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28 de fevereiro de 2024

O partido à frente do (seu) tempo (I)

 Agostinho Lopes


O artigo “O Partido duas vezes fora do tempo”, de Manuel
Carvalho, no Público de 15 de Fevereiro, levanta perplexidades e
não poucas, anotações críticas de desacordo. Mas é um texto fora
do comum sobre o PCP, a merecer uma leitura e reflexão atentas.
A primeira perplexidade resulta da constatação de um
anticomunista de largo espectro, com uma infindável colecção de
textos e declarações navegando nessa onda, ser capaz de
reconhecer ao PCP o “mérito de definir o seu lugar na política pela
razão, coerência, sensatez e recato”, “princípios e valores”, o “seu
modo/forma de ser e estar”, a “forma de estar e práxis política” e
valorizar a sua importância para “a defesa da democracia” e “travar
a degenerescência do debate político”.
Depois causa espanto que, sendo um jornalista com reconhecidas
capacidades e qualidade (“que não evitam, obviamente, o juízo”
sobre as suas opiniões), caia num texto importante em tantos
(demasiados) lugares comuns, simplismos absurdos e velhos e
revelhos preconceitos anticomunistas. A que se acrescentam
avaliações, considerações, deturpações sobre o PCP, tendo como
referência uma doutrina (de que MC não consegue fugir e seria
difícil, reconheço) dominada por uma matriz neoliberal, com
desenvolvimentos sociais-democratas à moda de Blair/Giddens, as
teses do fim da história (Fukyama) e um campo mediático
determinado pela propaganda e manipulação das centrais de
informação e conspiração do imperialismo norte americano... e daí
não sai. “Os talibans ideológicos” de que fala MC estão por toda a
parte, inclusive por quem os produz e alimenta!
Debrucemo-nos hoje sobre algumas questões.
A segmentação/separação mecânica da imbricada “relação
dialéctica” entre o “modo/forma de ser e estar” e a “forma de
estar e a práxis política” do PCP e a sua “doutrina que
configura o seu projecto”.
Tal divisão e distinção só mesmo é possível por visão defeituosa,
deformada, da doutrina e projecto do PCP. Bem pelo contrário, o
PCP está como está, e é como é, na actividade política, na forma
da sua acção e intervenção, ontem e hoje, em Portugal e no
mundo, com o sentido de ética política e coerência, serenidade e
confiança histórica, razão e sensatez, porque fundado numa
doutrina de combate à exploração e a todas as formas de
opressão, por uma sociedade de justiça social e igualdade, por um
regime político de liberdade e democracia (política, económica,
social e cultural) que enforma e configura o seu projecto de
socialismo e o sonho milenar da humanidade do comunismo. Não
é distinguível o comportamento político do PCP do seu projecto e
luta para o alcançar.
Os anacronismos atribuídos ao PCP por “acreditar num
mundo onde o proletariado e a luta de classes ainda existem”,
onde “a mitologia da vanguarda da classe operária fizesse
sentido”.
Poderia responder-se ao MC com o conhecido “Olhe que não, olhe
que não”, mas é lamentável, certamente porque sofre de particular,
mas muito comum, cegueira ideológica, não enxerga o que se está
a passar à frente dos seus olhos, mesmo neste pequeno
rectângulo que é o país.
MC não consegue identificar, associar, as lutas, mesmo as de
«sindicatos inorgânicos» que refere no artigo (professores, polícias
(1), agricultores, e poderia acrescentar motoristas de pesados e
enfermeiros), a lutas de classes! E há outras que não vê mesmo, e
percebe-se: o “seu” jornal (e outros outros órgãos de comunicação
social), nomeadamente enquanto foi seu director, não as vê, não
são notícia, como sucede com dezenas de pequenas e grandes
lutas promovidas por “sindicatos orgânicos” e até mesmo algumas
espontâneas! Não enxerga, por exemplo, a longa e significativa e
persistente luta que o CESP – Sindicato dos Trabalhadores do
Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal vem conduzindo há
anos com a participação de centenas/milhares de trabalhadores e
trabalhadoras da Grande Distribuição (Continente, Pingo Doce,
LIDL, Mercadona, etc.), incluindo as Operadoras de Caixas, e de
que MC também aqui há poucos anos lamentava no seu jornal a
desatenção e ausência sindical (ao mesmo tempo que fazia
idêntica lamúria para os trabalhadores dos Barcos de Turismo do
Douro)! Mas devia perceber agora melhor as lutas que têm
acontecido com trabalhadores e pequenos empresários ao serviço
das plataformas da UBER e C.ia que aqui há anos lhe mereceu um
artigo, “A impunidade do taxismo-leninismo” (02OUT16) a
invectivar quem procurava defender os interesses dos taxistas e
desses outros proletários motoristas TVDE, sujeitos à exploração
desenfreada das multinacionais – estiveram em luta com uma
concentração junto da Assembleia da República a 21FEV24.
Justificava-se também que fizesse uma reflexão aprofundada
sobre os ditos “sindicatos inorgânicos”, o seu papel e objectivos.
Pois não são novidade nenhuma: foram e são um antiquíssimo
instrumento do patronato e forças políticas – da extrema-direita e
direita à social-democracia – na divisão, diversão e perturbação
das lutas e órgãos de classe dos trabalhadores. E não ficaram
apenas por “sindicatos inorgânicos”. Não. Como bem sabemos
criaram “orgânicos” e até uma central sindical... A que se deve
acrescentar a análise do comportamento da “comunicação social
tradicional” que fica histérica, ou quase, perante essas lutas e
movimentações em contrapartida ao habitual silêncio (espesso e
longo) que em geral faz cair sobre as lutas levadas a cabo pelas
organizações de classe dos trabalhadores e de outras camadas
sociais como pequenos e médios agricultores.
Seria bom ver MC fazer um balanço das manifestações da CNA
em Lisboa noticiadas pelo Público e... auto-criticar-se. Mesmo
sobre o desencadeamento e condução das acções de protesto e
reclamação que aconteceram nas últimas semanas é muito
insuficiente e parcial a informação de MC sobre o monopólio da
iniciativa e mobilização que atribui aos “inorgânicos”.
Sobre este assunto seria ainda de aconselhar MC a consultar
estudos e publicações de algumas escolas superiores de
sociologia portuguesas (mas poderia também consultar
universidades dos EUA e da França, e etc.!). Veria que se
continuam a estudar as “classes sociais”, as “lutas de classes” e o
seu papel nas lutas sociais e políticas.
O PCP permanece também no reino das antiguidades por
continuarem (“o partido e o seu líder”) “a interpretar o mundo
e a querer mudá-lo como se a era digital não existisse”.
Aqui há uma certa preguiça, porque com alguma facilidade MC
verificaria que o PCP não só conhece a “era digital”, como tem
reflectido e analisado as suas consequências em diversos planos,
englobando-a na “práxis política”. Que outro partido português
realizou um debate sobre “desenvolvimento tecnológico – novas e
velhas questões” (Abril de 2017)? Nem poderia ser de outra forma
para quem a revolução das forças produtivas pelo capital é um
motor da caducidade dos modos e relações de produção! O que
não impede denunciar e contrariar a reiterada ilusão dos
advogados e clérigos do sistema capitalista que vêm em cada
avanço tecnológico a resposta milagrosa às contradições,
impasses e misérias do sistema, o que dispensaria a revolução
social para lhe pôr fim e abrir caminho ao socialismo.
Seria talvez de sublinhar, aproveitando a deixa de MC, que “estão
fora do tempo” os que não compreendem que a revolução
tecnológica em curso (que, aliás, não se limita à vertente digital) é
um poderoso sinal do esgotamento do sistema capitalista, inclusive
pelos obstáculos que levanta à concretização das suas imensas
potencialidades económicas, sociais, culturais para o bem-estar e
felicidade da humanidade.
A ancoragem do PCP numa “Retórica capitalista conservada
na cera de um mundo que já não existe”, que integra um “ódio
visceral à iniciativa privada”, ao liberalismo e a um mundo
global”, razão de ser “para a obsolescência da doutrina que
configura o seu projecto”.
Exageros de MC, que parece pouco atento ao que se passa no
mundo que existe e onde existimos todos. A “doutrina” do PCP, o
marxismo e o leninismo, permite investigar e analisar, compreender
e apreender nas suas dinâmicas económicas e sociais os impactos
da tal revolução tecnológica; perceber a resistência política e
ideológica da oligarquia e dos oligarcas (de todo o mundo) à
superação do capitalismo e à derrota do imperialismo; perceber a
necessidade da luta e da solidariedade dos trabalhadores e dos
povos contra a exploração económica das classes trabalhadores e
povos colonizados e neocolonizados, contra a opressão e
subjugação de países soberanos, contra a guerra e pela paz.
É estranho que não se esteja atento aos sinais que especialistas e
teóricos de nomeada, professores de ilustres universidades
americanas e europeias, prémios nóbeis, defensores do
capitalismo, dentro do “mainstream” e ortodoxia económica
clássica, preocupados com a saúde do sistema capitalista,
levantam à sua continuidade, à sua viabilidade, aos seus percalços
e impasses. Lembram-se, entre muitos, dois livros recentemente
publicados: “A crise do capitalismo democrático” de Martin Woolf e
“Capitalismo apenas – o futuro do sistema que domina o mundo”
de Branko Milanovic, em que não se esquecem referências a Marx.
Até os oráculos do Forum de Davos vieram mais de uma vez, com
a tese do “capitalismo dos stakeholders” arengar sobre a
necessidade de mudanças “radicais” no sistema (naturalmente
sem revolução social!). Mas talvez estejam todos “fora do tempo”...
como o PCP!
Por outro lado, será mesmo que o PCP mostra no seu “discurso”,
na sua práxis, nos seus documentos e intervenção política e
parlamentar o vezo de um “visceral ódio contra a iniciativa
privada”??? Onde? Como? Alguns procuram uma formulação mais
mitigada: o PCP defenderia as pequenas empresas/MPME e seria
só contra “grandes empresas”, logo contra a “grande iniciativa
privada”. Outros ainda, é que o PCP é contra os lucros, logo o
desejo de que tenham prejuízo! É só poeira atirada aos olhos dos
empresários! Como bem sabem muitas associações e
confederações patronais com quem, ao longo dos anos, temos tido
encontros e frutuosos diálogos! Como está espelhado no Programa
do PCP e em inúmeros programas eleitorais. Como está
demonstrado nas inúmeras iniciativas legislativas e
questionamentos parlamentares – o seu n.º pede meças a
qualquer outro partido.
Quantas vezes terão estado jornalistas do Público em Encontros
Nacionais do PCP sobre as MPME? É ao PCP que milhares de
pequenas empresas devem a extinção do PEC – Pagamento
Especial por Conta. Tudo sem nunca abdicar de negar uma
viabilização e lucros das empresas à custa do sacrifício de salários
e condições laborais dos trabalhadores, incumprimentos de
obrigações fiscais ou agressões ambientais. Sem nunca deixar de
combater – não as grandes empresas – mas sim os oligopólios e
monopólios e a estrutura e domínio monopolista do tecido
económico português, com efeitos predadores nas MPME pelos
abusos de posições dominantes e dependência económica, com
preços especulativos em bens e serviços essenciais, com lucros
monopolistas (que parecem esquecidos por muita boa gente) e
determinante na subordinação do poder político ao poder
económico, em confronto com a Constituição.
Sem perder tempo com o “liberalismo”, uma verdadeira relíquia
“fora do tempo” em que se queimavam as raízes e troncos
ressequidos do feudalismo, agora recriado para ocorrer aos
prejuízos do neoliberalismo (apagar a fogueira com gasolina), resta
o que para MC é também o ódio “a um mundo global”. Será que os
defensores do “internacionalismo proletário” recusam “um mundo
global”??? Sim, contra o “mundo global”, hegemonizado pelo
imperialismo, que pretende geri-lo pelas “regras” que ele próprio
dita, hierarquizado segundo os seus interesses, e explorado sem
limites pelo dólar e as suas corporações multinacionais – em que
as próprias instituições do mundo global só servem quando
cumprem as suas ordens e respeitam os seus interesses, como
acontece por exemplo com a liberalização do comércio e a OMC,
como sucede perante os nossos olhos com a ONU e as suas
Resoluções! Sim, por um mundo global de cooperação e paz, com
o respeito pela igualdade de direitos de todos os povos e nações,
no respeito pelos acordos e tratados internacionais livremente
negociados e aceites por todos.
(1) Será muito interessante e pedagógico, a propósito da lutas das
forças de segurança, comparar o posicionamento hoje de PS,
PSD, CDS e PCP com o que assumiram durante os
acontecimentos dos “secos e molhados” empleno cavaquismo

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