Linha de separação


2 de fevereiro de 2024

Para se compreender os métodos de desinformação e de actuação na Ucrânia e na Palestina

Relembrar

 Crimes do imperialismo

O processo de destruição da Jugoslávia

A destruição da Jugoslávia no final do Século XX é inseparável da profunda mudança da

correlação de forças mundial que acompanhou as contra-revoluções no Leste da Europa.

Libertos do contra-peso e do travão que a União Soviética representava, os EUA

desencadearam uma ofensiva global para impor pela força a sua hegemonia planetária. A

guerra da NATO contra a Jugoslávia foi a proclamação pública da violação aberta da

Carta da ONU e do recurso à guerra para impor a vontade das potências imperialistas e

subjugar países e povos insubmissos. Mas abriu também a Caixa de Pandora que nos

trouxe até ao limiar duma grande confrontação militar na era nuclear.


Os bombardeamentos da NATO

A NATO desempenha um papel central na ofensiva global dos EUA. No dia 12 de Março

de 1999 dá-se um alargamento da NATO em direcção a Leste, com a incorporação de

três países ex-socialistas: Hungria, Polónia e República Checa. Menos de duas semanas

depois começam os bombardeamentos da Jugoslávia. Os novos membros encontravam-

se já em guerra. A ligação NATO-guerra não podia ser mais clara e era intencional. A

Cimeira de Washington, realizada em plena guerra (23-25 Abril 1999), alterou o Conceito

Estratégico da NATO. O alargamento geográfico foi acompanhado pelo simultâneo

alargamento dos objectivos e âmbito de intervenção, num processo que se foi acentuando

nos anos seguintes.

A NATO não procurava apenas razões justificativas da sua existência após o

desaparecimento da URSS e do Tratado de Varsóvia. A questão era mais funda. Tratava-

se de impor pela força a ditadura planetária dos EUA através da agressão aberta, que

passou a ser possível no novo contexto mundial. Nesta ofensiva, a guerra desempenha

um papel central, como ficou patente nos anos seguintes no Afeganistão, Iraque, Líbia,

Síria e outros países. O objectivo é hoje assumido: substituir a ordem mundial pós-II

Guerra Mundial por uma nova ordem mundial que as potências imperialistas designam

por «baseada em regras», mas na qual há uma única «regra»: a submissão aos ditames

de Washington.

O último acto antes do começo da guerra foi o ultimato de Rambouillet, no qual as

potências da NATO confrontaram os dirigentes jugoslavos com duas opções: deixar as

tropas da NATO ocupar o seu país ou enfrentar os bombardeamentos. Até no estilo, foi

evidente a recuperação da velha ‘política da canhoneira’ das potências imperialistas.

Os 78 dias de bombardeamentos da NATO sobre a Jugoslávia, de 24 de Março a 10 de

Junho de 1999, foram uma clara agressão, violadora do direito internacional, efectuada à

margem das Nações Unidas e violando a sua Carta. Tratou-se da primeira guerra em solo

europeu após 1945. Redesenhou o mapa da Europa, ao retirar o Kosovo à Jugoslávia (1),

não apenas em violação do direito internacional, mas em violação do próprio acordo de

cessar-fogo (Acordo de Kumanovo), que reconhecia a integridade territorial da Jugoslávia.

O Kosovo foi transformado numa plataforma fulcral para o tráfico de drogas, armas,

pessoas e órgãos humanos (2), protegida por uma das maiores bases militares dos EUA,

Camp Bondsteel.

Os bombardeamentos das 19 potências agressoras, chefiadas pelos EUA, destruiram

sistematicamente as infraestruturas civis jugoslavas e o seu aparelho produtivo. Foram

alvos, entre outros, o complexo petroquímico de Pancevo (com a libertação para o

ambiente de grandes quantidades de produtos tóxicos), a fábrica de automóveis da

Zastava, numerosos hospitais e centros de saúde, linhas ferroviárias e comboios de

passageiros em andamento, centrais geradoras e de distribuição de electricidade,


estações de televisão, e – numa advertência ao estilo mafioso – a Embaixada da China. O

objectivo de atingir alvos civis para vergar a Jugoslávia foi abertamente assumido pelo

comandante das forças aéreas da NATO, General Michael Short, que em entrevista (3)

declarou: «Se acordarem de manhã e não tiverem electricidade em casa, nem gás no

fogão, e se a ponte que vos levar para o trabalho tiver sido abatida e ficar a flutuar no

Danúbio durante os próximos 20 anos, penso que irão começar a perguntar: ‘Oh Slobo

[Slobodan Milosevic era o Presidente da Jugoslávia], o que se passa afinal? E quanto

mais disto é que vamos ter que suportar?».

Os EUA juntaram ao seu historial de uso de armas não convencionais as armas com

urânio empobrecido. A guerra deixou a Jugoslávia destruída, às escuras, sem

aquecimento para o inverno, sem empregos, sem meios de transporte, mas com milhares

de mortos e centenas de milhar de refugiados. É, juntamente com a mentira, a marca de

todas as guerras de agressão imperialistas, como se comprovou abundantemente de

então para cá.

O tratamento reservado após a guerra ao Presidente Milosevic foi outra acção retirada do

velho baú das dominações imperiais. As imagens de Milosevic, algemado, a ser levado

pela calada para o Tribunal Penal para a ex-Jugoslávia, um ‘tribunal’ especial criado como

parte do processo de agressão à Jugoslávia, pretendia ser uma lição sobre o destino de

quem resiste. A posterior linchagem de Khadafi pelas tropas especiais das potências

imperialistas teve igual objectivo. Milosevic morreu numa prisão da Haia em 2006, em

circunstâncias suspeitas, após uma corajosa defesa pública que transformou num acto de

acusação às potências agressoras, entravando os objectivos do TPIJ e dos seus donos

imperialistas.

A grande mentira usada para justificar os bombardeamentos da NATO foi uma inexistente

‘limpeza étnica’ das populações albano-kosovares. Uma mentira comparável às ‘armas de

destruição em massa de Saddam Hussein’, que sendo insistentemente repetida pela

propaganda da comunicação social de regime criou as condições políticas para a guerra

que destruiu o país mais multinacional e tolerante da região. Uma mentira que o próprio

Tribunal Penal para a ex-Jugoslávia foi obrigado a reconhecer (envergonhado e em nota

de rodapé) no que respeita ao Presidente Milosevic (4).

A grande mentira da ‘guerra humanitária’ ganhou credibilidade aos olhos de muitos por

ser promovida por governos maioritariamente social-democratas na União Europeia –

entre os quais o governo PS em Portugal, chefiado pelo actual Secretário Geral da ONU,

António Guterres – e pelo Partido Democrático nos EUA, através do Presidente Clinton.

Num curioso, mas não casual, paralelo com os nossos dias, os Verdes alemães detinham

então o Ministério dos Negócios Estrangeiros (Joschka Fischer) num governo de

coligação SPD-Verdes. Em Itália era Primeiro-Ministro um dos obreiros da liquidação do

antigo Partido Comunista Italiano, Massimo D’Alema. Em França havia um governo da

‘Esquerda Plural’ de maioria PS, mas que incluia o PCF.

A social-democracia, que desde a I Guerra Mundial deixara de ser uma expressão política

do movimento operário e se transformara em muleta das potências imperialistas no

combate aos comunistas e aos processos de libertação social e nacional no mundo,

encontrava dificuldade em continuar a justificar às classes dirigentes a sua necessidade,

após as contra-revoluções a Leste, a desintegração da URSS e o enfraquecimento no

plano mundial do movimento operário, comunista e revolucionário. Descobriu uma missão

na criação das condições políticas que permitissem ao imperialismo norte-americano

ultrapassar os efeitos internos da sua derrota histórica no Vietname (1975) e lançar a sua

ofensiva global. Quase sem hesitações, os partidos social-democratas têm dado o seu

apoio no último quarto de século às guerras de agressão imperialistas (5).


Do namoro ao assassinato


Curiosamente, no período após a II Guerra Mundial a Jugoslávia atraiu atenções e

tratamento favorável por parte do imperialismo norte-americano. A ruptura entre os

dirigentes jugoslavos e a URSS em 1948 e a sua proclamada via autónoma para o

socialismo, suscitaram nos anos da ‘Guerra Fria’ apoios políticos e económicos dos EUA.

Mas a situação mudou radicalmente com o desaparecimento da URSS e o campo

socialista em 1991. A autonomia jugoslava interessava apenas em função anti-soviética e

deixou de ser útil para os EUA após o desaparecimento dos restantes países socialistas

europeus. Os dirigentes jugoslavos insistiam em falar em socialismo («auto-gestionário»).

A Jugoslávia desempenhava um papel destacado no Movimento dos Não Alinhados,

juntamente com numerosos países surgidos com a derrocada dos velhos impérios

coloniais nas décadas após a II Guerra Mundial. A Alemanha não perdoava o importante

papel da resistência sérvia durante a I Guerra Mundial e jugoslava na II Guerra Mundial (o

território jugoslavo foi libertado da ocupação nazi pela sua Resistência, mesmo antes da

chegada das tropas soviéticas). No novo contexto das tumultuosas contra-revoluções dos

finais do Século XX, a Jugoslávia rapidamente passou de alvo de namoro a alvo a abater.

Não havia mais lugar para neutralidades, soberania, vias alternativas. Apenas era aceite a

subordinação incondicional ao imperialismo norte-americano. Uma subordinação que

devia ser traduzida em factos concretos: submissão às receitas do FMI e à penetração do

grande capital euro-americano com a privatização ou destruição do aparelho produtivo

nacional, adesão à NATO e à UE. A inconformidade dos dirigentes jugoslavos, em

particular os da Sérvia, com estas receitas e imposições, ditou a escalada de agressão

imperialista contra a Jugoslávia. A região dos Balcãs, conhecida ao longo da História

como palco de manobras intervencionistas e divisionistas das potências imperiais

(gerando a expressão ‘balcanização’) foi usada para mostrar ao mundo que na nova

ordem havia apenas um patrão, com residência em Washington.


A desagregação da Jugoslávia: uma receita para a Rússia

O processo de desagregação da Jugoslávia não começou, nem terminou, com a guerra

da NATO em 1999. Tratou-se dum processo longo, que começa ainda nos anos 80, após

a morte do Presidente Tito, dirigente dos comunistas jugoslavos desde a resistência à

ocupação nazi. Nessa década a Jugoslávia deixa-se submeter ao garrote da dívida, o que

haveria de desempenhar um papel fundamental na sua destruição (6). O imperialismo

aproveita o descontentamento social e económico para fomentar o nacionalismo violento

em algumas repúblicas jugoslavas. Tal como mais tarde na Ucrânia, são promovidos os

herdeiros dos colaboracionistas com o nazismo em particular o nacionalismo croata que

foi responsável por crimes e massacres horrendos durante a II Guerra Mundial – mas

também o jihadismo islâmico. A ofensiva imperialista conhece um salto qualitativo no

início dos anos 90, em simultâneo com a desintegração da URSS: secessão da Eslovénia

e Croácia (Junho 1991), Macedónia (Setembro 1991) e Bósnia (Março 1992). Atinge o

seu auge com a guerra da NATO de 1999 e a separação de facto do Kosovo. Prosseguiu

com as ‘Revoluções Coloridas’ patrocinadas pela CIA em Belgrado em 2000 e no

Montenegro em 2006, conduzindo à ulterior fragmentação da Jugoslávia mais pequena

surgida após 1992, e com o alargamento da NATO aos vizinhos da Sérvia (Eslováquia

2004; Croácia 2009; Montenegro 2017; Macedónia do Norte 2020). Prossegue ainda hoje,

face à relutância dos dirigentes de Belgrado em se vergarem por completo à ditadura dos

EUA.

São evidentes os paralelos entre este agressivo processo de ingerência do imperialismo

para destruir a Jugoslávia e o que, em simultâneo e até aos nossos dias, foi


desencadeado contra a Federação Russa. A receita e objectivos são análogos. Os que

hoje choram lágrimas de crocodilo pela soberania dos povos são os mesmos que há um

quarto de século lançaram a agressão nua e crua à Jugoslávia. Ao espezinharem o direito

internacional, abriram o caminho que nos conduziu directamente até ao limiar do

precipício. As lições do passado são essenciais para compreender a realidade dos nossos

dias.

Notas

(1) A declaração formal da independência do Kosovo foi apenas em 2008. Mas a

desanexação de facto foi o resultado directo da guerra.

(2) Guardian, 13.3.00; swissinfo.ch, 25.1.11.

(3) International Herald Tribune, 18.5.99.

(4) Avante!, 23.3.00 e 1.9.16.

(5) A invasão do Iraque em 2003 contou com a oposição de alguns partidos social-

democratas (SPD alemão) mas o papel activo de outros (trabalhistas ingleses sob Blair).

A oposição à guerra das mentiras veio também de forças não social-democratas (como o

Presidente francês Chirac) e foi, em todo o caso, um episódio rapidamente encerrado com

o apoio posterior à ocupação do Iraque e a eleição de Durão Barroso, anfitrião da Cimeira

das Lajes, à Presidência da Comissão Europeia.

(6) Existe numerosa documentação sobre os pormenores deste longo processo no

Avante! e O Militante. Refira-se também o livro da jornalista norte-americana Diana

Johnstone, Cruzada de Cegos (Caminho 2002); os livros do jornalista Carlos Santos

Pereira Da Jugoslávia à Jugoslávia (1995) e Os novos muros da Europa (2001), ambos

das Ed. Cotovia; e os livros dos Majores-Generais Raúl Cunha, Kosovo, a incoerência

duma independência inédita (2019) e Carlos Branco, A Guerra nos Balcãs, Jihadismo,

Geopolítica e Desinformação (2016), ambos das Ed. Colibri.

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