A CIMEIRA DA GUERRA E DUAS MULHERES» (ROSA versus URSULA)
- por Carlos Matos Gomes (em 10/Julho/2024)
Hoje,
que se tocam os tambores de guerra na sede do império, e onde uma
mulher, Ursula Von Der Leyen, presidente da Comissão da União Europeia,
da Europa, está em lugar de destaque, trago à memória Rosa Luxemburgo.
Um figura incómoda, feminista, pacifista, socialista, judia sem
religião, revolucionária. E também o conjunto de mistificações que
serviram para os dirigentes justificarem a guerra aos seus povos.
A
causa imediata para a Primeira Guerra foi o assassinato do arquiduque
Francisco, herdeiro do trono austríaco, e da sua mulher a 28 de junho de
1914. O assassino foi um estudante nacionalista sérvio, recrutado para o
efeito. A Áustria apresentou um ultimato à Sérvia e exigiu uma resposta
dentro de 48 horas. Os termos desse ultimato eram tão humilhantes que
era impossível a Sérvia aceitá-los. A Áustria, que era aliada da
Alemanha, declarou guerra à Sérvia, que era aliada da Rússia, essa, por
sua vez, era aliada da França e da Inglaterra. Na verdade, o assassinato
do arquiduque serviu de pretexto para que cada estado procurasse obter
vantagens na divisão das riquezas em África. A principal razão para a
rivalidade entre os países europeus era a disputa pelo controlo de
territórios na África e na Ásia após a Conferência de Berlim.
Desde
1871, as potências europeias estavam em paz umas com as outras, mas
todas estavam envolvidas numa corrida armamentista, isto é, todas
estavam a investir grandes somas em despesas militares, cada uma
procurando superar as outras em armamento à espera de uma oportunidade
para a guerra. Nada do que é apresentado hoje aos europeus como razão
para a guerra é diferente. Antes da guerra existia o que ficou conhecido
como a “paz armada” — Tal como hoje, coma “guerra fria”. Até ver.
Foi
num quadro de oposição a uma guerra com estas motivações que Rosa
Luxemburgo agiu politicamente. Ursula Von Der Leyen procura acendalhas
para desencadear uma guerra! Em 1914, ano do início da Grande Guerra,
Rosa Luxemburgo foi julgada e condenada a um ano de prisão pelo Segundo
Tribunal Criminal de Frankfurt, por incitamento à desobediência civil,
num discurso feito em setembro de 1913. A defesa que ela fez na ocasião
para contestar a condenação por ela condenar a guerra e do imperialismo
foi publicada sob o título de “Militarismo, guerra e classe
trabalhadora”.
Os três “ingredientes” estão hoje a
ser cozinhados em Washington de modo a serem apresentados como “aumento
de despesas de defesa” para os povos se defenderem do que não tem
defesa: a utilização de armas nucleares e do espaço como campo de
batalha por parte das oligarquias que governam as superpotências;
guerra, como a continuação dos grandes negócios criados pelas
oportunidades de conflito; e classe trabalhadora: a carne para os
canhões, seja ela fardada ou à civil.
Em 4 de
agosto dde 1914, no dia em que a França e a Inglaterra declararam guerra
à Alemanha, a bancada social-democrata do Reichstag votou a favor dos
créditos de guerra, o que deixou Rosa Luxemburgo profundamente abalada.
Ursula Von Der Leyen declarar-se-ia empolgada! A social democracia e a
democracia cristã têm sido desde o início do século XX fiéis
caucionadores das guerras do capitalismo e do colonialismo.
Em
dezembro de 1914, o deputado Karl Liebknecht, marido de Rosa
Luxemburgo, votou sozinho contra nova concessão de créditos de guerra.
Fundaram o grupo Internationale, que se passaria a designar-se Liga
Espartaquista. O grupo defendia que os soldados alemães abandonassem a
guerra para iniciar uma revolução no país. Em 1915, Luxemburgo passou um
ano na prisão por agitação antimilitarista. Em 8 de novembro de 1918, o
governo alemão, relutantemente, libertou Luxemburgo da prisão
pressionado pelas manifestações dos espartaquistas nas ruas de Berlim.
No dia 9 de janeiro de 1919, Berlim encontrava-se em estado de sítio.
Luxemburgo e Liebknecht, perseguidos, sabiam que já não tinham para onde
fugir. Foram presos a 15 de janeiro pelos militares e levados para
interrogatório no Hotel Eden, em Berlim. Foram retirados do hotel por
grupos paramilitares, os Freikorps, sendo espancados até ficarem
inconscientes. Luxemburgo e Liebknecht foram levados — cada um no seu
carro. Junto à ponte Corneliusbrücke, Rosa Luxemburgo foi baleada e
atirada agonizante para as água geladas do rio. Karl Liebknecht, seguiu
no outro carro até ao parque Tiergarten. Aí foi obrigado a caminhar e
baleado pelas costas. O corpo seria entregue como o de um indigente numa
esquadra de polícia. Os seus assassinos jamais foram condenados.
Somente em 1999, uma investigação do governo alemão concluiu que os
paramilitares do Freikorps haviam recebido ordens e dinheiro dos
governantes social-democratas para matar Luxemburgo e Liebknecht.
Qual
foi a origem da morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht? O serem, ou
terem sido sempre contra a guerra, sempre com a revolução. Qual a
origem do sucesso de Ursula Von Der Leyen? Ser sempre pela guerra e
sempre contra a revolução, mesmo contra a revolução mínima da defesa da
dignidade da liberdade. Rosa Luxemburgo era contra a guerra — no caso da
Grande Guerra — porque ela fazia parte da natureza do capitalismo e
este alimenta-se de uma “constante pulsão expansionista e uma tendência
inerente para o militarismo e a guerra”. No momento em que o SPD decidiu
apoiar a guerra da Alemanha contra as potências da Entente (Reino
Unido, França e Rússia) Rosa Luxemburgo convocou uma reunião dos
militantes social-democratas que esperava fossem críticos dessa decisão.
Só conseguiu reunir um punhado deles. Esteve sempre em minoria. Ursula
Von Der Leyen gaba-se de estar em maioria. Também a maioria dos
passageiros do Titanic estava de acordo em não alterar a rota e
enfrentar os icebergs.
Contudo, quando o desgaste
causado pela carnificina da Grande Guerra começou a fazer-se sentir,
Liebknecht tornou-se a grande figura pública do movimento
antimilitarista e Luxemburgo a sua líder mais influente. Ambos foram
brutalmente neutralizados pelos poderes instalados: foi retirada a
imunidade parlamentar a Karl Liebnecht, enviado para a guerra e, depois,
preso; Luxemburgo foi condenada a duas penas de prisão. No cumprimento
dessas penas viria a passar na cadeia três dos quatro anos da guerra. Só
seria libertada com a revolução de 9 de Novembro de 1918 (fuga do
imperador Guilherme II e proclamação da República Alemã) para ser depois
assassinada
Na cadeia, Rosa Luxemburgo escreveu A
crise da social-democracia, criticando sem contemplações o SPD por ter
aderido à política de guerra. O livro proclamava a alternativa
“socialismo ou barbárie”, que rompia com a ideia determinista, de um
socialismo considerado como desfecho inevitável da História da
humanidade. Hoje o fim da história é o neoliberalismo, mas do que
estamos a abeirar-nos é da barbárie.
A reunião da
NATO em Washington está a tratar da melhor via para a barbárie. A
alternativa é a vitória da Rússia? Não, a alternativa é os povos não se
deixarem embalar nos sermões dos pastores que lhes dizem que apenas
devem deixar-se guiar e limitar-se a desejar o que lhes é dito ser o
possível, de acordo com os princípios do oportunismo, sem se preocuparem
com os seus próprios princípios, e a deixar-se levar pelos estadistas,
porque se o fizerem os povos encontrar-se-ão na mesma situação “do
caçador que não só falhou em matar o veado, mas também perdeu a arma no
processo.”
A alternativa à vitória militar da
Rússia, seja essa vitória o quer que seja e ninguém na NATO nem no
Ocidente Global ainda definiu o que entende por “vitória da Rússia” ou
“derrota da Rússia”, não é, em termos de princípios, admitir o nazismo
ucraniano como sendo da família das democracias europeias, nem, em
termos militares, que a Ucrânia seja um porta-aviões nuclear americano
estacionado na fronteira da Rússia. Normalizar o neonazismo como uma
igreja do neoliberalismo e fazer da Ucrânia um estado de Israel na
Euroásia é o programa que está há anos em pano de fundo de todas as
reuniões da NATO.
O que está em discussão hoje, cem
anos após o assassinato de Rosa Luxemburgo é a glorificação das novas
milícias dos Freikorps — os Corpos da Liberdade — de que Úrsula Von der
Leyen é uma das aves canoras.
Rosa Luxemburgo era
uma mulher sensível à vida e à natureza: Por isso ela escreveu:
“Pertenço mais aos canários do que aos meus camaradas”. Ursula Von Der
Leyen é mais de pertencer aos abutres.
A cimeira da
NATO é um acontecimento infelizmente já visto: a conjugação de
interesses de grupos sociais para desencadear uma guerra. Foi assim com a
Primeira Grande Guerra, foi assim com a Segunda Guerra Mundial. Os que
expõem a guerra como resultado de interesses de grupos, de estratégias
de poder, como a utilização da carne humana para produzir canhões serão
abatidos, como foram Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Hoje seriam
acusados de putinistas. Em 1907, a sete anos do início da Grande Guerra,
Rosa Luxemburgo já deixara de ter ilusões sobre o que fora o seu
partido e passara a proclamar que “a social-democracia se tornou um
cadáver fedorento”.
Entender que os partidos dos
grandes industriais e patrões apoiassem a grande guerra — que se travará
para disputar os recursos naturais de África — devia motivar uma
reflexão sobre o que terá levado todos os partidos da Segunda
Internacional a capitular perante as políticas belicistas dos respetivos
governos.
A crise da social democracia — que
deixou de ser um projeto de esperança para se transformar numa empresa
prestadora de serviço a troco de um voto, de ser hoje, como há mais de
cem anos, apenas um dos figurantes da frente comum de interesses —
contribuiu para a resignação interiorizada com a máxima: Não Há
Alternativa (TINA, em inglês) e gerará reações violentas a mais ou menos
curto prazo. A cimeira da NATO está a tratar de desencadear uma guerra e
controlar o repúdio popular.
No misturador de
interesses, no triturador de diferenças que é hoje o grande partido da
guerra e da submissão europeia encontram-se os que matariam de novo Rosa
Luxemburgo e venerariam Úrsula Von Der Leyen. Daí concluir como Rosa
Luxemburgo ser necessário construir novos partidos, ou novas formações
políticas para dar corpo a uma nova forma de nos relacionarmos no mundo.
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