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3 de fevereiro de 2023

O império e as suas marionetes a conduzirem o mundo para última guerra

 Por Chris Hedges

Publicado por  em 30 de Janeiro de 2023 (ver aqui)

Original publicado por  em 29 de Janeiro de 2023 (ver aqui)

 

Everything Must Go – Mr. Fish

 

O apoio da NATO a uma guerra concebida para degradar o exército russo e expulsar Vladimir Putin do poder não está a decorrer de acordo com o planeado. O novo sofisticado hardware militar não vai ajudar.

 

Os impérios em declínio terminal saltam de fiasco militar em fiasco militar. A guerra na Ucrânia, mais uma tentativa de reafirmar a hegemonia global dos EUA, enquadra-se neste padrão.

O perigo é que quanto mais as coisas parecerem terríveis, mais os EUA irão escalar o conflito, provocando potencialmente um confronto aberto com a Rússia.

Se a Rússia realizar ataques de retaliação às bases de abastecimento e treino nos países vizinhos da NATO, a NATO irá quase certamente responder atacando as forças russas. Isso irá incendiar a Terceira Guerra Mundial, o que poderá resultar num holocausto nuclear.

O apoio militar dos EUA à Ucrânia começou com o básico – munições e armas de assalto. A administração Biden, no entanto, rapidamente atravessou várias linhas vermelhas que se tinha auto-imposto para fornecer uma onda de máquinas de guerra letais:

Sistemas antiaéreos Stinger; sistemas Javelin anti-blindados; Howitzers rebocados M777; foguetes GRAD de 122mm; lança-foguetes múltiplos M142, ou HIMARS; mísseis Tube-Launched, Optically-Tracked, Wire-Guided (TOW); baterias de defesa aérea Patriot; National Advanced Surface-to-Air Missile Systems (NASAMS); M113 Armored Personnel Carriers; e agora 31 M1 Abrams, como parte de um novo pacote de 400 milhões de dólares.

Estes tanques serão complementados por 14 tanques Leopard 2A6 alemães, 14 tanques Challenger 2 britânicos, bem como tanques de outros membros da NATO, nomeadamente a Polónia. Seguem-se na lista as munições com urânio empobrecido (DU) e os jactos de caça F-15 e F-16.

Desde que a Rússia invadiu em 24 de Fevereiro de 2022, o Congresso aprovou mais de 113 mil milhões de dólares em ajuda à Ucrânia e às nações aliadas que apoiam a guerra na Ucrânia. Três quintos desta ajuda, 67 mil milhões de dólares, foram atribuídos para despesas militares. Há 28 países a transferir armas para a Ucrânia. Todos eles, com excepção da Austrália, Canadá e Estados Unidos, estão na Europa.

A rápida elevação de equipamento militar sofisticado e a ajuda fornecida à Ucrânia não é um bom sinal para a aliança da NATO.

São necessários muitos meses, senão anos, de treino para operar e coordenar estes sistemas de armamento. As batalhas de tanques – estive na última grande batalha de tanques fora da cidade do Kuwait durante a primeira guerra do Golfo como repórter – são operações altamente coreografadas e complexas. Os blindados devem trabalhar em estreita concertação com o poder aéreo, navios de guerra, infantaria e baterias de artilharia.

Serão muitos, muitos meses, se não anos, até que as forças ucranianas recebam formação adequada para operar este equipamento e coordenar os diversos componentes de um campo de batalha moderno. De facto, os EUA nunca conseguiram treinar os exércitos iraquiano e afegão em guerra de manobras com armas combinadas, apesar de duas décadas de ocupação.

Estive com unidades dos Fuzileiros Navais em Fevereiro de 1991 que empurraram as forças iraquianas para fora da cidade de Khafji, na Arábia Saudita. Fornecidos com equipamento militar superior, os soldados sauditas que aguentavam Khafji ofereceram uma resistência ineficaz.

Ao entrarmos na cidade, vimos tropas sauditas em camiões de bombeiros a ir em direcção ao sul para escapar aos combates. Todo o material militar sofisticado, que os sauditas tinham comprado aos EUA, provou ser inútil porque não sabiam como utilizá-lo.

 

A guerra enquanto laboratório

 

O Presidente dos EUA George H.W. Bush visita as tropas na Arábia Saudita no Dia de Acção de Graças, 1990. (Domínio público, Wikimedia Commons)

 

Os comandantes militares da NATO compreendem que a infusão destes sistemas de armas na guerra não irá alterar o que é, na melhor das hipóteses, um impasse, definido em grande parte por duelos de artilharia ao longo de centenas de quilómetros de linhas da frente. A compra destes sistemas de armas – um tanque M1 Abrams custa 10 milhões de dólares quando o treino e a manutenção estão incluídos – aumenta os lucros dos fabricantes de armas.

A utilização destas armas na Ucrânia permite que sejam testadas em condições de campo de batalha, tornando a guerra um laboratório para fabricantes de armas como a Lockheed Martin. Tudo isto é útil para a NATO e para a indústria de armamento. Mas não é muito útil para a Ucrânia.

O outro problema com sistemas avançados de armas como o M1 Abrams, que têm motores de turbina de 1.500 cavalos de potência que funcionam com combustível de avião a jacto, é que são temperamentais e requerem uma manutenção altamente qualificada e quase constante. Não perdoam a quem os opera e comete erros; de facto, os erros podem ser letais.

O cenário mais optimista para o tempo de instalação de tanques M1-Abrams na Ucrânia é de seis a oito meses, mais provavelmente mais longo. Se a Rússia lançar uma grande ofensiva na Primavera, como esperado, os Abrams M1 não farão parte do arsenal ucraniano.

Mesmo quando chegarem, não irão alterar significativamente o equilíbrio de forças, especialmente se os russos forem capazes de transformar os tanques, tripulados por tripulações inexperientes, em cascos carbonizados.

 

Mais um impulso

 

Tanques Abrams M1A1 dos EUA numa missão durante a Tempestade no Deserto em Fevereiro de 1991. Um combóio Bradley IFV e logística ao fundo. (W. Homes, II, U.S. Navy, domínio público, Wikimedia Commons)

 

Então porquê toda esta infusão de armamento de alta tecnologia? Podemos resumir isto numa palavra: pânico.

Tendo declarado uma guerra de facto contra a Rússia e apelando abertamente ao derrube de Vladimir Putin, os chulos neoconservadores da guerra observam com pavor como a Ucrânia está a ser fustigada por uma implacável guerra de desgaste russa.

A Ucrânia já sofreu quase 18.000 baixas civis (6.919 mortos e 11.075 feridos). Também viu cerca de 8% do total das suas habitações destruídas ou danificadas e 50% das suas infra-estruturas energéticas directamente afectadas por frequentes cortes de energia.

A Ucrânia necessita de pelo menos 3 mil milhões de dólares por mês de apoio externo para manter a sua economia a funcionar, disse recentemente o director-geral do Fundo Monetário Internacional. Cerca de 14 milhões de ucranianos foram deslocados – 8 milhões na Europa e 6 milhões internamente – e até 18 milhões de pessoas, ou 40% da população da Ucrânia, necessitarão em breve de assistência humanitária.

A economia da Ucrânia contraiu-se em 35% em 2022, e 60% dos ucranianos estão agora prestes a viver com menos de 5,50 dólares por dia, de acordo com as estimativas do Banco Mundial. Nove milhões de ucranianos estão sem electricidade e água em temperaturas abaixo de zerodiz o presidente ucraniano.

Segundo estimativas dos Chefes do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, 100.000 soldados ucranianos e 100.000 russos foram mortos na guerra até Novembro passado.

“A minha sensação é que estamos num momento crucial do conflito em que o impulso pode mudar a favor da Rússia se não agirmos de forma decisiva e rápida”, terá dito o ex-senador norte-americano Rob Portman no Fórum Económico Mundial de acordo com um post do The Atlantic Council. “É necessário um impulso”.

 

Apodrecimento palpável do império

 

Terra de Ninguém entre as forças russas e ucranianas durante a Batalha de Bakhmut, Novembro de 2022. (Mil.gov.ua, CC BY 4.0, Wikimedia Commons)

 

Invertendo a lógica, os aduladores da guerra argumentam que “a maior ameaça nuclear que enfrentamos é uma vitória russa”. A atitude arrogante em relação a um potencial confronto nuclear com a Rússia por parte dos líderes de claque para a guerra na Ucrânia é muito, muito assustadora, especialmente tendo em conta os fiascos que eles supervisionaram durante vinte anos no Médio Oriente.

Os apelos quase histéricos para apoiar a Ucrânia como baluarte da liberdade e da democracia por parte dos mandarins em Washington são uma resposta à podridão palpável e declínio do império norte-americano.

A autoridade global da América foi dizimada por crimes de guerra bem conhecidos, torturas, declínio económico, desintegração social – incluindo o assalto ao Capitólio dos EUA em 6 de Janeiro, a resposta atamancada à pandemia, o declínio da esperança de vida e a praga dos tiroteios em massa – e uma série de derrotas militares desde o Vietname ao Afeganistão.

Os golpes, assassinatos políticos, fraudes eleitorais, propaganda negra, chantagem, raptos, campanhas brutais de contra-insurreição, massacres sancionados pelos EUA, tortura em pontos negros mundiais, guerras por procuração e intervenções militares realizadas pelos Estados Unidos em todo o mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial nunca resultaram no estabelecimento de um governo democrático.

Em vez disso, estas intervenções levaram a mais de 20 milhões de mortos e geraram uma repulsa global pelo imperialismo dos EUA.

 

Bombear dinheiro para a máquina de guerra

Em desespero, o império bombeia somas cada vez maiores para a sua máquina de guerra. O mais recente projecto de lei de gastos dos EUA, no valor de 1,7 triliões de dólares, apresentado pelo Congresso incluía 847 mil milhões de dólares para os militares; o total aumenta para 858 mil milhões de dólares quando se consideram as contas que não estão sob a jurisdição dos comités dos Serviços Armados, tais como o Departamento de Energia, que supervisiona a manutenção das armas nucleares e as infra-estruturas que as desenvolvem.

Em 2021, quando os EUA tinham um orçamento militar de 801 mil milhões de dólares, constituía quase 40% de todas as despesas militares mundiais, mais do que o conjunto dos nove países seguintes, incluindo a Rússia e a China, gastaram nas suas forças armadas.

O Pentágono (Joe Lauria)

 

Como Edward Gibbon observou sobre a luxúria fatal do Império Romano pela guerra sem fim:

O declínio de Roma foi o efeito natural e inevitável de uma grandeza imoderada. A prosperidade amadureceu o princípio da decadência; a causa da destruição multiplicou-se com a extensão da conquista; e, assim que o tempo ou o acidente removeram os suportes artificiais, a estupenda estrutura cedeu à pressão do seu próprio peso. A história da ruína é simples e óbvia; e em vez de perguntarmos por que razão o Império Romano foi destruído, deveríamos antes ficar surpreendidos por ele ter subsistido durante tanto tempo“.

Um estado de guerra permanente cria burocracias complexas, sustentadas por obedientes cumpridores, jornalistas, cientistas, tecnocratas e académicos, que servem obsequiosamente a máquina de guerra.

Este militarismo precisa de inimigos mortais – os mais recentes são a Rússia e a China – mesmo quando os demonizados não têm qualquer intenção ou capacidade, como foi o caso do Iraque, de prejudicar os EUA. Estamos reféns destas estruturas incestuosas.

No início deste mês, as Comissões de Serviços Armados da Câmara dos Representantes e do Senado dos EUA, por exemplo, nomearam oito comissários para rever a Estratégia de Defesa Nacional (EDN) de Biden para “examinar os pressupostos, objectivos, investimentos na defesa, postura e estrutura da força, conceitos operacionais, e riscos militares da EDN”.

A comissão, como Eli Clifton escreve no Quincy Institute for Responsible Statecraft, é “composta em grande parte por indivíduos com ligações financeiras à indústria de armamento e empreiteiros do governo dos EUA, levantando questões sobre se a comissão terá um olhar crítico para os empreiteiros que recebem $400 biliões dos $858 biliões do orçamento para a defesa no ano orçamental de 2023″.

A presidente da comissão, observa Clifton, é a ex-Representante Jane Harman (partido Democrata-Califórnia), que “faz parte da direcção da Iridium Communications, uma empresa de comunicações via satélite que recebeu um contrato de sete anos no valor de $738,5 milhões de dólares com o Departamento de Defesa em 2019″.

Relatórios sobre a interferência russa nas eleições e os programas automáticos russos na internet manipulando a opinião pública – que a recente reportagem de Matt Taibbi no “Twitter Files” expõe como uma elaborada peça de propaganda negra – foi amplificada sem qualquer crítica pela imprensa. Seduziu os Democratas e os seus apoiantes liberais a verem a Rússia como um inimigo mortal.

O apoio quase universal a uma guerra prolongada com a Ucrânia não seria possível sem esta vigarice.

Ver aqui

 

Os dois partidos no poder nos EUA [Democrata e Republicano] dependem de fundos de campanha da indústria bélica e são pressionados pelos fabricantes de armas no seu estado ou distritos, que empregam constituintes, a aprovar orçamentos militares gigantescos. Os políticos estão perfeitamente conscientes de que desafiar a economia de guerra permanente significa ser-se atacado como antipatriota e é geralmente um acto de suicídio político.

“A alma que é escravizada pela guerra clama por libertação”, escreve Simone Weil no seu ensaio “A Ilíada ou o Poema da Força”, “mas a própria libertação parece-lhe um aspecto extremo e trágico, o aspecto da destruição”.

 

Tentando recuperar a Glória Perdida

“Destruição do Exército Ateniense em Siracusa”, por John Steeple Davis. (Domínio público, Wikimedia Commons)

 

Os historiadores referem-se à tentativa quixotesca dos impérios em declínio de recuperar uma hegemonia perdida através do aventureirismo militar como “micro-militarismo”.

Durante a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), os atenienses invadiram a Sicília, perdendo 200 navios e milhares de soldados. A derrota desencadeou uma série de revoltas bem sucedidas em todo o império ateniense.

O Império Romano, que no seu auge durou dois séculos, tornou-se cativo do seu próprio exército que, à semelhança da indústria de guerra dos EUA, era um estado dentro do estado. As outrora poderosas legiões de Roma na fase final do império sofreram derrota atrás de derrota, enquanto extraíam cada vez mais recursos de um estado em desagregação e empobrecido.

No final, a elite da Guarda Pretoriana leiloou o imperador ao maior licitador.

O Império Britânico, já dizimado pela loucura militar suicida da Primeira Guerra Mundial, respirou o seu último suspiro em 1956, quando atacou o Egipto numa disputa sobre a nacionalização do Canal de Suez. A Grã-Bretanha retirou-se humilhada e tornou-se um apêndice dos Estados Unidos. Uma guerra de uma década no Afeganistão selou o destino de uma União Soviética decrépita.

“Enquanto os impérios em ascensão são frequentemente judiciosos, mesmo racionais na sua aplicação de força armada para a conquista e controlo de domínios ultramarinos, os impérios em decadência estão inclinados a demonstrações de poder irreflectidas, sonhando com ousados golpes de mestre militares que de alguma forma recuperariam prestígio e poder perdidos”, escreve o historiador Alfred W. McCoy no seu livro, In the Shadows of the American Century: A Ascensão e a Declinação do Poder Global dos EUA.

“Muitas vezes irracionais, mesmo de um ponto de vista imperial, estas operações micro-militares podem gerar despesas hemorrágicas ou derrotas humilhantes que apenas aceleram o processo já em curso”, escreveu ele.

O plano para reformular a Europa e o equilíbrio global do poder degradando a Rússia está a revelar-se semelhante ao plano falhado para reformular o Médio Oriente.

Está a alimentar uma crise alimentar global e a devastar a Europa com uma inflação de quase dois dígitos. Está a expor uma vez mais a impotência dos Estados Unidos e a falência dos seus oligarcas governantes.

Como contrapeso aos Estados Unidos, nações como a China, Rússia, Índia, Brasil e Irão estão a separar-se da tirania do dólar como moeda de reserva mundial, um movimento que desencadeará uma catástrofe económica e social nos Estados Unidos.

Washington está a dar à Ucrânia sistemas de armas cada vez mais sofisticados e milhares e milhares de milhões em ajuda, numa tentativa fútil de salvar a Ucrânia mas, mais importante ainda, de se salvar a si própria.

 

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O autor: Chris Hedges é um jornalista vencedor do Prémio Pulitzer que foi correspondente estrangeiro durante 15 anos no The New York Times, onde serviu como chefe do gabinete do Médio Oriente e chefe do gabinete dos Balcãs para o jornal. Trabalhou anteriormente no estrangeiro para The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.  Ele é o apresentador do programa “The Chris Hedges Report”.

Nota do Autor para os Leitores: Não me resta agora maneira de continuar a escrever uma coluna semanal para ScheerPost e produzir o meu programa semanal de televisão sem a vossa ajuda. As portas estão a fechar-se, com uma rapidez surpreendente, sobre o jornalismo independente, com as elites, incluindo as elites do Partido Democrata, clamando por mais e mais censura. Bob Scheer, que dirige a ScheerPost com um orçamento limitado, e eu não renunciaremos ao nosso compromisso com o jornalismo independente e honesto, e nunca poremos ScheerPost através de um acesso pago, ou de uma assinatura, nem venderemos os seus dados ou aceitaremos publicidade. Por favor, se puder, inscreva-se em chrishedges.substack.com para que eu possa continuar a publicar a minha coluna de segunda-feira em ScheerPost e produzir o meu programa semanal de televisão, “The Chris Hedges Report”.

 

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