Relembrar
Crimes do imperialismo
O processo de destruição da Jugoslávia
A destruição da Jugoslávia no final do Século XX é inseparável da profunda mudança da
correlação de forças mundial que acompanhou as contra-revoluções no Leste da Europa.
Libertos do contra-peso e do travão que a União Soviética representava, os EUA
desencadearam uma ofensiva global para impor pela força a sua hegemonia planetária. A
guerra da NATO contra a Jugoslávia foi a proclamação pública da violação aberta da
Carta da ONU e do recurso à guerra para impor a vontade das potências imperialistas e
subjugar países e povos insubmissos. Mas abriu também a Caixa de Pandora que nos
trouxe até ao limiar duma grande confrontação militar na era nuclear.
Os bombardeamentos da NATO
A NATO desempenha um papel central na ofensiva global dos EUA. No dia 12 de Março
de 1999 dá-se um alargamento da NATO em direcção a Leste, com a incorporação de
três países ex-socialistas: Hungria, Polónia e República Checa. Menos de duas semanas
depois começam os bombardeamentos da Jugoslávia. Os novos membros encontravam-
se já em guerra. A ligação NATO-guerra não podia ser mais clara e era intencional. A
Cimeira de Washington, realizada em plena guerra (23-25 Abril 1999), alterou o Conceito
Estratégico da NATO. O alargamento geográfico foi acompanhado pelo simultâneo
alargamento dos objectivos e âmbito de intervenção, num processo que se foi acentuando
nos anos seguintes.
A NATO não procurava apenas razões justificativas da sua existência após o
desaparecimento da URSS e do Tratado de Varsóvia. A questão era mais funda. Tratava-
se de impor pela força a ditadura planetária dos EUA através da agressão aberta, que
passou a ser possível no novo contexto mundial. Nesta ofensiva, a guerra desempenha
um papel central, como ficou patente nos anos seguintes no Afeganistão, Iraque, Líbia,
Síria e outros países. O objectivo é hoje assumido: substituir a ordem mundial pós-II
Guerra Mundial por uma nova ordem mundial que as potências imperialistas designam
por «baseada em regras», mas na qual há uma única «regra»: a submissão aos ditames
de Washington.
O último acto antes do começo da guerra foi o ultimato de Rambouillet, no qual as
potências da NATO confrontaram os dirigentes jugoslavos com duas opções: deixar as
tropas da NATO ocupar o seu país ou enfrentar os bombardeamentos. Até no estilo, foi
evidente a recuperação da velha ‘política da canhoneira’ das potências imperialistas.
Os 78 dias de bombardeamentos da NATO sobre a Jugoslávia, de 24 de Março a 10 de
Junho de 1999, foram uma clara agressão, violadora do direito internacional, efectuada à
margem das Nações Unidas e violando a sua Carta. Tratou-se da primeira guerra em solo
europeu após 1945. Redesenhou o mapa da Europa, ao retirar o Kosovo à Jugoslávia (1),
não apenas em violação do direito internacional, mas em violação do próprio acordo de
cessar-fogo (Acordo de Kumanovo), que reconhecia a integridade territorial da Jugoslávia.
O Kosovo foi transformado numa plataforma fulcral para o tráfico de drogas, armas,
pessoas e órgãos humanos (2), protegida por uma das maiores bases militares dos EUA,
Camp Bondsteel.
Os bombardeamentos das 19 potências agressoras, chefiadas pelos EUA, destruiram
sistematicamente as infraestruturas civis jugoslavas e o seu aparelho produtivo. Foram
alvos, entre outros, o complexo petroquímico de Pancevo (com a libertação para o
ambiente de grandes quantidades de produtos tóxicos), a fábrica de automóveis da
Zastava, numerosos hospitais e centros de saúde, linhas ferroviárias e comboios de
passageiros em andamento, centrais geradoras e de distribuição de electricidade,
estações de televisão, e – numa advertência ao estilo mafioso – a Embaixada da China. O
objectivo de atingir alvos civis para vergar a Jugoslávia foi abertamente assumido pelo
comandante das forças aéreas da NATO, General Michael Short, que em entrevista (3)
declarou: «Se acordarem de manhã e não tiverem electricidade em casa, nem gás no
fogão, e se a ponte que vos levar para o trabalho tiver sido abatida e ficar a flutuar no
Danúbio durante os próximos 20 anos, penso que irão começar a perguntar: ‘Oh Slobo
[Slobodan Milosevic era o Presidente da Jugoslávia], o que se passa afinal? E quanto
mais disto é que vamos ter que suportar?».
Os EUA juntaram ao seu historial de uso de armas não convencionais as armas com
urânio empobrecido. A guerra deixou a Jugoslávia destruída, às escuras, sem
aquecimento para o inverno, sem empregos, sem meios de transporte, mas com milhares
de mortos e centenas de milhar de refugiados. É, juntamente com a mentira, a marca de
todas as guerras de agressão imperialistas, como se comprovou abundantemente de
então para cá.
O tratamento reservado após a guerra ao Presidente Milosevic foi outra acção retirada do
velho baú das dominações imperiais. As imagens de Milosevic, algemado, a ser levado
pela calada para o Tribunal Penal para a ex-Jugoslávia, um ‘tribunal’ especial criado como
parte do processo de agressão à Jugoslávia, pretendia ser uma lição sobre o destino de
quem resiste. A posterior linchagem de Khadafi pelas tropas especiais das potências
imperialistas teve igual objectivo. Milosevic morreu numa prisão da Haia em 2006, em
circunstâncias suspeitas, após uma corajosa defesa pública que transformou num acto de
acusação às potências agressoras, entravando os objectivos do TPIJ e dos seus donos
imperialistas.
A grande mentira usada para justificar os bombardeamentos da NATO foi uma inexistente
‘limpeza étnica’ das populações albano-kosovares. Uma mentira comparável às ‘armas de
destruição em massa de Saddam Hussein’, que sendo insistentemente repetida pela
propaganda da comunicação social de regime criou as condições políticas para a guerra
que destruiu o país mais multinacional e tolerante da região. Uma mentira que o próprio
Tribunal Penal para a ex-Jugoslávia foi obrigado a reconhecer (envergonhado e em nota
de rodapé) no que respeita ao Presidente Milosevic (4).
A grande mentira da ‘guerra humanitária’ ganhou credibilidade aos olhos de muitos por
ser promovida por governos maioritariamente social-democratas na União Europeia –
entre os quais o governo PS em Portugal, chefiado pelo actual Secretário Geral da ONU,
António Guterres – e pelo Partido Democrático nos EUA, através do Presidente Clinton.
Num curioso, mas não casual, paralelo com os nossos dias, os Verdes alemães detinham
então o Ministério dos Negócios Estrangeiros (Joschka Fischer) num governo de
coligação SPD-Verdes. Em Itália era Primeiro-Ministro um dos obreiros da liquidação do
antigo Partido Comunista Italiano, Massimo D’Alema. Em França havia um governo da
‘Esquerda Plural’ de maioria PS, mas que incluia o PCF.
A social-democracia, que desde a I Guerra Mundial deixara de ser uma expressão política
do movimento operário e se transformara em muleta das potências imperialistas no
combate aos comunistas e aos processos de libertação social e nacional no mundo,
encontrava dificuldade em continuar a justificar às classes dirigentes a sua necessidade,
após as contra-revoluções a Leste, a desintegração da URSS e o enfraquecimento no
plano mundial do movimento operário, comunista e revolucionário. Descobriu uma missão
na criação das condições políticas que permitissem ao imperialismo norte-americano
ultrapassar os efeitos internos da sua derrota histórica no Vietname (1975) e lançar a sua
ofensiva global. Quase sem hesitações, os partidos social-democratas têm dado o seu
apoio no último quarto de século às guerras de agressão imperialistas (5).
Do namoro ao assassinato
Curiosamente, no período após a II Guerra Mundial a Jugoslávia atraiu atenções e
tratamento favorável por parte do imperialismo norte-americano. A ruptura entre os
dirigentes jugoslavos e a URSS em 1948 e a sua proclamada via autónoma para o
socialismo, suscitaram nos anos da ‘Guerra Fria’ apoios políticos e económicos dos EUA.
Mas a situação mudou radicalmente com o desaparecimento da URSS e o campo
socialista em 1991. A autonomia jugoslava interessava apenas em função anti-soviética e
deixou de ser útil para os EUA após o desaparecimento dos restantes países socialistas
europeus. Os dirigentes jugoslavos insistiam em falar em socialismo («auto-gestionário»).
A Jugoslávia desempenhava um papel destacado no Movimento dos Não Alinhados,
juntamente com numerosos países surgidos com a derrocada dos velhos impérios
coloniais nas décadas após a II Guerra Mundial. A Alemanha não perdoava o importante
papel da resistência sérvia durante a I Guerra Mundial e jugoslava na II Guerra Mundial (o
território jugoslavo foi libertado da ocupação nazi pela sua Resistência, mesmo antes da
chegada das tropas soviéticas). No novo contexto das tumultuosas contra-revoluções dos
finais do Século XX, a Jugoslávia rapidamente passou de alvo de namoro a alvo a abater.
Não havia mais lugar para neutralidades, soberania, vias alternativas. Apenas era aceite a
subordinação incondicional ao imperialismo norte-americano. Uma subordinação que
devia ser traduzida em factos concretos: submissão às receitas do FMI e à penetração do
grande capital euro-americano com a privatização ou destruição do aparelho produtivo
nacional, adesão à NATO e à UE. A inconformidade dos dirigentes jugoslavos, em
particular os da Sérvia, com estas receitas e imposições, ditou a escalada de agressão
imperialista contra a Jugoslávia. A região dos Balcãs, conhecida ao longo da História
como palco de manobras intervencionistas e divisionistas das potências imperiais
(gerando a expressão ‘balcanização’) foi usada para mostrar ao mundo que na nova
ordem havia apenas um patrão, com residência em Washington.
A desagregação da Jugoslávia: uma receita para a Rússia
O processo de desagregação da Jugoslávia não começou, nem terminou, com a guerra
da NATO em 1999. Tratou-se dum processo longo, que começa ainda nos anos 80, após
a morte do Presidente Tito, dirigente dos comunistas jugoslavos desde a resistência à
ocupação nazi. Nessa década a Jugoslávia deixa-se submeter ao garrote da dívida, o que
haveria de desempenhar um papel fundamental na sua destruição (6). O imperialismo
aproveita o descontentamento social e económico para fomentar o nacionalismo violento
em algumas repúblicas jugoslavas. Tal como mais tarde na Ucrânia, são promovidos os
herdeiros dos colaboracionistas com o nazismo em particular o nacionalismo croata que
foi responsável por crimes e massacres horrendos durante a II Guerra Mundial – mas
também o jihadismo islâmico. A ofensiva imperialista conhece um salto qualitativo no
início dos anos 90, em simultâneo com a desintegração da URSS: secessão da Eslovénia
e Croácia (Junho 1991), Macedónia (Setembro 1991) e Bósnia (Março 1992). Atinge o
seu auge com a guerra da NATO de 1999 e a separação de facto do Kosovo. Prosseguiu
com as ‘Revoluções Coloridas’ patrocinadas pela CIA em Belgrado em 2000 e no
Montenegro em 2006, conduzindo à ulterior fragmentação da Jugoslávia mais pequena
surgida após 1992, e com o alargamento da NATO aos vizinhos da Sérvia (Eslováquia
2004; Croácia 2009; Montenegro 2017; Macedónia do Norte 2020). Prossegue ainda hoje,
face à relutância dos dirigentes de Belgrado em se vergarem por completo à ditadura dos
EUA.
São evidentes os paralelos entre este agressivo processo de ingerência do imperialismo
para destruir a Jugoslávia e o que, em simultâneo e até aos nossos dias, foi
desencadeado contra a Federação Russa. A receita e objectivos são análogos. Os que
hoje choram lágrimas de crocodilo pela soberania dos povos são os mesmos que há um
quarto de século lançaram a agressão nua e crua à Jugoslávia. Ao espezinharem o direito
internacional, abriram o caminho que nos conduziu directamente até ao limiar do
precipício. As lições do passado são essenciais para compreender a realidade dos nossos
dias.
Notas
(1) A declaração formal da independência do Kosovo foi apenas em 2008. Mas a
desanexação de facto foi o resultado directo da guerra.
(2) Guardian, 13.3.00; swissinfo.ch, 25.1.11.
(3) International Herald Tribune, 18.5.99.
(4) Avante!, 23.3.00 e 1.9.16.
(5) A invasão do Iraque em 2003 contou com a oposição de alguns partidos social-
democratas (SPD alemão) mas o papel activo de outros (trabalhistas ingleses sob Blair).
A oposição à guerra das mentiras veio também de forças não social-democratas (como o
Presidente francês Chirac) e foi, em todo o caso, um episódio rapidamente encerrado com
o apoio posterior à ocupação do Iraque e a eleição de Durão Barroso, anfitrião da Cimeira
das Lajes, à Presidência da Comissão Europeia.
(6) Existe numerosa documentação sobre os pormenores deste longo processo no
Avante! e O Militante. Refira-se também o livro da jornalista norte-americana Diana
Johnstone, Cruzada de Cegos (Caminho 2002); os livros do jornalista Carlos Santos
Pereira Da Jugoslávia à Jugoslávia (1995) e Os novos muros da Europa (2001), ambos
das Ed. Cotovia; e os livros dos Majores-Generais Raúl Cunha, Kosovo, a incoerência
duma independência inédita (2019) e Carlos Branco, A Guerra nos Balcãs, Jihadismo,
Geopolítica e Desinformação (2016), ambos das Ed. Colibri.
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