Uma leitura necessária ,
Carlos Branco, Major-general e Investigador do IPRI-NOVA
O acordar tardio do sonâmbulo?
Apesar
de alguns alimentarem a ilusão da reversão dos acontecimentos na
Ucrânia, os decisores sabem que a possibilidade de isso acontecer é
extremamente remota.
Carlos Branco
A
retirada das forças russas de Karkhiv e Kherston no verão de 2022 criou
nas elites políticas e nalguns areópagos do comentário a ilusão de que a
Rússia iria soçobrar. Os objetivos estavam a ser atingidos. Foram
momentos de triunfalismo. No entanto, como podemos hoje comprovar, essas
opiniões resultavam de uma avaliação errada da situação baseada em
informação falsa e premissas enviesadas.
Senadores
norte-americanos regozijavam-se de a guerra na Ucrânia estar a ser um
grande investimento. Sem baixas americanas, Washington estava a
conseguir destruir metade da capacidade militar russa apenas com 3% do
seu orçamento de defesa. Nunca tinha sido tão elevada a crença na
possibilidade de um levantamento contra Putin, um dos motivos desta
guerra, se não o mais importante, e de uma operação de mudança de regime
em Moscovo, várias vezes manifestada por Washington e Kiev. Era o sonho
do grupo de neoconservadores que rodeia a Administração Biden.
Contudo,
o anunciado e previsto insucesso da ofensiva ucraniana, no verão de
2023, trouxe à tona de água a falta de sustentabilidade das crenças
alimentadas pela propaganda. As vozes otimistas e confiantes na derrota
russa começaram a baixar o tom e a emudecer. Exceção feita à sempre
irrepreensível Ursula von der Leyen, que com as sound bites fora de
prazo, veio dizer em Davos que a Rússia tinha perdido 50% da sua
capacidade militar.
Os
desenvolvimentos políticos na Rússia e na Ucrânia vieram mostrar que o
cálculo estratégico da Administração Biden, abraçado servilmente pelos
europeus, falhou redondamente. Ao invés do desejado, a popularidade de
Putin aumentou e a economia russa não desabou. Pelo contrário, prosperou
como dão nota disso os relatórios de várias organizações internacionais
insuspeitas. Recentemente, a “Newsweek” corroborou esses relatórios,
removendo dúvidas que ainda pudessem subsistir.
A
imposição de sanções resultou num fiasco, tendo a Rússia encontrado
alternativas para escoar os seus hidrocarbonetos. A tentativa do G7
impor à Rússia um preço máximo de 60 dólares por barril de petróleo não
funcionou. Hipocritamente, os EUA romperam as sanções que tanto
advogaram comprando petróleo diretamente à Rússia, ao preço de $74 e $76
por barril, segundo a US Energy Administration. Associa-se a isso, o
aumento da produção industrial. A Rússia teve, em 2023, um invejável
aumento de 3,5% do PIB.
Foi
com imensa perplexidade que ouvimos o mais alto dignitário da NATO Jans
Stoltenberg vir reconhecer, na recente reunião do Fórum Económico
Mundial, em Davos, aquilo que muito poucos vinham consistentemente
afirmando há cerca de dois anos, e pelo facto foram agraciados com o
epíteto de putinistas: o Ocidente subestimou a Rússia. Esta conclusão
tardia é de uma imensa gravidade, uma vez que ilustra a realidade
virtual em que ocupantes de altos cargos têm vivido e o desvalor com que
as vidas ucranianas foram equacionadas.
As
dificuldades da Administração Biden e dos europeus em suster o esforço
de guerra ucraniano vieram agravar um ambiente que começava a não ser
percebido como favorável, e em que se registava uma inversão de
tendência. Se para Kiev não se consegue ainda visualizar com precisão
como irá terminar a guerra, para a Administração Biden começa a
visualizar-se mais um fracasso estratégico. Uma vez mais, a Casa Branca
foi vítima das alucinações de um grupo de neoconservadores que, de uma
maneira ou de outra, continuam a causar perdas irreparáveis à imagem
externa dos EUA.
Fizeram
quase tudo errado. Para confrontar a China, Biden devia ter garantido a
neutralidade de Moscovo, mas a obsessão ideológica neoconservadora foi
mais forte do que o pragmatismo. Não só aproximaram Moscovo de Pequim,
ao ponto de hoje Moscovo se preparar para cortar completamente os laços
económicos com a Europa, como correm o risco de se verem envolvidos em
duas crises estratégicas, em simultâneo, para as quais não estão
preparados, comprometendo decisivamente as suas ambições hegemónicas
globais. No Ocidente, nomeadamente em Portugal, não faltaram
comentadores a aplaudir este disparate.
A
situação no terreno e o aumento das dificuldades em apoiar o esforço de
guerra ucraniano não só provocou uma enorme frustração e desespero no
Ocidente, como contribuiu para aumentar a confiança de Moscovo. Como se
torna cada vez mais óbvio, é irrealista pensar ser possível reunir
condições para a realização de uma futura contraofensiva que possa
superar a de 2023. Quem alimenta essa possibilidade está completamente
desfasado da realidade. Nem os europeus têm capacidade para a apoiar,
nem os ucranianos para a realizar.
Kiev
procura lançar desesperadamente uma controversa e impopular campanha de
mobilização de 500 mil soldados durante o ano de 2024. Ora, esse
efetivo não visa atribuir capacidade ofensiva às forças armadas
ucranianas, mas tão somente repor as cerca de 20 mil baixas mensais,
isto é, recompletar. Ou seja, conferir-lhes apenas capacidade defensiva.
Por
outro lado, o Ocidente não tem, aparentemente, um plano para impedir o
insucesso ucraniano que se vislumbra no horizonte. Parece restar-lhe a
incomodidade e o desespero. Em vez de enfrentar os factos, assistimos a
uma fuga para a frente. Brande o papão de uma terceira guerra mundial. A
Rússia vai atacar a NATO, e vão fazê-lo através dos Estados bálticos,
que o presidente Biden confundiu com Balcãs. Estas declarações
alarmistas visam criar o pânico entre a população e escamotear
desonestamente o tremendo erro de análise feito.
Não
há consenso quanto à data desse ataque. Uns falam num ano, outros três e
outros ainda cinco a oito. De modo descontraído e ligeiro, o ministro
da Defesa do Reino Unido Grant Shapps afirmou que nos encontramos num
estado de “pré-guerra mundial”. Para tornar mais realista a ameaça, um
jornal alemão veio divulgar um documento secreto a explicar como irá
decorrer essa operação.
Desacreditada
a tese da derrota russa, há que ocultá-la criando outra tese. A
histeria alarga-se. O chairman do comité militar, Almirante Rob Bauer,
veio desajeitadamente assustar os europeus sugerindo-lhes que se
preparassem para o conflito, como se fosse amanhã: “é preciso água, um
rádio e uma lanterna a pilhas para garantir que sobreviverá nas
primeiras 36 horas. Coisas assim, simples, mas temos de perceber que a
paz não é um dado adquirido.”
Na
Suécia, por exemplo, sucedem-se as notícias alarmistas, com declarações
do mais alto dignitário militar do país, o general Micael Bydén, a
alertar que “todos os suecos deviam estar a preparar-se para a guerra.”
A
ampliação desta campanha de medo, em que participam alguns diligentes
comentadores, baseada num argumento falso – temos de parar a Rússia
agora porque no futuro será mais difícil – visa pressionar também a
obtenção dos recursos financeiros para apoiar a Ucrânia.
Apesar
dos recentes apelos, os indícios de preparação para a guerra já têm
alguns anos. A criação de uma infraestrutura logística na Europa não é
de agora, como o prova, por exemplo, a criação da “Mobilidade Militar”
inserida nos programas da Cooperação Estruturada Permanente da UE, em
2018.
Mais recentemente, a
Finlândia disponibilizou 15 instalações militares no seu território
para os EUA aí instalarem unidades militares e pré-posicionarem
equipamento militar. Por seu lado, a Polónia disponibilizou o seu
território para a instalação de bases militares alemãs, pela primeira
vez desde a Segunda Guerra Mundial, à semelhança do que já tinham
anunciado fazer na Lituânia.
Nos
países bálticos, a linha de caminho de ferro com a bitola utilizada na
antiga União Soviética está a ser transformada na bitola europeia, um
projeto que poderá estar terminado apenas em 2030. Entretanto, a NATO
criou um programa que designou por Schengen militar, permitindo que as
tropas da Aliança se movam rapidamente e sem obstáculos dentro da União
Europeia.
Por seu turno, a
Roménia acelera rapidamente a construção de uma nova autoestrada até à
fronteira com a Ucrânia, que poderá ser utilizada para facilitar a
movimentação de forças militares em caso de conflito. Importa mencionar
que este projeto, pensado há muitos anos, ganhou um carácter de urgência
a seguir à invasão russa da Ucrânia.
Sempre
nos interrogámos qual poderia ser a resposta do Ocidente caso se viesse
a verificar uma débâcle da Ucrânia. Os desenvolvimentos recentes
começam a apontar para uma resposta. Apesar de alguns alimentarem a
ilusão da reversão dos acontecimentos na Ucrânia, os decisores sabem que
a possibilidade de isso acontecer é extremamente remota, como também
sabem que os próximos 5/7 anos serão de grande agitação geoestratégica,
em que as potências emergentes vão procurar tirar partido do vazio de
poder criado pelo desmoronamento em curso da Ordem Mundial.
Como
tem sido sublinhado por vários académicos, a possibilidade de a
transição de poderes na Ordem internacional envolver o uso da força
pelos principais atores é extremamente elevada. Acresce que o teatro de
operações ucraniano reúne as condições para esse embate.
Lamentavelmente, assistimos na praça pública a atiçadores da fornalha,
uns manifestamente impreparados, outros escandalosamente industriados. O
objetivo de ambos os grupos é claro, incutir na opinião pública a
inevitabilidade de um conflito armado de larga escala, escamoteando
conscientemente as consequências que um confronto dessa natureza poderia
ter, nomeadamente o arrastamento de toda a Europa.
Esperemos
que o exercício Steadfast Defender organizado pela NATO, envolvendo
cerca de 90 mil soldados, o maior exercício desde o fim da guerra fria,
cujo tema genérico é repelir uma invasão de forças terrestres, fique por
um exercício, e não haja a tentação de se intrometer nos
desenvolvimentos em curso na Ucrânia.
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