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2 de fevereiro de 2024

 Uma leitura necessária ,

Carlos Branco, Major-general e Investigador do IPRI-NOVA 


O acordar tardio do sonâmbulo?

Apesar de alguns alimentarem a ilusão da reversão dos acontecimentos na Ucrânia, os decisores sabem que a possibilidade de isso acontecer é extremamente remota.

Carlos Branco

A retirada das forças russas de Karkhiv e Kherston no verão de 2022 criou nas elites políticas e nalguns areópagos do comentário a ilusão de que a Rússia iria soçobrar. Os objetivos estavam a ser atingidos. Foram momentos de triunfalismo. No entanto, como podemos hoje comprovar, essas opiniões resultavam de uma avaliação errada da situação baseada em informação falsa e premissas enviesadas.

Senadores norte-americanos regozijavam-se de a guerra na Ucrânia estar a ser um grande investimento. Sem baixas americanas, Washington estava a conseguir destruir metade da capacidade militar russa apenas com 3% do seu orçamento de defesa. Nunca tinha sido tão elevada a crença na possibilidade de um levantamento contra Putin, um dos motivos desta guerra, se não o mais importante, e de uma operação de mudança de regime em Moscovo, várias vezes manifestada por Washington e Kiev. Era o sonho do grupo de neoconservadores que rodeia a Administração Biden.

Contudo, o anunciado e previsto insucesso da ofensiva ucraniana, no verão de 2023, trouxe à tona de água a falta de sustentabilidade das crenças alimentadas pela propaganda. As vozes otimistas e confiantes na derrota russa começaram a baixar o tom e a emudecer. Exceção feita à sempre irrepreensível Ursula von der Leyen, que com as sound bites fora de prazo, veio dizer em Davos que a Rússia tinha perdido 50% da sua capacidade militar.

Os desenvolvimentos políticos na Rússia e na Ucrânia vieram mostrar que o cálculo estratégico da Administração Biden, abraçado servilmente pelos europeus, falhou redondamente. Ao invés do desejado, a popularidade de Putin aumentou e a economia russa não desabou. Pelo contrário, prosperou como dão nota disso os relatórios de várias organizações internacionais insuspeitas. Recentemente, a “Newsweek” corroborou esses relatórios, removendo dúvidas que ainda pudessem subsistir.

A imposição de sanções resultou num fiasco, tendo a Rússia encontrado alternativas para escoar os seus hidrocarbonetos. A tentativa do G7 impor à Rússia um preço máximo de 60 dólares por barril de petróleo não funcionou. Hipocritamente, os EUA romperam as sanções que tanto advogaram comprando petróleo diretamente à Rússia, ao preço de $74 e $76 por barril, segundo a US Energy Administration. Associa-se a isso, o aumento da produção industrial. A Rússia teve, em 2023, um invejável aumento de 3,5% do PIB.

Foi com imensa perplexidade que ouvimos o mais alto dignitário da NATO Jans Stoltenberg vir reconhecer, na recente reunião do Fórum Económico Mundial, em Davos, aquilo que muito poucos vinham consistentemente afirmando há cerca de dois anos, e pelo facto foram agraciados com o epíteto de putinistas: o Ocidente subestimou a Rússia. Esta conclusão tardia é de uma imensa gravidade, uma vez que ilustra a realidade virtual em que ocupantes de altos cargos têm vivido e o desvalor com que as vidas ucranianas foram equacionadas.

As dificuldades da Administração Biden e dos europeus em suster o esforço de guerra ucraniano vieram agravar um ambiente que começava a não ser percebido como favorável, e em que se registava uma inversão de tendência. Se para Kiev não se consegue ainda visualizar com precisão como irá terminar a guerra, para a Administração Biden começa a visualizar-se mais um fracasso estratégico. Uma vez mais, a Casa Branca foi vítima das alucinações de um grupo de neoconservadores que, de uma maneira ou de outra, continuam a causar perdas irreparáveis à imagem externa dos EUA.

Fizeram quase tudo errado. Para confrontar a China, Biden devia ter garantido a neutralidade de Moscovo, mas a obsessão ideológica neoconservadora foi mais forte do que o pragmatismo. Não só aproximaram Moscovo de Pequim, ao ponto de hoje Moscovo se preparar para cortar completamente os laços económicos com a Europa, como correm o risco de se verem envolvidos em duas crises estratégicas, em simultâneo, para as quais não estão preparados, comprometendo decisivamente as suas ambições hegemónicas globais. No Ocidente, nomeadamente em Portugal, não faltaram comentadores a aplaudir este disparate.

A situação no terreno e o aumento das dificuldades em apoiar o esforço de guerra ucraniano não só provocou uma enorme frustração e desespero no Ocidente, como contribuiu para aumentar a confiança de Moscovo. Como se torna cada vez mais óbvio, é irrealista pensar ser possível reunir condições para a realização de uma futura contraofensiva que possa superar a de 2023. Quem alimenta essa possibilidade está completamente desfasado da realidade. Nem os europeus têm capacidade para a apoiar, nem os ucranianos para a realizar.

Kiev procura lançar desesperadamente uma controversa e impopular campanha de mobilização de 500 mil soldados durante o ano de 2024. Ora, esse efetivo não visa atribuir capacidade ofensiva às forças armadas ucranianas, mas tão somente repor as cerca de 20 mil baixas mensais, isto é, recompletar. Ou seja, conferir-lhes apenas capacidade defensiva.

Por outro lado, o Ocidente não tem, aparentemente, um plano para impedir o insucesso ucraniano que se vislumbra no horizonte. Parece restar-lhe a incomodidade e o desespero. Em vez de enfrentar os factos, assistimos a uma fuga para a frente. Brande o papão de uma terceira guerra mundial. A Rússia vai atacar a NATO, e vão fazê-lo através dos Estados bálticos, que o presidente Biden confundiu com Balcãs. Estas declarações alarmistas visam criar o pânico entre a população e escamotear desonestamente o tremendo erro de análise feito.

Não há consenso quanto à data desse ataque. Uns falam num ano, outros três e outros ainda cinco a oito. De modo descontraído e ligeiro, o ministro da Defesa do Reino Unido Grant Shapps afirmou que nos encontramos num estado de “pré-guerra mundial”. Para tornar mais realista a ameaça, um jornal alemão veio divulgar um documento secreto a explicar como irá decorrer essa operação.

Desacreditada a tese da derrota russa, há que ocultá-la criando outra tese. A histeria alarga-se. O chairman do comité militar, Almirante Rob Bauer, veio desajeitadamente assustar os europeus sugerindo-lhes que se preparassem para o conflito, como se fosse amanhã: “é preciso água, um rádio e uma lanterna a pilhas para garantir que sobreviverá nas primeiras 36 horas. Coisas assim, simples, mas temos de perceber que a paz não é um dado adquirido.”

Na Suécia, por exemplo, sucedem-se as notícias alarmistas, com declarações do mais alto dignitário militar do país, o general Micael Bydén, a alertar que “todos os suecos deviam estar a preparar-se para a guerra.”

A ampliação desta campanha de medo, em que participam alguns diligentes comentadores, baseada num argumento falso – temos de parar a Rússia agora porque no futuro será mais difícil – visa pressionar também a obtenção dos recursos financeiros para apoiar a Ucrânia.

Apesar dos recentes apelos, os indícios de preparação para a guerra já têm alguns anos. A criação de uma infraestrutura logística na Europa não é de agora, como o prova, por exemplo, a criação da “Mobilidade Militar” inserida nos programas da Cooperação Estruturada Permanente da UE, em 2018.

Mais recentemente, a Finlândia disponibilizou 15 instalações militares no seu território para os EUA aí instalarem unidades militares e pré-posicionarem equipamento militar. Por seu lado, a Polónia disponibilizou o seu território para a instalação de bases militares alemãs, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, à semelhança do que já tinham anunciado fazer na Lituânia.

Nos países bálticos, a linha de caminho de ferro com a bitola utilizada na antiga União Soviética está a ser transformada na bitola europeia, um projeto que poderá estar terminado apenas em 2030. Entretanto, a NATO criou um programa que designou por Schengen militar, permitindo que as tropas da Aliança se movam rapidamente e sem obstáculos dentro da União Europeia.

Por seu turno, a Roménia acelera rapidamente a construção de uma nova autoestrada até à fronteira com a Ucrânia, que poderá ser utilizada para facilitar a movimentação de forças militares em caso de conflito. Importa mencionar que este projeto, pensado há muitos anos, ganhou um carácter de urgência a seguir à invasão russa da Ucrânia.

Sempre nos interrogámos qual poderia ser a resposta do Ocidente caso se viesse a verificar uma débâcle da Ucrânia. Os desenvolvimentos recentes começam a apontar para uma resposta. Apesar de alguns alimentarem a ilusão da reversão dos acontecimentos na Ucrânia, os decisores sabem que a possibilidade de isso acontecer é extremamente remota, como também sabem que os próximos 5/7 anos serão de grande agitação geoestratégica, em que as potências emergentes vão procurar tirar partido do vazio de poder criado pelo desmoronamento em curso da Ordem Mundial.

Como tem sido sublinhado por vários académicos, a possibilidade de a transição de poderes na Ordem internacional envolver o uso da força pelos principais atores é extremamente elevada. Acresce que o teatro de operações ucraniano reúne as condições para esse embate. Lamentavelmente, assistimos na praça pública a atiçadores da fornalha, uns manifestamente impreparados, outros escandalosamente industriados. O objetivo de ambos os grupos é claro, incutir na opinião pública a inevitabilidade de um conflito armado de larga escala, escamoteando conscientemente as consequências que um confronto dessa natureza poderia ter, nomeadamente o arrastamento de toda a Europa.

Esperemos que o exercício Steadfast Defender organizado pela NATO, envolvendo cerca de 90 mil soldados, o maior exercício desde o fim da guerra fria, cujo tema genérico é repelir uma invasão de forças terrestres, fique por um exercício, e não haja a tentação de se intrometer nos desenvolvimentos em curso na Ucrânia.

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