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25 de fevereiro de 2023

General Raul Luís Cunha e General Carlos Branco

 Dois textos a ler

1  24 de fevereiro marca o início da Operação Militar da Rússia na Ucrânia. 

Maj general Raul Luís Cunha

Há um ano que começou esta operação militar e os combates inerentes, e a Rússia a continuar a ser objecto de imensas acusações.  “É um país agressor e imperialista, é a grande ameaça ao mundo ..." – e isto é apenas uma amostra do que os media ocidentais dizem sobre a Rússia. Mas em qualquer conflito, é necessário ouvir ambos os lados!
Para compreender as causas dessa operação militar, é imperioso voltar ao passado – à época do colapso da URSS e assim vejamos um resumo das ocorrências:
• Em 1991, a Ucrânia separou-se da URSS e na sua ”Declaração de Independência” proclamou a intenção de se tornar num estado permanentemente neutral, ou seja, num estado que não faria parte de qualquer bloco militar. A Rússia declarou então o princípio de não intervenção nas ex-repúblicas da URSS, desde que a situação nesses estados não constituísse uma ameaça à sua segurança.
• A Rússia tentou integrar-se na comunidade ocidental. Mas, em vez de amizade e assistência mútua, foram sendo criados focos de tensão ao longo das suas fronteiras e as bases militares da OTAN foram-se aproximando. 
• Em 2004-2005, aconteceu a primeira revolução laranja na Ucrânia. Como resultado chegaram ao poder os apaniguados do Ocidente. Foram apoiados pelo oeste da Ucrânia, mas não pelo leste, onde historicamente vive uma população que é predominantemente russa. Naquela ocasião foi evitada uma guerra civil, mas verificou-se de facto uma divisão social.
• Nessa altura, sempre que no governo em Kiev estavam governantes pró-ocidentais eram violados os acordos assinados anteriormente, nomeadamente o Acordo de Belavezha no qual a Ucrânia se comprometia a permanecer neutral, e então progredia na aproximação à OTAN.
• Em 2014 ocorreu um golpe de estado em Kiev, como resultado deu-se uma limpeza geral no governo pró-russo de então e uma elite totalmente pró-ocidental apoiada pelas organizações nazis ocupou ilegalmente o poder. Os cidadãos das regiões de Donetsk e Lugansk (Donbass), não aceitaram essa mudança de poder e juntaram-se à oposição. Kiev respondeu com o exército, bombardeamentos e ataques armados de organizações extremistas nazis, tais como o “batalhão azov”.
• Assim, começou em 2014 a guerra no Donbass, em que inicialmente as forças separatistas foram constituídas por civis voluntários e armados por forças desertoras do exército ucraniano que se rebelaram contra o governo e se lhes juntaram. Durante os últimos oito anos, a Ucrânia tem persistido nos ataques a alvos civis e nas ações persecutórias e de tortura pelas forças extremistas nazis, e isso continua até aos dias de hoje.
• O governo em Kiev incitou ao ódio étnico por meio dos media e de programas educacionais. Uma das primeiras leis preparadas pelo novo governo após o golpe de 2014, foi a lei sobre a proibição da língua russa (que é nativa para mais de 40% da população e tendo sido o meio de comunicação para cerca de 80% dos ucranianos). Entretanto, os sentimentos nazis começaram a ganhar força na sociedade.
• Para estabilizar a situação entre Kiev e as repúblicas do Donbass, foram assinados os acordos de Minsk. Os primeiros acordos surgiram em 2014 e houve uma revisão em 2015. Algumas das principais condições eram um cessar-fogo na região e a aceitação da autonomia das repúblicas. A Rússia era apenas um dos garantes do acordo, tal como a Alemanha e a França. Sabe-se agora que, em segredo, os acordos de Minsk serviram apenas para o Ocidente ganhar tempo de forma a que a Ucrânia reforçasse o seu armamento e aumentasse a sua capacidade e força militar. 
• Como resultado dos bombardeamentos e combates no Donbass, durante esses oito anos, morreram milhares dos seus habitantes – de acordo com estatísticas no início de 2022, já havia então cerca de 14.000 mortos.
• Em dezembro de 2021, a Rússia tentou evitar um conflito militar e desenvolveu um projecto de não expansão da OTAN para o leste, a fim de obter garantias de segurança. Mas essas iniciativas foram ignoradas pelo Ocidente.
• Ao mesmo tempo, o já presidente da Ucrânia – Zelensky, na Conferência de Munique, declarou a intenção da Ucrânia de obter armas nucleares, e os dados sobre o planeamento de um ataque maciço do exército ucraniano ao Donbass e à Crimeia caíram nas mãos da agência de informações da Federação Russa.
• A 17 de fevereiro, o exército ucraniano, que já tinha então cerca de 150.000 homens nessa região, desencadeou um feroz bombardeamento com armas pesadas às repúblicas separatistas, perfazendo cerca de 100 vezes mais violações de cessar-fogo face às anteriores e começou, inclusivamente, a movimentar forças para posições de ataque com vista à definitiva eliminação das populações russas locais.
• Nessas condições, a Rússia reconheceu as repúblicas do Donbass e decidiu defendê-las, iniciando as operações militares na Ucrânia em 24 de fevereiro.p

A pior solução para os europeus é não considerarem a Ucrânia um interesse vital e acabarem por ter de morrer por ela. Washington sabe o que quer e o que está a fazer. Os dirigentes europeus nem por isso.


A esmagadora maioria dos comentadores nacionais afirma de modo convicto e determinado que “a Ucrânia vai ganhar a guerra”, “a Ucrânia tem de vencer”, como se a insistente oralização de uma vontade fosse suficiente, e a capacidade para a concretizar um aspeto de menor importância. Questionar o dogmatismo subjacente a esta certeza tornou-se sinónimo de apoio e alinhamento com as posições de Moscovo.

Entenda-se por ganhar a guerra, o regresso dos territórios presentemente anexados pela Federação da Rússia ao controlo de Kiev, Crimeia incluída, com a consequente expulsão das forças russas do território ucraniano, ao que se juntará a adesão de Kiev à NATO e à União Europeia (UE).

A retirada das forças russas de Kherston e da região de Kharkiv, no outono de 2022, deu aos observadores menos informados a sensação de que seria possível à Ucrânia derrotar a militarmente a Rússia. Essa situação parece estar a inverter-se, com a iniciativa estratégica e tática a pertencer às forças russas. Mas muita água ainda passará por debaixo da ponte até chegarmos a um resultado definitivo.

Contudo, parece avisado considerar a possibilidade dessa vontade não se concretizar. Não tendo as opções adotadas até ao momento conduzido ao sucesso de Kiev – apenas evitaram a sua derrota política e militar – num conflito que já dura há um ano, justifica-se interrogar que outros caminhos poderão conduzir ao seu triunfo, e, por acréscimo, à vitória geopolítica dos EUA.

Os objetivos estratégicos de Washington variaram ao longo deste ano de conflito. O plano inicial consistia na derrota militar da Rússia, e, no seguimento disso, provocar uma mudança de regime em Moscovo (como se essa derrota significasse automaticamente a colocação no Kremlin de elementos liberais afetos a Washington, prática testada noutros locais, nem sempre com sucesso).

Numa versão maximalista, essa mudança de regime poderia provocar a substituição de Putin por um dirigente mais “à Ieltsin”, a médio prazo a fragmentação da Rússia, inviabilizar a aproximação estratégica e económica entre a Rússia e a Europa, em particular com a Alemanha, e acabar de vez com as pretensões europeias de autonomia estratégica. O desvario passou a incluir na agenda a narrativaincluir na agenda a narrativa sobre a colonização russa, e Biden a chamar assassino a Putin.

O plano previa a manutenção do confronto ao nível convencional sem escalar para o patamar nuclear, de acordo com a doutrina norte-americana sobre o assunto. Veja-se o que foi escrito pela RAND Corporation sobre uma possível confrontação militar com a China. O mesmo princípio aplica-se à situação que estamos a viver na Ucrânia. Não interessa a Washington que a guerra se transforme em nuclear.

Foi esclarecedora a reação norte-americana à tentativa de Kiev envolver a NATO no conflito, quando um míssil S-300 se despenhou em território polaco, incriminando de imediato a Rússia. A inequívoca autoria russa do ataque, propalada sem qualquer hesitação (e investigação) por Zelenski e altos dirigentes polacos e lituanos (assim como por alguns comentadores nacionais), foi engolida num ápice, após uma conversa telefónica com o presidente Biden, vindo a darem o dito por não dito.

Perante a dificuldade em atingir esse objetivo estratégico, os EUA reformularam-no, agora numa “versão mais meiga”, apostando “apenas” no enfraquecimento da Rússia, não só militar como económico. A Secretária do Tesouro norte-americana afirmou serem as sanções para continuar, mesmo que a Rússia ganhe a guerra, independentemente do entendimento que se possa ter sobre isso. Esta reformulação de objetivos estratégicos não exclui a possibilidade de a Ucrânia não conseguir recuperar a sua integridade territorial.

No final de um ano de guerra, ao contrário do que era previsto por várias instâncias, a economia russa não colapsou, e as sanções estão longe de produzirem os resultados desejados. Putin reforçou o seu poder, e a base tecnológica e industrial de defesa russa mostrou-se capaz de dar resposta aos desafios que lhe têm sido colocados, o que parece não ter sido o caso das ocidentais, que se mostraram razoavelmente incapazes de responderem às necessidades militares de Kiev, pelo menos com oportunidade, apesar da colossal ajuda já disponibilizada.

Estas conjeturas fazem tábua rasa do facto de uma potência nuclear não poder perder uma guerra convencional, ainda por cima às suas portas, assumindo contornos existenciais. Já o mesmo não se pode dizer de guerras assimétricas, em que potências nucleares perderam várias.

Os que afirmam que a Ucrânia tem de/vai ganhar a guerra terão de explicar como, uma vez que a fórmula a que se recorreu até agora não deu os resultados desejados.

O recurso sistemático a avultada ajuda financeira (ronda os 110 mil milhões de dólares), o fornecimento de armamento e munições, intelligence e treino das forças armadas ucranianas ajudou a evitar a sua derrota, mas não conduziu à vitória.

Primeiro, foi entregue equipamento de origem soviética ainda na posse dos países que pertenceram ao Pacto de Varsóvia e, depois, de equipamento ocidental. Segundo fontes russas, a Ucrânia teria recebido de países da NATO, desde dezembro de 2021, 1.170 sistemas de defesa aérea, 440 carros de combate, 1.510 veículos de combate dede infantaria e 655 sistemas de artilharia. Apesar do insucesso desta opção, continua a insistir-se nela.


Quando este texto foi escrito, iniciava-se mais uma entrega massiva de equipamento militar à Ucrânia, que poderá ser anacrónica e de reduzida utilidade se não for entregue em tempo.

Se esta última tentativa voltar a falhar, uma hipótese com elevada probabilidade de ocorrência, qual o passo seguinte que a Europa estará disposta a dar? Envolver-se militarmente no conflito colocando forças no terreno? Como se diz na estratégia, morre-se por interesses vitais, combate-se por interesses importantes, e pelos restantes interesses negoceia-se.

Afinal, o que representa a Ucrânia para a Europa? É um interesse vital, importante ou outro? Se é vital, os europeus têm de estar preparados para lutar e morrer pela Ucrânia.

Até ao momento, parece não existir na Europa muito interesse nisso, nem disposição para envolvimento militar no terreno com tropas. Repetem-se os esclarecimentos de que não estamos em guerra com a Rússia, não obstante, as declarações da ministra alemã dos Negócios Estrangeiros Annalena Baerbock, e de muitos outros, em sentido oposto.

Com poucas exceções, a guerra na Ucrânia tem servido para muitos países se livrarem de armamento obsoleto que jazia há décadas em depósitos, não abrindo mão do seu equipamento mais evoluído tecnologicamente. A isto acresce a falta de preparação em que se encontram a maioria dos países europeus para enfrentar uma guerra deste tipo, tão habituados que estavam às operações de paz.

Se a NATO se envolvesse num conflito com a Rússia, a maioria dos seus Estados-membros teria munições suficientes apenas para alguns dias, uma vez que os seus arsenais se encontram depauperados pela assistência a Kiev.

Os dirigentes políticos europeus terão de clarificar qual a importância que atribuem à Ucrânia, e, consequentemente, dizerem até onde estão dispostos a que nos sacrifiquemos por ela.

Uma sondagem recentemente realizada em Berlim a dois mil alemães adultos – um dos países a ser mais afetado por uma eventual guerra com a Rússia –, a quem foi perguntado o que provavelmente fariam se a Alemanha fosse objeto de um ataque militar semelhante ao ataque russo à Ucrânia, cerca de 5% dos respondentes manifestaram prontidão para pegar voluntariamente em armas, 6% esperavam ser convocados e mobilizados; um em cada três (33%) tentaria continuar sua vida normal, da melhor maneira possível, quase um em cada quatro alemães (24%) deixaria rapidamente o país. Seria muito interessante fazer esse exercício noutros países, sem excluir Portugal.

Nem sempre o empenho retórico dos dirigentes europeus se tem traduzido em medidas coerentes e alinhadas com a retórica. Apesar das permanentes declarações de intenções, a Ucrânia recebeu até ao momento menos de metade do total da assistência financeira com que os países do Ocidente se comprometeram.

Manifestando alguma insatisfação, na recente Conferência de Segurança de Munique, o Chanceler alemão Olaf Scholz repreendeu os aliados por não fornecerem carros de combate à Ucrânia, os mesmos que o pressionaram a autorizar a sua entrega. Quando foi dada luz verde, muitos países descobriram que não tinham carros de combate para dar.

Apesar de não existir na Europa apenas uma resposta sobre como lidar com a guerra na Ucrânia, os europeus têm de esclarecer aquilo que pretendem e atuar em conformidade.

Estão ou não estão em guerra com a Rússia? Não podem considerar a Ucrânia um interesse vital, e depois comportarem-se como se tratasse de um interesse secundário. Como não podem considerar que tratando-se de um interesse secundário, alimentem o esforço de guerra enviando armamento, prolongando o conflito, arriscando a sua escalada, em vez de se envolverem em iniciativas de paz que lhe ponham fim, deixando a outros a responsabilidade de encontrarem uma solução política.

Procurando sol na eira e chuva no nabal, a pior solução para os europeus é não considerarem a Ucrânia um interesse vital e acabarem por ter de morrer por ela.

Washington sabe o que quer e o que está a fazer. Os dirigentes europeus nem por isso. As incongruências escancaram as portas aos falcões e a dirigentes revanchistas não controláveis, que anseiam por condicionar e influenciar a tomada de decisão. O tempo para fazer escolhas começa a escassear. A demora pode produzir consequências irreversíveis.

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