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RICARDO PAES MAMEDE:“O PS ESTÁ A NEUTRALIZAR AS OPOSIÇÕES DE DIREITA” AO SEGUIR AS SUAS POLÍTICAS
Foi em 2022 que se registou a maior transferência de rendimentos do trabalho para o capital do milénio, superando até o período da troika. Os salários não sobem, o custo de vida aumenta e a pobreza atinge cada vez mais pessoas. Entretanto, o Governo faz austeridade para pagar, a “um ritmo quase fetichista”, a dívida pública, diz o economista.
A inflação atingiu o valor mais alto dos últimos 30 anos, as taxas de juro sobem todos os meses, as prestações dos créditos à habitação devoram uma cada vez maior porção dos salários, as rendas atingem valores insuportáveis, os preços do gás, da electricidade e dos combustíveis não dão descanso. E o desemprego voltou a aumentar, principalmente entre os mais jovens. Fala-se de a economia portuguesa sofrer uma recessão, mas ainda não é certo que assim seja. Certa é a incerteza económica: há cada vez mais famílias portuguesas a enfrentar dificuldades para chegarem ao final do mês. Sem apoios sociais, o país tem 4,4 milhões de pessoas na pobreza.
Entretanto, o governo do Partido Socialista avançou com apoios de 125 euros e, depois, para os mais vulneráveis, de 240 euros. Ainda que estes apoios tenham sido criticados por Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, o economista Ricardo Paes Mamede garante que, além de não serem respostas a problemas sociais concretos, serviram para evitar que o Governo chegasse ao final de 2022 “com um nível de défice orçamental injustificadamente baixo”. Seria algo difícil de explicar quando, por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde se confronta com sérias debilidades.
Esses números refletem, “na prática, uma opção do Governo: retirar dinheiro à economia para atingir metas orçamentais às quais nem sequer está obrigado” pelas instituições europeias, disse Paes Mamede em entrevista ao Setenta e Quatro. Ou seja, o governo de António Costa está, desde 2019, a aplicar austeridade para pagar, “a um ritmo quase fetichista”, a dívida soberana, a terceira maior na União Europeia.
Ao mesmo tempo, registou-se em 2022, dizem os economistas João Rodrigues e Paulo Coimbra, a maior transferência do trabalho para o capital do milénio (4,7%), superando até o período da troika. O peso da retribuição do trabalho no produto interno bruto (PIB) caiu 2,4%, quando com a troika foi de 1,5%. “A distribuição funcional do rendimento entre capital e trabalho tem vindo a tornar-se mais desigual e a favor do capital. Ou seja, há espaço para o aumento dos salários, o que não se verifica na prática”, garante o economista.
Daí que a oposição de direita esteja a sofrer um desnorte político e programático perante o executivo de António Costa, argumenta Paes Mamede. “O PS está a neutralizar as oposições de direita, pelo facto de seguir, ao nível orçamental, a agenda tradicionalmente defendida por elas”, salientou, referindo que as oposições de direita o preocupam menos que as de esquerda. É que, continuou, a esquerda saiu “muito fragilizada” das últimas eleições, e depende agora da sua capacidade de mobilizar nas ruas.
Entrámos num novo ano e a inflação já levou consigo os últimos dois de valorização dos salários. A 1 de janeiro aumentaram as rendas, as prestações ao banco e as faturas do gás e da eletricidade, só para nomear alguns exemplos. O que esperar, economicamente, de 2023?
O mundo passa a vida a surpreender-nos — com pandemias, com guerras — e 2023 pode vir a surpreender-nos igualmente. O risco de instabilidade financeira é muito grande. Não sabemos como a guerra na Ucrânia vai evoluir. Qualquer antecipação do que poderá ser a vida das pessoas em 2023 será sempre incerta.
Com os dados que temos hoje disponíveis, podemos esperar uma desaceleração do aumento dos preços, o que não significa que haverá uma descida. O poder aquisitivo das pessoas não vai melhorar, mas é possível que a perda desse poder seja, para a generalidade da população, menos acentuada do que em 2022. Haverá sempre perda de poder de compra e isso vai significar dificuldades acrescidas. O aumento expectável dos preços afetará sobretudo os trabalhadores por conta de outrem e os pensionistas.
É importante olhar para o desemprego. As expectativas que existem para a evolução do mercado de trabalho não são negativas. Até são, moderadamente, positivas. A taxa de desemprego [hoje de 6,4%] caiu muito ao longo da última década e não se espera que haja um agravamento acentuado. Isso são boas notícias, porque o desemprego tem estado sempre associado, em Portugal, a problemas sociais significativos, ao agravamento das condições de vida.
Também se espera um golpe nos rendimentos das pessoas com créditos contraídos, em particular empréstimos à habitação. A maioria das pessoas nessa situação não serão particularmente penalizadas, porque, em Portugal, quem tem acesso ao crédito à habitação costumam ser famílias com rendimentos acima da média, e em situações mais protegidas. Ainda assim, veremos alguns segmentos da população afetados pelo aumento das taxas de juro.
O salário mínimo também sobe de €705 para €760. É suficiente?
O aumento do salário mínimo em 2023 é o mais generoso de todos os aumentos previstos. É o reflexo de uma política seguida não apenas pelos governos do PS, mas já antes pelos governos PSD-CDS. Primeiro, desregular e fragilizar o poder negocial dos trabalhadores — por via da caducidade dos contratos coletivos de trabalho, por exemplo. Depois, há uma desregulação genérica das relações de trabalho que tenta ser compensada com um aumento, superior à média, do salário mínimo.
"O aumento dos salários tem ficado abaixo do crescimento da produtividade. A distribuição funcional do rendimento entre capital e trabalho tem vindo a tornar-se mais desigual e a favor do capital."
Por um lado, protege-se o poder de compra dos trabalhadores que recebem o salário mais baixo de todos, mas prejudica-se o poder de compra de trabalhadores que recebem um pouco acima do salário mínimo. A minha expectativa é que estes aumentos protejam cerca de 20% dos trabalhadores recebem salários muito baixos. Temos trabalhadores pobres — e os aumentos do salário mínimo não permitem tirar as pessoas da pobreza. Permitem, na melhor das hipóteses, manter os seus níveis de rendimentos reais.
Temos estado a falar em médias. Se os salários mínimos estão a ser aumentados em linha com aquilo que tem sido a evolução geral dos preços, a verdade é que os preços de alguns produtos, principalmente dos bens alimentares, são superiores aos aumentos médios dos preços. Tipicamente, esses produtos, cujos preços estão a aumentar muito acima da média geral, têm um peso desproporcionado nos orçamentos das famílias mais pobres.
Isto significa que os aumentos do salário mínimo alinhados com a média geral dos preços não conseguem proteger o poder de compra das famílias mais pobres, para quem a aquisição de bens essenciais tem um peso muito grande. São os rendimentos das populações mais pobres que tendem a cair.
A economia portuguesa, sendo periférica, está desenhada para só funcionar com baixos salários?
As economias não são homogéneas. Temos situações diferentes dentro da economia portuguesa. O facto de termos alguns setores importantes da nossa economia a registar neste momento lucros significativos é a demonstração que há nesses setores margem para aumentar os salários mais do que têm aumentado. O setor da distribuição é o melhor exemplo disso, até porque representa uma fatia importante do emprego em Portugal.
Há outros setores em que, por razões diferentes, o aumento dos salários se torna um problema para a viabilidade das empresas. Por um lado, temos as empresas mais expostas à concorrência internacional, onde há pouca margem para aumentar preços, visto que os praticados são os que vigoram nos mercados internacionais. Para essas empresas, um aumento dos salários pode significar não só a redução das taxas de lucro, mas dificuldades para a sua viabilidade. Essas empresas estão a ser afetadas por um aumento substancial dos custos de produção, em particular das matérias primas e dos bens energéticos.
Outros casos têm menos que ver com a exposição à concorrência internacional e mais com as particularidades dos setores, com os que vivem de contratos realizados com bastante tempo de antecedência. O setor da construção, por exemplo. Em particular, a construção financiada pelo Estado enfrenta um problema neste momento. As empreitadas foram negociadas com preços que já não são válidos. A menos que haja possibilidade de renegociar, as empresas estão hoje a ter de entregar os mesmos serviços com custos de produção muito mais avultados. Nestes casos, o aumento dos salários pode ser também um problema para a viabilidade das empresas.
Fazendo uma abordagem agregada, o que se tem sistematicamente verificado é que o aumento dos salários tem ficado abaixo do crescimento da produtividade. Na prática, isso significa uma coisa muito simples: a distribuição funcional do rendimento entre capital e trabalho tem vindo a tornar-se mais desigual e a favor do capital. Ou seja, há espaço para o aumento dos salários, o que não se verifica na prática.
Um artigo recente dos economistas João Rodrigues e pelo Paulo Coimbra afirma que assistimos neste momento à maior transferência de rendimentos do trabalho para o capital do milénio, maior até que a do período da troika. Que políticas económicas estão na sua génese?
A paralisação da negociação coletiva é um fator crucial. A capacidade de dinamizar a evolução dos salários em vastos setores da economia portuguesa é, assim, posta em causa. Outro fator relevante é a prática salarial na função pública. Os salários na função pública têm estado sistematicamente congelados e isso tem efeitos não apenas na evolução dos rendimentos dos mais de 700 mil funcionários públicos, como também acaba por afetar as negociações no setor privado. Os aumentos salariais na função pública são usados, em muitos setores, como referência para a fixação dos aumentos salariais.
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