando este
assumiu desviar-se dos contornos da aliança com Moscovo. Além disso,
confirmou-se que a prioridade de Moscovo é resolver favoravelmente os
problemas criados pelo regime nazi-banderista de Kiev.
Quinta
certeza: começa agora verdadeiramente a guerra civil na Síria. Até aqui
estivemos perante uma intervenção estrangeira ao serviço dos interesses
económicos, geopolíticos e geoestratégicos do mundo ocidental, com os
Estados Unidos à cabeça, os quais, pela voz de Donald Trump, no seu
primeiro mandato presidencial, admitiram estar a roubar o petróleo
sírio.
Tudo indica que
será uma guerra civil entre as várias facções que lutaram contra Assad,
principalmente as Forças Democráticas Sírias (curdos do YPG e
contingentes do ISIS treinados na base de al-Tanf, ocupada por tropas
norte-americanas), e o Exército Nacional Sírio (um ramo das forças
armadas da Turquia e da NATO), cada uma com as suas zonas de influência.
Além disso, há uma nebulosa de grupos e milícias armadas, cada qual com
os seus próprios interesses regionais, religiosos e étnicos que não
ficarão de fora nos confrontos que irão seguir-se durante o falacioso
«período de transição».
As
Forças Democráticas Sírias são também militarmente apoiadas pelos
Estados Unidos, como a HTS, mas perseguidas pela Turquia, no âmbito da
sua guerra contra os curdos, onde quer que eles estejam. Nesta frente
específica existe, portanto, uma oposição militar entre os regimes de
Washington e Ancara, isto é, uma guerra fratricida no interior da NATO.
Na prática, todas estas organizações, incluindo o HTS, são apoiadas
pelos Estados Unidos e a NATO, formando o chamado grupo dos «rebeldes
moderados» – apesar de nele existir uma facção considerada «terrorista»
por Washington. Mais um exemplo da conhecida coerência ocidental, «a
nossa civilização».
Uma vitória do procurado Benjamin Netanyahu
Sexta
certeza: a tomada de poder por al-Julani significa uma enorme vitória
do sionismo comandado por Benjamin Netanyahu, conhecido aliado dos
terroristas islâmicos, ao ponto de lhes dar rectaguarda em acampamentos e
hospitais no interior de Israel e no sector ocupado dos Montes Golã.
São conhecidas as centenas de bombardeamentos aéreos israelitas contra
território sírio em apoio do HTS e também no âmbito da sua guerra contra
o Hezbollah e o Irão.
Esta
vitória do terrorismo islâmico e o previsível fracionamento da Síria
abre mais uma via na concretização do objectivo maior do sionismo
internacional, a criação do Grande Israel do Nilo ao Eufrates, rio que
passa na região Leste e Norte do território sírio.
Sétima
certeza: a queda de Damasco é uma grande vitória da Turquia, no âmbito
da teoria expansionista do neo-otomanismo praticada pelo neo-sultão
Erdogan. Ancara fica também com o caminho muito mais livre para
prosseguir a perseguição contra o povo curdo no interior da Síria.
Oitava
certeza: a nova situação criada em Damasco proporciona condições para
que seja dado mais um passo importante na estratégia sionista, dos
Estados Unidos, da NATO e da União Europeia, para desmembramento dos
grandes Estados seculares do Médio Oriente; o objectivo é criar pequenas
entidades de cariz étnico e religioso teleguiadas de fora e
inofensivas, facilitando assim a expansão do controlo militar e
económico sionista e imperial sobre o Médio Oriente, além de reforçar o
domínio económico e o saque das matérias-primas da região,
principalmente petróleo e gás natural. Essa estratégia funcionou no
Iraque e na Líbia e os resultados estão à vista de todos.
«Começa
agora verdadeiramente a guerra civil na Síria. Até aqui estivemos
perante uma intervenção estrangeira ao serviço dos interesses
económicos, geopolíticos e geoestratégicos do mundo ocidental, com os
Estados Unidos à cabeça, os quais, pela voz de Donald Trump, no seu
primeiro mandato presidencial, admitiram estar a roubar o petróleo
sírio.»
Uma nota a reter:
o caso sírio demonstra, uma vez mais, que uma das mais importantes
estratégias ocidentais no caminho do globalismo é o desmembramento dos
Estados e organizações transnacionais que defendem a vigência do direito
internacional e não reconhecem a ordem internacional baseada em regras.
A intenção expressa manifestada por círculos ocidentais de fraccionar a
Rússia numa miríade de Estados, no seguimento da implosão da União
Soviética, teve agora uma confirmação de grande envergadura.
Nona
certeza: o mais antigo Estado do Mundo, um mosaico de comunidades,
religiões, etnias e confissões, que permaneceu unido e cordato durante
séculos, até ao início da invasão ocidental em 2011, segue rapidamente a
caminho do desmoronamento e da extinção, não sendo difícil de prever as
perseguições e o terror contra comunidades minoritárias, designadamente
os cristãos ainda apegados a ritos e tradições do tempo de Jesus
Cristo.
Desde o início da
agressão ocidental o número de cristãos na Síria desceu de sete para
três por cento da população. Em numerosas aldeias cristãs como
al-Sukhna, Kanayé, Maloula, Chabadin e Bakha as populações sobreviventes
podem testemunhar o terror e os episódios de matanças a que têm sido
submetidas pelos grupos ditos islâmicos «rebeldes» e «moderados», no seu
papel de procuradores da NATO. Nas três últimas aldeias citadas fala-se
ainda o aramaico, língua que era usada há dois mil anos, nos tempos de
Cristo.
Décima certeza: a
queda de Damasco nas mãos de terroristas sunitas, aliados objectivos do
sionismo, encoraja ainda mais o Estado de Israel a desenvolver a tão
desejada guerra contra o Irão xiita, outro caminho possível para a
guerra nuclear. A transformação e eventual extinção da Síria enfraquece
profundamente o chamado Eixo da Resistência, a única entidade que, no
panorama internacional e regional, tem feito frente aos desígnios do
sionismo internacional e lutado de maneira consequente pela aplicação do
direito internacional para que sejam respeitados os direitos
inalienáveis do povo palestiniano.
Democracia? Nem vê-la
Décima
primeira certeza: da mesma maneira, o Líbano fica ainda mais
fragilizado perante o sionismo porque a ascensão sunita na Síria é um
golpe muito sério para o Hezbollah, movimento de base xiita responsável
pela resistência nacional e pelas derrotas humilhantes infligidas ao
Estado de Israel, mantido em respeito quanto às suas ambições em
território libanês. Israel pretende ocupar parte do Sul do Líbano como
tampão para os ataques contra a região norte do país, a Galileia, além
de, a partir de agora, ter praticamente garantido o acesso franco às
jazidas petrolíferas recentemente descobertas no Mediterrâneo Oriental e
que vem disputando com Beirute, naturalmente com objectivos
cleptómanos, perante os quais o direito internacional e o direito
marítimo de nada valem.
Décima
segunda certeza: o histórico das guerras imperiais, principalmente as
mais recentes desde a longa e fracassada intervenção militar no
Afeganistão, prova que essas acções terroristas nada têm a ver com a
implantação da democracia e a democratização dos países atacados – ao
contrário do que rezam a propaganda e a opinião única que nos subjuga
ou, pelo menos, pretende subjugar-nos. Olhemos para o regresso dos
Talibãs a Cabul, para a situação caótica dos poderes regionais
fragmentados no Iraque – com o governo oficial barricado em
fortificações para lá da «linha verde» em Bagdade – e para o
desaparecimento, em termos reais, do Estado líbio: fica claro o que
significam democracia e democratização no discurso ocidental.
Décima
terceira certeza: o caso sírio é mais um exemplo do tipo de respeito
que os Estados membros das organizações e alianças ocidentais cultivam
em relação aos acordos que assinam com partes terceiras. A Turquia
estabeleceu com a Rússia e o Irão, em Setembro de 2017 em Astana, um
acordo segundo o qual tudo fariam para reduzir a intensidade dos
combates de modo a criar condições para estabelecer uma plataforma
política capaz de assegurar uma nova, mais pacífica e mais inclusiva
realidade nacional síria.
«O
histórico das guerras imperiais, principalmente as mais recentes desde a
longa e fracassada intervenção militar no Afeganistão, prova que essas
acções terroristas nada têm a ver com a implantação da democracia e a
democratização dos países atacados – ao contrário do que rezam a
propaganda e a opinião única que nos subjuga ou, pelo menos, pretende
subjugar-nos.»
O regime
de Ancara, ao invés, aproveitou a espécie de limbo criado por este
acordo para reforçar o apoio ao HTS e ao Exército Nacional Sírio e criar
condições para o levantamento armado com efeitos fulminantes que agora
se registou.
Em relação
ao acordo de Astana, tal como aconteceu com os acordos de Minsk sobre a
Ucrânia, ficou demonstrado que países da NATO, como a França, a Alemanha
e a Turquia, e a aliança propriamente dita, assinam entendimentos com
outras nações e entidades deliberadamente de má-fé, explorando afinal as
decisões orientadas para a procura de soluções pacíficas e as garantias
dadas por eles próprios como instrumentos para promover o regresso à
guerra com capacidade e intensidade redobradas.
Este
comportamento é, como se demonstra, um pilar da essência da NATO. E o
regime russo caiu por duas vezes na armadilha em menos de uma década.
Décima
quarta certeza: existe uma aliança operacional militar entre o
nazi-banderismo do regime de Kiev e os grupos fascistas que se reclamam
do islamismo e assumiram agora o poder em Damasco. O regime de Zelenski
treinou bandos de mercenários «islâmicos» em território ucraniano para
depois se infiltrarem na Síria, recorrendo aos prestimosos serviços dos
banderistas do Azov e dos conselheiros da NATO – na «reserva», é claro,
presentes no terreno, pelo menos a partir do golpe da praça Maidan, em
2014. A colaboração entre as forças nazis ucranianas e os terroristas
ditos islâmicos, sobretudo os oriundos de territórios da antiga União
Soviética, remonta pelo menos a 2009, segundo investigações
independentes que têm vindo a ser publicadas – e censuradas nos media
globais.
Os terroristas
na Síria receberam informações sensíveis do GRU, o serviço de espionagem
e polícia política do regime de Kiev, conforme revelaram dirigentes
desta instituição; além disso, o aparelho militar banderista forneceu
drones e meios de guerra electrónica à al-Qaida e afins, que estes
utilizaram na etapa decisiva da agressão estrangeira identificando alvos
e «cegando» comunicações do exército ao serviço de Assad.
Conclusão
a extrair no imediato: a queda de Damasco nas mãos da al-Qaida e seus
vários heterónimos representa uma vitória da estratégia ocidental e da
NATO, em particular o recurso operacional ao terrorismo dito islâmico,
para destruir Estados fortes e seculares do Médio Oriente. Esta vitória
foi alcançada contra a corrente da história actual, no sentido da
multipolaridade, podendo significar um novo fôlego da ordem
internacional imperial e colonial «baseada em regras» para se impôr à
instauração global da vigência do direito internacional. Porém, tal como
aconteceu no Afeganistão, onde os Talibãs sucederam aos Talibãs vinte
anos depois; ou na Líbia, onde o caos montado pela invasão atlantista
dificulta a exploração plena pelo Ocidente dos recursos naturais do
território; ou no Iraque, onde as forças de ocupação da NATO, entre as
quais predomina o contingente norte-americano, não têm um momento de
sossego devido aos sucessivos ataques de forças patrióticas, pode
acontecer que o êxito alcançado em Damasco não passe de uma patética
vitória de Pirro, embora criminosa, devastadora e sangrenta, e o feitiço
acabe virar-se contra o feiticeiro.
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